segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Virgem Negra

A auto-estrada é uma recta ladeada por eucaliptal que parecem personagens abandonadas num palco iluminado pelo sol que simultaneamente as dividem e as unem e as suas sombras sobrepõem-se umas às outras e reflectem-se parcialmente sobre a terra arenosa; olho para o banco ao meu lado e descubro um olhar terno de uma jovem longitudinalmente magra que sorri como se estivesse a duvidar sobre a direcção em que seguimos, e liga o rádio e ouvimos um radialista a pronunciar esforçadamente os títulos das canções em inglês e desliga-o, e tento revelar-me através de uma ficção que decorre em casas de parto nas quais tentei exorcizar a dor ao enfrentar a morte ou recorri a musas intoxicadas que atentaram contra o meu ego de pluma de ganso; paramos numa estação de serviço mas ela decide ficar no carro e opto por seguir viagem e contornamos curvas que parecem intermináveis e as placas azuis e brancas anunciam que estamos quase a passar pelo Porto, e a minha parceira deambula sobre os enigmas que a mantêm cativa à vida personificando um girassol que observa o sol durante o solstício de Verão, e coloca a sua mão na minha que se encontra sobre o manípulo das mudanças e retiro velocidade à viatura para que possamos ver as margens do Douro com o Porto e Gaia frente a frente e entre estes corre o rio lentamente para a foz para se banhar num salitre purificador e imiscuir-se num universo marítimo que lhe é estranho; e perdemo-nos nas veias do Porto e num túnel o seu rosto de princesa da civilização egeia é intermitentemente iluminado por focos amarelos e ao sairmos a luz ténue revela a sua pele marmórea que é de uma delicadeza sedosa, fecha os olhos e põe os óculos Ray Ban e o seu silêncio significa que está pensativa sobre o nosso destino que é moldado pela A2 que nos orienta para A4; saímos para uma estrada nacional que afunila em direcção a Santo Tirso pois no Colégio de Lourdes irá decorrer um concerto dos GNR destinado exclusivamente à comunidade escolar, e ao qual me fiz de convidado algo que desagrada à minha companheira que julgava que constávamos numa lista VIP; sobem ao palco os três músicos dos GNR (na bateria: Samuel Palitos, ex-Censurados e ex-Sitiados; na guitarra eléctrica/voz: Tiago Maia que também dá pelo nome de Sr. Maia; nos teclados: Paulo Borges o bon vivant) e durante a tepidez celestial de “Bem-vindo ao Passado” surgem os GNR: Jorge Romão (baixo eléctrico) e Tóli César Machado (guitarras, teclados, acordeão) e Rui Reininho (voz e maracas) e a canção ganha densidade dramática que é contaminada por laivos de psicadelismo; a pop psicadélica tinge “Vídeo Maria”, que julgara que não iria ser tocada dado o facto ter sido alvo de censura pela religião católica da qual é inspiração este colégio; “Efectivamente” é a súmula da pop elegante e lúdica e por essas razões é intemporal; “Popless” tem uma estrutura linear mas que se torna circular quando o Rui Reininho canta o refrão “Pop Pop Less, Pop Pop Less” como se fosse algo tão belo quanto enigmático; “Cadeira Eléctrica” tem o poder de uma melodia que progride variavelmente e perco o sentido do princípio meio e do fim algo que a tolhe com uma eterna novidade; “Ana Lee” tem um exotismo que não encontra paralelo num trópico pop e “Dançar SOS” abandonou o seu carácter de canção de abandono para ser uma lullaby que enfeitiça a consciência; “Cais” tem um pendor pop que é imiscuída numa saudade que lhe dá corpo e “Asas” revela-se numa delicadeza de slow que se inscreve no onírico pop; “Impressões Digitais” e “Sangue Oculto” são naturalmente opostas a primeira tem um groove viciante que remete para uma festividade descomplexada para induzir à dança, quanto à segunda é a invenção de um rock da ibéria contaminado por um fascinante kitsch; “Las Vagas” sofre de uma turbulência que os impedem de implementarem a sua natureza psicadélica e nessa medida confiscam-lhe o seu poder hipnótico; “MACabro” poderia ter um cravo e seria uma música para a corte num baile de máscaras fúnebres, é um relicário pejado de uma melodia de vaudeville destinada para uma peça de teatro do absurdo; “Pronúncia do Norte” é de tal forma arrebatadora que as pessoas abandonam as cadeiras e aproximam-se de uma fita frente ao palco que não pode ser transporta, se fosse uma matéria orgânica seria uma encosta com vinhas da região demarcada do Douro; “Nova Gente” é de uma ironia lírica e rítmica para fazer dançar os aldeões num largo de igreja iluminado mas é também virilmente urbana algo que a torna estranha; os GNR saem do palco excepto o Jorge Romão que o abandona e se aproxima dos Super Fãs GNR que entusiasticamente o congratulam e pousam para a fotografia; mas as luzes mantêm-se acesas sobre os pontos que os músicos ocuparam; e “Dunas” é recebida com histerismo por parte do público que os acompanham com palmas e cantam o refrão que os transportam para um estágio de desenvolvimento imberbe; o original do Roberto Carlos “Quero que Vá Tudo Pró o Inferno” é apresentado com o intuito de lhe retirar o seu pendor Iê-Iê-Iê e associá-la à pop/rock contemporânea; “+ Vale Nunca” surgem diversos jovens juntamente com o professor Duarte Almeida (um dos responsáveis por este inusitado acontecimento) que se colocam atrás dos três GNRs e há uma festividade nas suas palmas e na forma como assumem a canção que se rebela contra o que tanto anseiam; Jorge Romão tem o cuidado de indicar ao Manu (roadie) para que coloque o seu microfone próximo dos adolescentes para que seja audível o refrão pop: “Mais vale nunca mais crescer”.

GNR, 24 de Junho, Semana Cultural do Colégio de Lourdes, Santo Tirso

In loving memory of Negrita