domingo, 21 de dezembro de 2008

Luta de Classe

Queres um beijo, meu solitário amor ou descaracterizado rosto,
Se me queres numa noite tens que pagar com o corpo
Tens que fazer de conta que estás viva no canto da sala
Como uma boneca estilhaçada por um extintor

A urgência do adeus encerra em si o abismo
O fogo que cheire a fumo de fancaria
As luzes das ambulâncias iluminam-te
O caldo entornado de uma sopa da pedra
Que arde, e se apaga num instante

A lua é a prostituta de serviço
Ela é todas as noites uma outra mulher
Nunca se personifica na tua pessoa
Nem se maravilha com as bombas
Que circulam de órgão para órgão
Quando uma arrebenta em cancro
Que se aninha como um lar de ratos
No teu peito de mulher eterna
Deixa os mamilos excitados
Com a perspectiva de uma pequena morte
Se sabes o enigma da felicidade
Elimina-me da lista de contactos
Exerce o teu poder de dona do infinito
Dá vida ao meu amigo Primavril
Acrescenta-lhe o tempo que não viverei
Insulta o prognóstico dos médicos

Deus, será o eterno absolvido
A testemunha do milagre da procriação
Que perdoa às putas o uso do corpo
Aos drogados o abuso do vício
Aos ignorantes o uso do raciocínio
Às mães que abortam por amor ao feto

Amor, emoldura-me no teu coração
Inscreve-me num curso de chinês
Para descodificar o livro vermelho
A revolução é iletrada
A raiva fruto da pobreza
Dá-me a vida dos pobres
Irei distribui-la aos doentes e pelos desaparecidos
Livrarei o Mundo de cemitério de meninas
Dos frutos podres que caem das árvores
Das velhas paralíticas com a reforma de fome

sábado, 13 de dezembro de 2008

Rui Reininho

“Cadela com cio, mal amada”, “fazem descontos na auto-estrada?”, “já podemos ir à lua ahahaha?”, “homens louros”, “cadelas com cio, mal amada”. “Já sabemos andar na lua, já podemos ir à ruaaah”, “roleta russa, enforcado, vida dupla, besta-quadrada”, “minimercado e vão de escada, constelações desordenadas, ortodoxo com desconfiado!”. “Fazem desconto na auto-estrada”, “já podemos ir à ruaaahah?”. “Homens louros a gritar das gruas, a pendurar gajas nuas, descontroladas, desarrumadas, sagitário, celibatário.". "Saturno em camião. Até amanhã camaradas. Laikas virgem, Laikai virgem, Laika”. “Laika Virgem” é o coração do primeiro álbum a solo de Rui Reininho, a música é assinada pelo ex-guitarrista dos GNR, Alexandre Soares, um génio esquecido, que nunca perdeu a veia pop, e “Laika Virgem” é brutal, delicada, fodida, como uma puta que se deixa dominar pelo tigre que tem no bolso notas riscadas, foda, puta, ahhha. “Companhia das Índias” não tem somente este clássico para novela de esqueletos com cio, há mais, “Turbina e Moça”: “Pará de falar de dinheiro e de amor, nenhum de nós foi o primeiro, houve sempre um estupor, um ladrão, um marinheiro, turbina e moça”, “meninas na Night, às vezes são damas, sem o xadrez dos pregos das cama, turbina e moça, sai, turbina e moçaaaaaa. Na minha da rua há árvores de fruto, e tu, esse ar de jovem prostituto, e tens maneira de andar, de quem não dá luta e vens com esse olhar de filho daaaaa….” puta!, poderia constar no “Sob-escuta”, tal é a sua vertente desalinhada, “meninas na night” banda sonora para bar de alterne, “não pagas nada, aiaiaiaiaiaiaiai”. Ambas são tão viciantes quanto a heroína. “A escrava africana soprava as velas à pequenina. Venham mais mouras e celtas, venham mais poetas, marquises de alumínio, menos romenas, menos ciganas, mas mais indianas, para elas cancelas abertas sem condomínio”, hino pop-chunga, Blondie transexual de “Morremos a Rir”, “fomos naufragar e morremos a rir, morremos a rir. Alguém sabe onde é o Quinto Império? Alguém sabe onde mora o terceiro Mundo?” Alguém? Alguém? Alguém? Alguém? “Sabes bem, esta Lisboa, sabes quem? Esta Lisboa”, o saxofone amortece a densidade monocórdica, mecânica, electrónica, no “Estranho Caso do Amante Preguiçoso”. Do telemóvel sai a voz de uma boneca de plástico, “olá, onde está? Queres vir então vá.” O Rui responde: “olé, quem és queres vir a pé? Sou o Dr. Optmista, minha oclusão não passou por dentista. Sou perito em raiki”. Ela: “olá”, o Rui: “e em massagens rectal, até bebemos chichi” são recomendações de um médico, formado no Rock Rendez Vous, “a senhora é de cá? Descontraia-se no divã”, “sei que não sou daqui, uso sempre meias pretas”, com solo de trotineta, “aceita uma sopa de letras?”, “mais um gin!”, “calço sempre meias pretas!”. Ela: “queres vir a pé?”. O blues calustrofóbico de Paulo Furtado: “Há um médico na sala? Há um médico na sala? Monokono, ahahha, cheio de ódio, ah, vem dançar em monokini, vem ouvir o cantoono, Yokona, Yokomono, Yokoama, aha, outro moço, jogo de cama, enfermeiras de chuteiras, ahahaha, um médico na sala, yokomono, no Japão, appapapa, Yomoama outro moço, aliás bom rapaz, fogo poço, ela ama, jazz, outro moço, Yokomno, ama outro moço, jogo de cama, enfermeiras, ahahahahhaa um médico na sala, haha um médico na sala? Xiiixxxiiixiixixixiixixixixixixixiixixiixixixixixiix”.

Rui Reininho, "Companhia das Índias", edição Sony Music.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Paula Rego

As obras de Paula Rego que se encontram agrupadas no Centro de Arte Manuel de Brito. Estão inseridas nas décadas de sessenta, setenta, oitenta, noventa e dois mil. Nas colagens há uma sobreposição das imagens, onde a perspectiva era imperscrutável, subsequentemente há uma desagregação destes elementos que passam para uma flutuação, é de contraposições que a obra de Paula Rego cresce, recusa riscar sempre com o mesmo intuito. A nível da narrativa ou são lineares, com o principio meio e fim com possível leitura da esquerda para a direita, noutros casos este elemento é explorado verticalmente, sem que exista harmonia. Outra característica proeminentemente é a adequação do traço às cores e aos elementos que estão ser pintados. Mesmo nas telas grandes e de forte pendor cromático, há uma anarquia feliz, onde os bichos-do-mato, ganham comportamento humano. Algo que é uma constante é a contra-cena entre humanos e animais sem que seja perceptível a fronteira entre estes dois universos. As figuras têm uma grande carga de Goya, estas obras são de uma elegância extrema, belas dicotomias entre cão e dona, entre chefe e dona-de-casa, entre mestre e escravo, e entre nascimento e o aborto, o álcool num biberão na boca de um bebé, uma mulher que mata um macaco que não perscrutamos se é um boneco ou ser vivo. A nível literário responde com águas fortes do “Peter Pan”, “Perlimpinpin”, “Contos de Fadas”, “Maria Moíses”, “Para lá Para Cá”. Há os corpos cadáveres com dentes na vagina, mulheres levianas, anões fadistas, a morte é transversal à exposição, porque a fantasia suprema é aquela que desconhecemos se estamos vivos ou mortos.

Paula Rego, Centro de Arte Manuel de Brito (Algés), 16 de Novembro. Patente de 4 de Outubro a 18 de Janeiro.

sábado, 22 de novembro de 2008

Fernando Pessoa

A exposição literária abarca essencialmente o século XX, sendo que “Os Lusíadas” são o outsider, desta colectiva poética encabeçada por Fernando Pessoa. “Sr. Pessoa, precisei de sair, está o jantar pronto, é só sentar à mesa, tirar do lume e comer. Adelaide.” Com este bilhete entramos na intelectualidade portuguesa, numa instalação que envolve filmes, fotografias, telas, manuscritos, de colunas saem poemas, o labirinto é translúcido e percorre uma alma única: Saudade.
Do “Livro do Desassossego” estampado a letra preta sobre o branco: “A grande dificuldade do orgulho para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual (…)”.
“Os Lusíadas”, “Vês aqui a grande máquina do Mundo; etérea e elementar, que fabricada; assim foi do saber alto e profundo; que é seu princípio e meta limitada; quem cerca em derredor este rotundo; globo e sua superfície tão limada; é Deus, mas o que é Deus? Ninguém o entende; que a tanto o engenho humano não se entende (canto X, 80)”.
Paralelamente colocaram a “Mensagem” (“O dos Cotovelos”), de Fernando Pessoa e “Os Lusíadas”, (canto 3, 52-54), irmanei-os: “A Europa jaz, nos cotovelos: cabeças pelo campo saltando; de Oriente a Ocidente jaz, fitando; braços, pernas, sem dono e sem sentido; e toldam-lhe românticos cabelos; e doutros as estranhas palpitando; olhos gregos, lembrando; pálida cor, o gesto adormecido; o cotovelo esquerdo é recuado; já perde o campo o exercito nefando; o direito é em ângulo disposto; correm rios do sangue disparzido; aquele diz Inglaterra onde, afastado com quem também do campo a cor se perde; a mão sustenta, em que se apoia o rosto; tornado de carmesi, de branco e verde; fita, com o olhar esfíngico e fatal; já fica vencedor o Lusitano; o Ocidente, futuro do passado; recolhendo os troféus e presa rica; o rosto com que fita é Portugal; desbaratado o rosto o Mauro Hispano (…)”.
Está em exposição “Histoire du Portugal par Couer” de José Almada Negreiros, publicado pela primeira vez em 1922 na “Contemporânea”. Uma colagem do Cesariny, com acrílico e esferográfica sobre madeira. Álvaro de Campos: “as figuras de amadas, que aliás não existem como figuras”. E mais inscrições de António Botto, Walter Pater, Robert H. Shepard, Óscar Wilde, o óleo sobre tela de “O rapaz das Cerejas” de Edouard Manet. “Vivi, estudei, amei; e até cri; e hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu”; “Cá morreu o meu amigo; o que surrealista migo; na escurana da manhã; cá morreu o meu amigo; por todolo bem que fez consigo; vou por outro Dolviran”.
Teixeira de Pascoaes: “O que ele quer é o deserto, onde não lhe impeçam os mortos nem os vivos. Mas é difícil evitar os vivos e ainda mais os mortos, não há portas fechadas para estes”. Camilo Pessanha, “eu vi a luz em um país perdido; a minha alma é lânguida e inerme; oh! Quem pudesse desligar sem ruído; no chão unir-se, como faz um verme. (in Clesydra, 1920)”.
Mário de Sá Carneiro, “ah, que me metam entre cobertores; e não me façam mais nada; que a porta do meu quarto fique para sempre fechada; que não se abra mesmo para ti se tu lá fores! (in, “´Os Últimos Poemas de Mário de Sá-Carneiro`”, Athena 2, 1924). Constam as cartas deste poeta a Fernando Pessoa, mas não se encontram as respostas deste ao seu contemporâneo. Fernando Pessoa sobrevoa a exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian, com esta reflexão: “Nunca supus que isto que chamam morte; tivesse qualquer espécie de sentido; cada um de nós, aqui aparecido; onde anda a lei certa e a falsa sorte”. Mário de Cessary vai, “hoje, dia de todos os demónios; irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro; a gente às vezes esquece a dor dos outros; o trabalho dos outros; o coval dos outros”. Os auto-retratos de Almada Negreiros testemunham a passagem de dois grupos de alunos que ouvem os guias com atenção.
“De quando em quando junto as recordações para morrer; não gosto de andar sem nada”, filosofa Vitorino Nemésio em 1940. “De Rembrandt a Van Gogh a tinta és tu; em rosa de bateira e sol de vinho; o tempo fez-se-me fome; mas levantas os braços--e é o moinho. (Vitorino Nemésio em “´Andamento Holandês`”).
“Faze de ti um duplo ser guardado; e que ninguém, que veja e fite, possa saber mais que um jardim de quem tu és--Um jardim ostensivo e reservado; por trás do qual a flor nativa roça; a erva tão pobre que nem tu a vês...” é a pluma do poeta Fernando Pessoa o corpo são as suas palavras, a alma o português. “E a propósito, ocorre-me que numa ocasião, entrando num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta num chofre: ´Já notou um coisa, ó Pascoaes? Há escritores de que ninguém fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E desta duas espécies, qual em seu entender, tem mais valor?` Respondi que aqueles de que toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou: ´É também a minha opinião`”.

"Weltliteratur—Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o Mundo!", Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), 14 de Novembro. Patente de 30 de Setembro até dia 4 de Janeiro.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Julião Sarmento

O artista plástico, Julião Sarmento apresentou-se no foyer do Teatro Académico Gil Vicente, a convite do Instituto de História de Arte da Universidade de Coimbra. Durante a palestra foram projectadas as obras de Julião Sarmento, acompanhado por Delfim Sardo e António Filipe Pimentel. A introdução foi realizada por Delfim Sardo, “começou em 1972, e o Julião tem repartido a sua obra por vários suportes: Super 8, 16 milímetros, escultura, duplicação mecânica. As tónicas, têm sido a ligação ao cinema e à literatura”. Julião Sarmento, é um homem de grande porte, tem a barba de vários dias, óculos, e um timbre de voz sedutor, “isto está cheio! Pareço um artista de rock (risos)”. “Não costumo olhar para o passado, somente olho para construir o futuro. Eu não sei falar sobre o meu trabalho, se eu não fizesse o meu trabalho, apenas falava. Eu sou um artista proeminentemente visual. É importante olhar para o meu trabalho, mas não há muito mais a acrescentar ao meu trabalho. Se eu fosse escritor, eu seria do género que escreve sempre o mesmo livro, tenho meia dúzia de obsessões, eu não sou um artista que não está habituado certezas. Não interessa fazer um trabalho absolutamente redondo, estão quase bem, mas o que me interessa é o quase”. A luz do foyer apaga-se, e Julião ironiza, “ eu gosto de ser voyeur, mas é a outros níveis, não é a falar às escuras para uma plateia”. “ O que me interessa nestas questões é chegar ao fim e ver que não consegui, e ter uma desculpa para trabalhar no dia seguinte. Esse sentido da memória, o traço é visível, está lá! As questões genéricas ao cinema e à literatura, e ao desejo, estão lá.” Quanto ao “surrealismo, não sei o que a minha obra tem haver sobre o surrealismo”. “O meu trabalho é seriado: é uma espécie de mote, os meus trabalhos estão agrupados em grupos”. No início “pus de lado a pintura e o desenho” e concentrou-se na “fotografia e no Super 8”, “aqui já se percebe a relação com o cinema”, “eu pertenço à velha guarda, as fotografias eram performativas e não existiam como ícone, eram representações da realidade. Trabalhava muito com polaróides, há motivos recorrentes que são mulheres, não sei porque (ahahha)”, “na altura tive um incêndio no atelier e arderam todos os filmes, na altura não dava para fazer cópias, tinham que ir à França e custavam caríssimo”. “Na altura ninguém fazia filmes, claro que fazia o Andy Warhol. As projecções eram feitas em casa dos amigos, e eram projectados em cima de naprons, por outro lado tinham muita mais graça porque eram muito mais violentas”. Julião Sarmento sublinha que na “altura tínhamos uma ideia vaga das coisas, eram descobertas gradualmente. Hoje, os artistas atacam com tudo o que têm, nós entravamos no limbo”. Para enfrentar e romper com este estado colocou-se dentro da “jaula do tigre, a fingir que era um tigre durante uma hora, roçava nas paredes, levava uma máquina e fotografava o que o tigre via e por outro lado tinha um comparsa no exterior que fotografava sobre os espectadores que me viam dentro da jaula (ahahha)”. “Eu já nesta altura era poupadinho e o dinheiro que eu tinha era para a paródia, para se ser pintor não era preciso muito dinheiro. Pintava em papel de embrulhar bacalhau, que era utilizado para embrulhar as postas de bacalhau”. “ Dou tanta importância ao texto quanto à imagem, são duas realidades que se complementam, como são o caso dos textos da Virginia Wolf”. A instalação que realizou “era uma caixa que tinha um segredo”, este, “era revelado através da caixa, mas esta estava de tal forma iluminada que ninguém via o segredo (ahahah).” Julião revela o que o motivou “a ser artista, para engatar, à conta de ser artista, as coisas que eu fiz! Mas dá resultado! (aaahha)”. “Perdi tudo o que fiz, três vezes: a primeira vez foi no 25 de Abril. Tinha um atelier por cima da Assirio&Alvim, onde tinha uma cama, livros, discos, e trabalhos que tinha realizado em conjunto com o Fernando Calhau. A quatro de Abril acabo a tropa e não tinha dinheiro para pagar o atelier, dá-se o caso que o senhorio que morava no Porto, mas que tinha uma gaja sempre à porta a cobrar a dívida. Eu era um gajo muito tímido e desapareci. Voltei doze anos depois ao atelier, foi-me aberta a porta por um casal. Não revi nada dessa altura, desapareceu tudo, os discos, livros”. A saga passa por um segundo atelier, “eu trabalhava numa galeria em Belém”, espaço, “que tinha ficado remanescente do Mundo Português de 1940. Eu arranjei um cantinho para o meu atelier. A 21 de Julho de 1978 ardeu tudo! Menos o que estava na casa da minha primeira mulher, que residia no Chiado. Em 1988 houve um incêndio no Chiado e ardeu tudo (ahahhah)!”. “Sempre fui visualmente violento, e utilizei uma palete muito reduzida de cores”, “se tiver um quadro branco com um ponto vermelho, o olhar vai de encontro a esse ponto”, “os títulos são em inglês porque as obras têm destinatários estrangeiros”, “para mim o título tem uma importância paralela à obra, é um bocado da obra”. “Em 1992 fui convidado pelo instituto alemão a ir à Amazónia com mais dezasseis artistas, durante a qual cada um de nós iria fazer uma obra, que seria exibida na Eco 92”, “construi uma casa igual às do Lula, mas ao contrário, com esta cor, verde-água. Eu quando comecei a fazer as pinturas brancas, o branco é neutro, no Ocidente a neutralidade é essa. O branco na Amazónia não é neutro. Dentro da casa há 15 cm de terra vermelha, que não podem ver, e nas paredes há grafites, que não foram feitas por mim, mas por um local, eu disse-lhe: faz uma faca, uma mulher, só podem ser vistas através das frestas.” Exibe o tronco de uma árvore que tem sintomas de “ambiguidade que me interessa, as ramagens passam a ser braços, o que permite uma multiplicidade de leituras”, “ não se percebe se é um homem ou se é uma mulher”. “Até 1997 ninguém passava cartão à Bienal, Portugal não tinha um pavilhão, na Bienal de Veneza. A Islândia tinha um pavilhão muito bonito do Alvar Alto, e como tinham poucos artistas, emprestou o pavilhão a Salazar e a Caetano. Nesse espaço chegaram a ser apresentados dezasseis artistas. Em 1997 é a primeira vez que Portugal é representado com alguma dignidade!”, “estão a divertir-se ou quê?”. Em 2001 para a exposição internacional colaborou com “Anton Egoyan, num filme em que entre o espectador e o filme é um corredor de sessenta centímetros de largo, o espectador só vê um fragmento do ecrã, o som ouve-se vindo do chão. Foi muito interessante, porque foi a primeira vez que tive a noção do que eram os budgets, eu tive uma reunião com o Anton em Paris, depois em Veneza, porque ele era um dos membros do júri”. “Porque é que eu não ponho caras, nas mulheres? Eu tive problemas sérios, por não pôr cabeças, em 1988, fiz uma exposição em Nova Iorque. Onde normalmente há três inaugurações, na primeira noite surgiu uma comissão de mulheres ofendidas, levei-as para um anfiteatro, coloquei-me no púlpito e disse-lhes que não era um macho, que não tinha ódio às mulheres, não têm cabeça porque são representações genéricas de mulheres!”, “desde que se ponha uma pestana num rosto passa a ser um retrato!”. Em 2002 “comecei uma nova série de trabalhos de silhuetas, fotografo, projecto-as e são pintadas ao detalhe, todas são altamente pornográficas, vocês nem sabem o que se passa aqui dentro (ahahh)!”


Julião Sarmento, Instituto de História de Arte da Universidade de Letras, Foyer do Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra), 12 de Novembro.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Spiders From Mars

As sirenes da patrulha dos militares, ouvem-se, assim como as pás de um helicóptero que está suspenso sobre o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz. Ninguém sai dos seus lugares estofados de tecido castanho, a temperatura é elevada, e sobe com o pano iluminado de azul, e ao abrir-se, descobrimos Ney Matogrosso sentado numa chaise longue, vestido com uma malha vidrada e uma touca com plumas em cada orelha. Abre a sua boca e a voz límpida e incisiva de um guerrilheiro que tem uma “metralhadora cheia de carga”, “eu sou mais um cara”, “o tempo não pára!”, “assim se ganha mais dinheiroooo!”, a raiva da guitarra eléctrica sublinha o dramatismo da canção. Agradece as palmas, “obrigado, boa noite”. O slow é marcado pelo piano, que dá densidade ao, “sou um homem, eu sou um bicho, sou mulher, sou cadeira e a mesa neste cabaret, sou o seu lugar no Mundo!”, a guitarra corta transversalmente a melodia, “sou o certo, sou o errado, o que divide”, esvoaça, coloca-se de joelhos, “na cama”, saltita, vira costas levanta os braços e convida-nos para a “cama”. O tango, tanguei-a, tange-se, toca-nos, dança, dança, “ser feliz não é uma questão de talento”, “o vento leva a gente”, e Ney Matogrosso baila às notas da guitarra acústica, e pára, e tudo converge à sua volta. No quarto tema, o caminho percorrido é a soul da década de setenta, e o drama ressurge “para poder, para poder, comer, dormir”, é o amor que não preenche “a minha tarde vazia”. Tira a touca, veste colares, põe a touca, coloca-se sobre uma pequena rampa, que se encontra entre os percussionistas e o guitarrista, e o teclista e o baixo, excelentes, nota acrescida para o guitarrista. “Onde está você meu amor? Eu preciso de um pouco de calor”, há desespero, medo, “onde está você meu amor?”, a tragédia, “meu carro que não quer andar, essa noite que não quer terminar”, angústia, narrada no singular. A tepidez surge numa interpretação sóbria, aguda, e chega a arriscar “uma fuga contra o tempo”, que “não tem fimmm”, “onde está você? Meu amoooor”. “Eu preciso um pouco de calor, de CAaaaloOOOrRR!”. Abana as ancas, levanta os braços, despe-se ao ritmo das palmas, olha o público fixamente, para ter a certeza que o estão a despir. Vira costas e o teclado leva-nos para o Egipto de mulheres exóticas com cabeça de esfinge, hipnotismo-sensual, é o delírio, uma intoxicação colectiva, “o tempo que antecipa o fim”. O Blues ensimesma-se e Ney deita-se na chaise, levanta a perna da esquerda, as duas, e exibe-as como se fossem de uma anúncio da Coca-Cola para animar as tropas americanas que chacinaram o Vietname e o Iraque, excitante, afrodisíaco? Abre as pernas e canta, “que venha cedo e que abra a porta devagar, que abra a porta devagar, devagar”, levanta-se, “me aperta furiosamente”, filtra com o baixista, “prometo te deixar”, de joelhos na boca de cena. Este pássaro exótico por ser pessoa, viaja através de África, não procura nada, apenas uma batida tribal, com as precursões a marcarem o ritmo e Ney delira, “o que eu quero é ser velho”. A rumba em castelhano “estoy usando mi condena”, “tu sonrrisa como bandera”, “la eternida de las peleas”, os coros: “lo que será, será, será”, o assobio sobre o ritmo, surgem vozes da selva amazónica, despe o tronco e… Regressa ao português e a história é a de um cavaleiro, “ele é filho do vento, é filho do mato”. Solo hard-rock, abre a canção, cheira a bar de alterne, “a noite nunca tem fim”, é a constatação, a reprovação: “porque é que a gente é assim?”, aventura-se por entre o público a esvoaçar, a rasgar a sala repleta de casais conservadores. “Você tem tudo para me conquistar, você tem exactamente um segundo para me aprender a amar, você tem a vida toda para me devorar”, visceral, perturbante. Guitarra acústica, pandeireta, teclado para adocicar, “existem coisas na vida, que até Deus duvida, tem gente que é só sucesso, tem gente prevenida, tem gente já falecida”, os músicos encontram-se concentrados sobre a chaise, o assobio do guitarrista finaliza-a, e o seu rosto mulato é beijado pela ave-cascavel.Regressam os helicópteros a perseguir um preto que cometeu um crime por droga, por fome, por ódio, inveja, tristeza. As sirenes acompanham o foco que o procuram, no escuro do palco. A liberdade regressa neste verso “aqui somos mestiços, mulatos”, diálogo com a guitarra, “aqui somos inclassificáveis, inclassificáveis, inclassificáveis”. O rock é imposto violentamente a contrastar com a voz límpida e aguda de Ney, uma cruz ressalta do cenário.“Não há sol, há sóis”, em rap. A rumba destila dramaticamente, “veja bem amor, onde está você? Somos no papel, mas não no viver, nunca te vou esquecer amorr…”. A loucura é imposta através do disco-sound, do Studio 54, de Nova Iorque, “se joga, se droga, e eu te dou a minha mão”, as luzes espalham-se pelos espectadores, a cobra-pássaro dança, a simbiose surreal da beleza, de Klimt ou Oscar Nimeyer.“Não temos tempo de perder a morte”, Matogrosso, desaparece para os camarins passando por uma cortina que serve de adereço erótico.“Ficar sem a proa, sorrir para qualquer pessoa, eu não quero tudo de uma vez”, e o falseto: “eu hoje, eu sou quero, que o dia termine”, “eu só tenho um simples desejo, eu só quero que o dia termine bem”. A encerrar toda esta transmutação de identidade, como se fosse um objecto lunar procriado para perturbar, com a sua voz de pássaro e cascavel venenosa intoxica a realidade para uma dimensão longe da alienação, acutilância, a batalha em cada nota e o gesto é transgressão, o corpo sublimação, “essa é a vida que eu sempre quis.”

"Inclassificáveis", Ney Matogrosso, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, 26 de Outubro.

sábado, 25 de outubro de 2008

G.N.R

A cobertura é branca e é um caixão ou uma nave espacial, começa tudo mal, a cultura instalada das barracas é cerveja, bebidas coloridas, Dj com três ecrãs a ladearem-no, não há uma máquina de café. Porcos no espeto, hambúrgueres, cachorros e cachorras com o cio, cobertas por trajes pretos com capas de zorro rasgadas, como se fosse a assumpção do pecado. O vento da manhã esfuma os viciados do controle, o cheiro a carne assada humana, será uma recordação, nem mais um soldado anónimo, dormirá neste caixão, sonhando arrogante com o nome da sua batalha banal. Lúcido? Rui Reininho, Toli, jorge Romão= G.N.R. “Espelho Meu” instala o alarme luminoso no palco, sonoramente sofisticado, numa cadência mais lenta que o original, com maracas artificias a marcar o ritmo, balançado, “perguntei ao yé, yé, yé, ao espelho”, as palavras saem submissas dos lábios de Rui Reininho, vestido de preto mas com camisa branca para destoar, “estás a despir-te, neste palco, pareço… ahhaha”. E surge a suples em “Popless”: “tudo o que sobe também desce”, “um peito assim também cresce”, quando se excitam à língua do Reininho e o solo da guitarra, “tudo o que sobe, desce, boca, cabeça à toa”, a deflagração da redefinição da canção pop. “Senhor, senhores meninos e meninas”, “não é por acaso que o processo Casa Pia, vai chegar ao fim, há sempre uma criança dentro de mim, ´mais vale nunca, nunca mais beber, mais vale nada, Jorge duas vezes sem tirar?´”. “Está aquecer no sexo passado”, sobressaem as teclas, e o acordeão esfolia-se devagar, “e o dia não sejas triste, a bússola não sei se existe, aponta sempre para Norte”, “mar” ecoa violentamente, “esperam um gajo parecido com elas.”. “Tenho um filho da Académica, tenho uma filha Juana, tenho um amor em Viana”, a filha, “com o Tony Carreira, foi um plágio, ´perto da esplanada de um bar, todos os bichos-do-mato, efectivamente aqui é diferente`”, “em quem pensa em casar”: num final pop-beat-blues. “Bellevue”, o baixo de Jorge Romão bombeia sangue para as veias e a voz do cantor falha, aceleram o ritmo e o acordeão é um fantasma nesta equação. “Encosto ao vidro o anel de brilhantes, é de fancaria, a fingir brilhantes, e sabem que me escondo na Bellevue”, Rui Reininho ensaia uma peça de Beckett, numa cenografia para realçar o streap-tease das Sugababes, “onde era sangue, é só distorção”, e, “rendez-vous” é ditado em falsete, “jovens vestidos de preto no desemprego”. “Bate-me o coração”, “ninguém comparece ao último estertor, experimento o colchão”. Jorge Romão toca as notas míticas de “Hardcore 1º Escalão” o hino à prostituição na América latina: “Chica?”, “she sucks? Que maravilha!”, e Reininho dá tiros com os dedos para o ar, aponta à cabeça e dispara, “lá, lá, lá”, “She does it, que rico!”. “Viagem para todos os caloiros: Tirana”, as luzes azuis inundam as paredes brancas. “Inventar o Jorge, divertido e letal” com efeitos electrónicos a abrir diferentes perspectivas à canção, o funeral da “Dama ou Tigre”, “por detrás de cada porta há um só destino.”. Com uma caneca de chá na mão suspira, “o destino é vago”, “é Dama ou Tigre?", solo da guitarra blues insidioso a pairar sobre os outros instrumentos. Os efeitos arabescos do teclado, emprestam a “Dama ou Tigre”, uma sublime justaposição comparativamente com a gramática existente no original, a versão que estão a executar na Latada, Coimbra, é mais cinética. “Asas”, a bateria marca o ritmo isoladamente, falha do baixo, que “ninguém, ninguém viu, viu.”. “É Sexta-feira em Coimbra”, “era eu e o Jorge Palma, no bar”, “e falta a tua confissão”, distorção, blues-soul angular. Revisão de “Vídeo Maria.”. A crueldade de, “directa sim… eu, declaro morte ao Sol, oh, oh, oh”, as guitarras adensam-se gradualmente, progressiva, “as trevas vão demorar?”, vulnerável, a guitarra: "aí vem a dor", a substituir na totalidade o solo da gaita de foles, “oho!Oooh!Oooooh”. “Babes and boys, vamos prosseguir com um tema de um brasileiro que nos deve muito e se chama?” Resposta do baixista: “Carlos Queirós". E conduzem o calhambeque de Roberto Carlos, com a Juliana, e o travesti da esquina, a mascar chiclete enquanto, “bebe cerveja”, “vida tão chata”, “onda tão curta”, “moda tão fora, sai”, “que o raio a parta”, “multiplica por quatro, o rádio berra”, “com dezasseis, tem-se de uma vez, o desgosto de se vestir como os Djs.”. As “Dunas” encerram o serpentear dos G.N.R, que se apresentaram como o último legado pop, com a consciência a roçar a demência irónica, que os coroa com a icónica coroa de espinhos.

Latada, G.N.R, Santa Clara (Coimbra), 24 de Outubro.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Dancing Queen

O Parque da Bela Vista está composto por cores exóticas, as mulheres retiraram a sensualidade do armário, ao exibir decotes generosos, cavaleiras de chapéu de cowboy, muito “Music”. É o mega-concerto da Madonna, cinquenta anos, branca e americana, amiga de Andy Wharhol e de Keith Haring. A artista atrai 70 mil pessoas, a um anfiteatro incapaz de oferecer conforto ou visibilidade adequada para o palco, mas onde resistem três gerações, tias perfumadas e com plásticas envelhecidas, adolescentes, casais de mão dada.O palco é constituído por quatro partes: uma estrutura amovível que se encontra sobre o palco principal, uma passadeira que permite o acesso a um outro palco mais pequeno e circular com elevador, mecanismo também usado nas laterais (do palco principal), para permitir a entrada e a saída dos bailarinos e não perturbar os excelentes músicos que a acompanham. A animação nos ecrãs, induz os portugueses para a biografia musical de Madonna, que surge sentada num trono de estofo preto, com as pernas abertas e uma bengala na mão direita, casaco de cetim negro. Desce os degraus que a conduzem para a boca de cena, os bailarinos despem-na, “dance floor”, “Hello Lisboa!”, ou, a conduzem para dentro de um carro dos anos cinquenta prateado, que circula sobre a passadeira e faz a rotunda da direita para esquerda. Madonna abandona o veículo e empurra-o para a garagem, para cantar “Human Nature”, à guitarra distorcida. Revive “Vogue”, “I `m not your bitch!”, coloca-se na lateral direita e desaparece estaticamente, as palmas bombeiam o Parque. Vídeo projectado nos ecrãs: “Die Another Day”. Transforma “Into the Groove”, num ginásio com adolescentes a brincar na hora do recreio das aulas, predominam os fatos de treino Run-D.M.C, do “into the Groove”, dos anos oitenta. “Borderlaine”, “loose my mind”, é transcrita numa vertente distorcida com a rainha da pop à guitarra, “ladies are you going to fuck with your boyfriends?” Em “She is not Me”, Madonna confronta-se com quatro mulheres, instaladas no exterior do segundo palco, revolta-se com a presença da Madonna-virgem, Madonna-marilyn, Madonna-streaper, Madonna-efémera, “she is not me!”, dança e os carros animados encontram-se num choque frontal e a música pára e as luzes apagam-se. Ouvem-se os coros “last night a Dj save my life”, e Madonna gatinha na passadeira em direcção ao palco principal, ergue-se para cantar “Music”, “boogie, boogie”, pouco antes do fim a cantora-ícone encena um orgasmo, inclinando-se de frente sobre o palco. Vídeo: “Rain”. O ecrã led circular, que ilumina o segundo palco, desce e encobre-o com uma luz aquática, entreabre-se e descobrimos Madonna-romântica sobre um piano negro, slow, “Devil Won`t Recognize you”. O centro de luz ergue-se, a cantora-actriz despe o casaco e a forra do casaco cor-de-rosa cobre o piano, os bailarinos totalmente encobertos com hábito negro, quando os retiram surgem toreros: “obrigado Lisboa? Habla español?”; “besa-me, besa-me mucho, are you having good time? Are you going to sing these song? Do you promise?”, sobre a cantora o ecrã circular emite imagens do terceiro mundo. “La isla Bonita” é irmanada com um grupo de ciganos do leste, que a retalham em “Lela Pala Tute”, um quadro cénico à Zorro. E as imagens dos ecrãs flutuantes emitem Madonna ajoelhada, que ouve “Doli Doli”, e contempla o universo dos explorados. Com o apoio do trio em regime acústico canta, “You Must Love Me”, com imagens de um filme de Hollywood em fundo, é encoberta pelo ecrã led circular, e sai de cena. Vídeo : “Get Stupid”, o voto da “Sticky and Sweet Tour” à campanha de Obama. Os bailarinos colocam paralelamente ecrãs que circulam pelo palco, ouve-se o “tiquetaque” de Timbaland. Madonna dança com Justin Timberlake, que em quatro minutos querem “save the world”, através de um jogo de sedução. “Life is a mistery”, ganha uma ovação colectiva, um dos bailarinos negro encarna Jesus Cristo, o tecno toma partido do ritmo, “feel like home”, dramático, com os ecrãs a arderem. “Ray of Light” à guitarra e cantada sem o apoio das coristas, é uma canção falhada, o erro, desafina e o vento perturba-a. “Do you want to hear a song? How about a old song? Will you sing along? ´Your love is real, Express Your Self”, as palmas acompanham os acordes da guitarra da Madonna, “that`s an extra!”. “Tell me, is these song, is that you are going to sing along? Are you fucking ready?” é a Madonna travesti rodeada dos bailarinos: “time goes by, so slowly”, com sample Abba, “I`m the Queen, the King… Mothefuckers” e as guitarras distorcem, roçadas nos amplificadores a pontuar e rebeldia de uma outsider. Madonna convoca Pharell para cantar “give it to me”, “give me a record and I break it”, “give it to me yeah!”; “give it to me Lisboa, it`s your last chance, give it to me” reina a apoteose, Madonna, despede-se: “Game Over”. “God Save the Queen”.

“Stick and Sweet Tour”, Madonna, Parque da Bela Vista (Lisboa), 14 de Setembro.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Twin Peaks

1- Estou num não-espaço. Terreno baldio junto a um cemitério, o bilhete para os dois dias do Festival Brenha Arder, é de dez euros e permite conhecer bandas punk-rock, beber Super-Bock, sentar algures sobre o pasto arenoso iluminado pela Lua cheia e acometido por um frio crescente. No primeiro dia, predominou a vanguarda do noise-metal. “Bora lá pessoal somos os M.O.T.U”, a voz distorcida numa língua inexacta, “boa noite caralho! A próxima malha é ´Six Full`”, e, “isto até tem fumo sem ser das ganzas”, o guitarrista da direita: “diz não à heroína”, o baixista tem rastas, o quinteto veste roupas escuras de cabedal.
O Festival começa a ganhar força com o power-trio Freedom, descendentes de um expoente sonoro violento, agressivo, quer no ritmo ou na distorção, o vocalista/guitarrista ainda é adolescente, mas a bateria e o baixo distorcido completam o vértice, perfeito-punk-noise.
Os Motornoise, são do Porto, “não se nota pelo sotaque?”, pergunta o vocalista careca, de estatura baixa, que digladia para segurar o microfone das investidas do público, ele aproveita para beber. O saxofone é devedor de Zorn, mas há partículas de Morphine, “tu aí o que estás a pensar?”, questiona o Frágil. “Esta música é dedicada a todos vocês que não gostam de rezar”, a sua voz ganha uma pausa inesperada, que flutua no ar, a banda marca o ritmo fúnebre, o vocalista de mão direita ao microfone e a outra no ar, as luzes estáticas iluminam-no, durante o espectáculo bebeu de um garrafão, “lá, lá, lá”, e tudo o que criaram através da harmonia, destroem-na numa aceleração distorcida.
O quarteto SubCaos, são rapazes de cabelos compridos, caem à cintura, a tatuagem do guitarrista com a cruz de Cristo no ombro direito, debita solos épicos em canções pungentes, e o vocalista é o elemento que une todos os outros músicos, num efeito de dominó paradoxal.

2-Estou num espaço entaipado, com barracas da Super-Bock, uma mesa de mistura, punks, ex-punks, rockabillys. A afluência à hora do início dos Factor Biótico, é escassa. A cantora, movimenta-se a dançar e canta letras, como: “sou o último punk de Portugal”, sobre estruturas melódicas naïfs. “Arrastados pela lama”, pop-rock que rima com “cama”. “Parecem orelhas gigantes”, a cantora cobre a cabeça com um capucho tricotado, saia comprida e sandálias completam a sua indumentária. O guitarrista, “a Isabel é a primeira mulher [a subir a um palco] no Brenharder!”.
“Não há mulher que não me resista, não há fogo que não arda”, a voz dos Midnight Priest, ora é declamada ou cantada, a primeira parte é composta pelo refrão. Um quinteto corajoso: “Como é que é caralho?”. É frequente subirem ao palco retirarem-lhe a voz, que passa de boca em boca, numa ampla e democratica anarquia. “Esta é para quem gosta de punk/metal, do verdadeiro, quem não gosta, o cemitério é já ali ao lado!”. “Como é que é caralho, é para a facada?”, é a introdução para uma canção dramática, durante a qual ninguém lhe rouba o microfone.
Killer Karma estão no epicentro nu-metal, que foi enterrado nos Estados Unidos, bandas como os Korn já faliram, os Rage Against the Machine, dos quais tocaram uma versão, reuniram-se para os festivais. As chamas próximo da entrada, parecia que estavam a deflagrar nos tapumes, o público foge para o exterior do perímetro do recinto, os Killer Karma desligam-se da corrente. Homens com caixotes de lixo com água, correm sobre a terra árida e apagam a crista luminosa, após gritos de pânico entre os membros da organização.
Os Capitão Fantasma são um foguete de demência, um shot-billy, comandados por um guitarrista talentoso, a lançar os riffs numa cadência incendiária. Do seu lado esquerdo, delira o vocalista, de rosto esguio que se prolonga numa careca cavernosa, os óculos escuros impedem-nos de ver para dentro de Brutos. “O teu sutiã cai no chão, faz-me sentir”, e mete a mão sobre o coração, é um poeta das ruas calcorreadas por Nosferatu: “O que é que é mais doce do que a morte?”. Brutos é favorável aos touros de morte, “vai”, “para te levar”, “esquecer”, “auuuuu” e atira-se para o chão e erguendo as pernas para cima, dobrando-as, como uma morte macabra. Os Capitão Fantasma estão “à margem da lei” com o guitarrista a partir uma corda, “o que fizeste não tem perdão”, socorrendo-se de uma outra viola que se subjuga às necessidades: “Cidade Suja” e Brenha arde. Brutos trepa às colunas e atira-se, “dei-te o meu amor”, “cabra do caralho, vou-te matar! Cabra do caralho, vou-te matar!”, “podes esconder, mas não irás escapar, já matei o teu amante, a seguir vou-te matar!”. Próxima: “Lisboa em Chamas” leva Brutos a cabecear o palco, e o guitarrista a delirar: “tudo à estalada!” Soberbo.
Os Bunnyranch liderados por Kalo (voz/bateria), de calça branca e blazer preto, entra em palco e vem recolher as palmas que não eclodem. São um agrupamento de rock and roll americano, numa aceleração rítmica do blues, para suportar a voz do cantor. Que podia ser um vendedor da Bíblia ou um ex-Tédio Boys. Os interludios são acompanhados por comentários do Kalo: “não precisam responder, já estão todos com uma grande bezana? Eu vou trabalhar para isso quando sair daqui.”. Às primeiras palmas rejeita o público: “é suficiente obrigado!”. “Esta música é dedicada ao Boo Didley e ao Belmiro de Azevedo. Esta música faz parte da campanha da Worten. Estou muito mais rico? Mais rico, meus caros”; “´To fuck to Boogie`, está à venda junto na régie”. A constatação: “eu conheço a maioria das pessoas que estão aqui: o Dr. Vasco, o engenheiro António, o jovem empresário que não vou dizer o nome dele, mas ele sabe…” . “O Verão ainda não acabou, este é um dos nossos primeiros singles. E alguém um dia vai conceber uma criança ao som desta música”. “Can´t stop the ranch, can´t stop the ranch!”. “Nós somos os Bunnyranch, vocês, foram Brenha Arder!”

Festival Brenha Arder, Brenha, Figueira da Foz, 12/13 de Setembro

sábado, 13 de setembro de 2008

Manoel de Oliveira

É uma overdose, será o termo mais adequado? A displicência é algo que se acomoda lentamente com o passar dos anos? Pouco importa. O Museu Serralves está consignado à penumbra, a razão desta iluminação prende-se ao cineasta Manoel de Oliveira. Os comissários desta exposição foram o Presidente da Cinemateca Portuguesa, João Bernard da Costa e João Fernandes, director artístico da Fundação.
Numa das salas principais encontra-se uma máquina de projecção onde roda um filme de 57 milímetros “O Homem da Câmara de Filmar” , obra que influenciou o realizador no início da sua carreira. O filme é de Dziga Vertov, é-nos permitido conhecer a máquina usada na sala de montagem pelo realizador.
De seguida, metade do Museu rende homenagem ao mais ancestral dos realizadores, as paredes são usadas para projectar filmes como: “Douro, Faina Fluvial”; “Acto da Primavera”; “Benilde ou a Virgem Mãe”.
Instalaram cubículos de madeira onde é permitido sentar e ver com mais exactidão os filmes do Mestre, usufruir do tempo e senti-lo, subjugar o ritmo do Porto, à pulsação de capítulos da história do cinema. Seja a sua relação com o documentário, pintura, a censura da Pide aos guiões, e à sua relação com o teatro e a literatura como é o caso, “O Passado e O Presente” de 1971.
Toda esta dinâmica de ecrãs suspensos, telas que são paredes, fotografias, cartazes, imprensa, argumentos manuscritos, confissões à João Bernard da Costa e a Agustina Bessa-Luís; é abrasador, violento, desconcertante, perpetua e enaltece uma memória fílmica que deveria constar dos manuais escolares, celebrado anualmente e elevado a feriado. Viva o Mestre! Viva Manoel de Oliveira!

Manoel de Oliveira, patente de 13 de Julho-2 de Novembro

“Todas as Histórias” ocupa a sala inferior de Serralves onde há salas escuras, através de headphones ouvimos as vozes dos actores. Dos ecrãs podemos ver um filme de dois ângulos diferentes em simultâneo, e, a rotação da câmara sobre um casal pintado a sépia, o vídeo também é usado como suporte em “Rua Islam”. Obras assinadas por Tacita Dean, Marcel Broodthaers, Michael Snow, Cristian Boztanski, Francesco Vezzoli, João Onofre. Desta forma o espectador pode visualizar a vanguarda do documentário, ou, da falsa ficção, da repetição de um plano, a frase e o rosto perturbado de uma actriz que está preparada para o seu close-up.

“Todas as Histórias”, patente de 26 Julho-02 Novembro

O sul-africano David Coldblatt apresenta fotografias de media dimensão coladas directamente na parede. São retratos essencialmente do passado, e do presente. Vemos rostos negros, cemitérios, crianças descalças, olhos com hematomas, sinais de trânsito que discriminam os pretos/negros que eram escravizados por uma minoria africânderes. Que impedia a comunidade negra de circular em artérias “brancas”, o casamento entre ambos era proibido, o olhar, a crítica sobre um branco era ameaçado de prisão e violentado à queima-roupa. O Apartheid manteve cativo Nelson Mandela, condenado a prisão perpétua, por somente exigir a igualdade racial. As fotografias são testemunho do princípio e do fim de uma segregação que acabou em 1987, apenas há 21 anos. É emotivo ser testemunha desta tragédia, deste apocalipse racial, que vitimou gerações de seres humanos.

“Intersecções Intersectadas”, patente de 25 de Julho-12 de Outubro

Museu Serralves, Museu de Arte Contemporânea (Porto), 12 de Setembro

sábado, 6 de setembro de 2008

Palácio Sotto Mayor

A tarde está tão copiosa que sentenceia um Verão de chama vã, que arde com as barracas na praia, onde se recostavam os conimbricenses e castelhanos, há mais de um século que é assim. Para que mudar? À porta do Palácio Sotto Mayor está um polícia, uma senhora muito bem composta e escuteiros, que entrega o bilhete para “Sentidos de Estado”. Uma colectiva de obras de arte provenientes do Museu da Presidência da República, que foi inaugurado por Jorge Sampaio, pouco antes de abandonar o cargo.
A exposição inicia com bustos em bronze de Manuel Teixeira Gomes, Costa Gomes, Ramalho Eanes, e a estatueta de Sidónio Pais, todas da autoria de Irene Vilar; já o de Cavaco Silva é em terracota e tem a assinatura de José Dias, Mário Soares pertence a colecção particular e foi Lagoa Henriques quem o esculpiu. Este grupo, é constituído por peças de cariz moderno, tecnicamente irrepreensíveis, e a matéria nobre eleva-as a peças de recorte clássico.
No capítulo do óleo sobre tela: António Spinola está fardado com as insígnias do exército, sentado num maple, sob os braços e sobre as pernas, tem um livro e do seu rebordo lê-se: “Portugal e o Futuro”, obra que assinou e que causou impacto em 1974. Atrás de si, a perspectiva encaminha-nos para uma parede cinzenta, discreta que pretende sobressair o antigo chefe de Estado, do pós-25 de Abril. Tem uma dignidade inerente à sua postura, e o seu olho direito coberto com um óculo, empresta-lhe um pormenor excêntrico. Está datado de 1988 e assinado por Jacinto Luís.
Paula Rego é de facto um génio. As suas pinceladas transformaram um homem frágil, inseguro, desatento, palavroso para esconder o excesso de fluidez de ideias, num Presidente da República: Jorge Sampaio que teve a coragem de destituir um Primeiro-Ministro, incompetente com laivos de egocentrismo ditatoriais: Pedro Santana Lopes. Sampaio está sentado num cadeirão de veludo e de madeira banhada a ouro, atrás de si um pano verde, as cores nacionais cobrem uma mesinha, do lado esquerdo do Presidente, onde abre os olhos a República. Parecem meia dúzia de traços, em que Paula Rego engrandece Jorge Sampaio, apesar da leveza das pinceladas, como se o óleo e a tela estivessem omnipresentes.
Não se encontra o famoso retrato de Pomar a Mário Soares, em que este tem o rosto feliz e a mão direita levantada, e os traços a fazerem sobressair o seu corpo engravatado. Mas apenas um grande plano do rosto redondo do ex-Presidente da República, de Júlio Pomar.
Numa sala está um serviço de mesa: pratos e copos com as armas de Portugal, terrina no centro da mesa, salva e candelabros de prata, sobre uma toalha branca, poderíamos imaginar a receber Ceauşescu ou José Eduardo dos Santos, Reagan, Kadafi.
Há presentes oferecidos aquando da viagem ao estrangeiro dos representantes do Estado. Do reino do Gabão, uma figura feminina em pedra e ouro. Medalhões com a esfinge de João Paulo II. As estrelas deste grupo são o presépio oferecido por Yasser Arafat, em madeira de oliveira e madrepérola, e uma salva de prata de dimensões generosas comemorativa dos 500 anos de independência do Brasil.
A partir deste ponto em diante a colecção sublinha o óleo sobre tela de Eduardo Malta, que colocou num varandim Oscar Carmona, que tem Lisboa atrás de si. Obra de elegância e astúcia extrema, conjugando perspicazmente as cores quentes e frias, sumptuoso, brilhante dado o equilíbrio entre o retratado e a capital.
Apresenta o busto de Teófilo de Braga, Bernardino Machado, Manuel Arriaga, como se o curador desta exposição fecha-se o círculo da narrativa. Apenas abriu um posfácio nas viaturas que se encontram nas cavalariças: duas carruagens provenientes do Museu Nacional do Coche, e Mercedes Benz 600 S de 1966, Citröen Prestige CX de 1986.
“Sentidos de Estado” é um agrupamento sintético das obras pertencentes à presidência. Que permite uma aproximação à história da República, espelha Portugal através de elementos simbólicos, ou, representa os gostos dos Presidentes da República, e consequentemente o dos portugueses, naturalmente sóbrio e austero.

"Sentidos de Estado", Palácio Sotto Mayor, Figueira da Foz, 5 de Setembro, patente de 21 de Julho a 5 de Outubro.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

João de Ruão

João de Ruão é um dos artistas que marcou particularmente, no século XVI, a cidade de Coimbra. Vindo da Bretanha à procura de trabalho em Portugal, onde se estabeleceu como escultor, a sua obra é vasta e o seu engenho e arte é reconhecido como subtil, inteligente, delicado. Este artista fez a transição do Renascentismo florentino, a sua primeira fase, para o Maneirismo com clara influência greco-romana. Esta capacidade de se adaptar a estéticas diferentes, mas não opostas, é a prova que tinha uma capacidade insuspeita em se adaptar a novos tempos e desta forma actualizar a sua linguagem. As imagens que cria são predominantemente religiosas, ocupam lugares de destaque nas igrejas, onde o seu nome será relacionado com a capacidade de transcrever uma linguagem delicada mas eficaz. Não esquecer que um artista sofre e cresce em público, isto é, será avaliado pelos seus conterrâneos e julgado por estes. É este o facto que torna tão complexo o trabalho de um artista: a relação que mantém com os destinatários. Se o encomendante era quem decidia a imagem icónica que pretendia, o executante teria que inflectir no sentido do pedido, não existia espaço para a divagação estilística, e, ou liberdade para concretizar o que bem entendia. João de Ruão é um caso de sucesso, homem que desenvolveu o seu “mister”, é a partir deste que percorreu o caminho árduo da representação de Santos, Virgens, e todo um conjunto de elementos que se impunham ao olhar e a partir do qual os católicos descodificavam os mistérios que a Bíblia encobria, dado o facto da grande maioria ser iletrada. A arte desempenhava um papel caquéctico dada a sua verosimilhança: mediadora entre profano e o sagrado. O povo reconheceria o gesto dos braços, a colocação da mão sobre o rosto branco e o olhar colocado sobre o ângulo da visão do espectador a questioná-lo sobre a sua fé, e em simultâneo, obrigá-lo a reconhecer-se num espelho. A importância da arte é relevante ao ponto de ser assumida duplamente: é decorativa mas simultaneamente ideológica, tendo esta dupla função, João de Ruão é o narrador da esperança que de dia para dia nos aproxima do além, e da igreja, do Senhor que se afirma como fiel condutor de um presságio eterno.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Stonehenge

Fundo de verde submergido em formol com a inscrição “Combine Harvester” e sob este título, duas locomotivas do início do século passado. Surge um quarteto de punks que semeavam Picadilly Circus, com o cabelo espetado e alfinete a perfurar a face, a escarrar e a prostituir-se por um charro. Transformados em Sex Pistols por Malcolm McLaren, estilizados por Vivienne Westwood, incendeiam os jornais ingleses com reacções radicais contra o sistema profundamente conservador. Estão a tocar no palco principal do festival Indie de Paredes de Coura, com a cerveja ao preço da gasolina. Johnny Rotten, o cabecilha do gang, veste calça de padrão inglês e uma t-shirt, sobre a camisa larga e negra, com a legenda Sex Pistols, para que não restem duvidas! A bateria tem as cores da Union Jack, que filia a Commonwealth, são os punks! “I am an antichrist, I am an anarchist, Don’t know what I want but, I know how to get it, I want to destroy the passerby ‘cause I wanna be anarchy! No dogs body!” São uma película radiofónica de Londres de 1977, e depois? “God save the Queen, She ain't no human being, There's no future, In England's dreaming”, quando trepou pelas tabelas de venda o nome da canção foi censurado, era a revolução? “No future for you” era o que os Sex Pistols ofereciam, nada mais. “Obrigaaado Portugal”, abre os braços e suspende-os a ironizar, movimenta-se como um boneco alcoolizado, rotinado a ir ao bombo onde emborca da garrafa de whisky, e esborrifa para o ar, num chuveiro dourado, mais um elemento cénico com origem num gesto tresloucado, desdentado, balofo que se desloca juntando os bicos dos sapatos de verniz, abre os olhos para exorbitar as orbitas e ganhar a dimensão suicida, enraivecida. A insultar constantemente os técnicos de som, e a censura a dois espontâneos, recebe o aviso: “Don`t you ever do that! This is my place, there is yours!”, e aponta para o vale preenchido de rostos que não reagem, num corte de um fotograma do passado que não querem reviver. Steve Jones, carrega na distorção, ecoando os acordes de uma geração que usava suásticas como elemento decorativo, pintava os cabelos de vermelho, sujo, lixo, história: Johnny Rotten, bateu com o microfone na cabeça, bum, bum! SEX PISTOLS!

Festival Paredes de Coura, Sex Pistols, "Combine Harvester", 31 de Julho

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Bansky

“Violet como é que se faz?, ´Quando me vens com essas métricas a-b-b, não sejas bué C.C, mas mesmo que não dê, mas como é que é? Porque é que é, como é, quando é,é,é,? Tu vais meter essas FF words, porque esses fins de frase, hoje em dia já enjoam, este é o fim da fase, estruturas que não destoam. Boy, eu vim da base, e as minhas rimas já ecoam`”, e, “tu és muito lento, precisas de muito alento para teres o meu talento”, “essa cabeça é monocórdica”, e as A.M.O.R questionam-se: “Será que já ouvi algo parecido?”. São um duo de Alcântara, “elas dançam como eles, cantam como eles, mexem-se como eles, até se vestem como eles”. Quando as vozes de Mi e da Violet se entrelaçam as canções ganham um dinamismo hip hop sedutor, com uma produção imagética do Bronx. “Girls assumam-se como girls que são! Quero ver little sisters em total comunhão, com quem está nas listas de artistas no feminino, eu só te peço que insistas, que tornes o macho num menino”. A revolta das A.M.O.R em “Abecedário”, “eles cagam na cena”. “Cor-de-rosa” é uma obra extremamente ousada e exuberante, estranha e simultaneamente extravagante, as vozes e os beats conjugam-se com a melodia, ora pop sintético, ou, gansta-rap com reminiscências de LL. Cool J., quando era produzido por Rick Rubin em Nova Iorque. Algo que é evidente em “1”, recuso transpor o texto e relatar o circuito das vozes. “O que é que fizeste a cinco de Outubro? Estavas a leste e nós ao rubro”, e, “nós com a agenda vazia o que é que a gente fazia? Vamos mudar a vida em só um dia. Já sei, borá lá ser MCs. Não sei, mas temos raiz? Ouvimos. Conhecemos. Decoramos, yeah nós somos bué rapers! Não temos beats! Temos the beat generation. Não temos griefts!”, “só? Yeah, só? Um ano. Ooooo. Um ano. Oooo. Escrevemos grande letra, arranjamos um grande beat, chamamos-lhe ´Abecedário` e foi um grande hit. Rádios pediram o som. Djs pediram o som! Já nos pagavam copos”. A.M.O.R, “chegou a Inglaterra, Alemanha e Brasil, agora estamos na berra mas chill. Primeiro concerto foi desconcertante, apareceu tanta gente que a porta fechou antes, e quem ficou de fora esperou mais de uma hora, só para nos ver, antes, de irmos embora. Naturalmente convidaram-nos para um segundo gig”.
“Cor-de-rosa” é um CD-R que agrupa três originais e duas remisturas de “Reality Check”, na capa consta um bebé e uma criança, sobre os seus rostos encontra-se grafitado a cor-de-rosa: A.M.O.R. A banda terá álbum em 2010, o que parece longínquo e incómodo esperar por algo tão sexy. Este Verão é abalado com estas canções e que sugere, “ao contrário do que dizias, A.M.O.R é eficiente”, descarreguem da net para o Ipod, Iphone, telemóvel, ofereçam a amigos o futuro do hip hop.

A.M.O.R, “Cor-de-rosa”, edição de autor.

sábado, 19 de julho de 2008

Magnólia

O jardim em declive empurra o público para o palco do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, que espera pelos The National. Entram no palco suados e a cor dominante das roupas é o negro e o verde, “Start a War”, dá inicio a um concerto que revela novos arranjos em algumas canções, apoiados numa secção de metais discreta mas eficiente. Brett apresenta a sua voz de forma poética, quando “Muder me Rachel” eclode, a temperatura é uma brasa que queima a pele e a cicatriz não é algo passageiro, antes, eterno, pessoal e intransmissível. “You are worst than the irish”, o guitarrista ri, da sua perspicácia perante o público que canta uma música que não irá constar do alinhamento. É certo que estamos perante uma máquina que de cada acorde cria uma instalação sonora que é acutilante e dilacerante, agreste ou delicada. “Fake Empire”, sobre a utopia do sonho e a sua materialização através do amor. Quem esteve neste espectáculo perceberá as diferenças entre o do Alive, que foi oposto, em que Brett desejou “Sun, go down! Down!”, em Guimarães o monumento ganhou por fim contornos de efemeridade que o tímpano jamais irá olvidar.

Festival Manta, The National, Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, 18 de Julho

terça-feira, 15 de julho de 2008

Manuel de Brito

Manuel de Brito (1928/ 2005) foi proprietário da Galeria 111, desde 1964, onde expunha autores de vanguarda como Noronha da Costa, Mário Botas, Nikias Skapinakis, Jorge Martins, e Paula Rego. Algo, que foi representativo da sua capacidade de reconhecer antecipadamente o valor estético desta artista, que na década de setenta construía os seus trabalhos através de colagens soturnas e agressivas. Não são essas as obras que constam na exposição colectiva, no Centro de Arte Manuel de Brito, mas antes aguarelas com capítulos de Lewis Carroll. Veira da Silva crava no papel uma fachada de um edifício da Mouraria, ou, o silêncio em dois trabalhos monocromáticos de azul e cinzento de Fernando Calhau. Nesta colectiva, constam os artistas plásticos portugueses mais representativos de cada tendência estética, dos últimos trinta e três anos de democracia. A exposição denomina-se: “100 artistas à Volta do Papel”, este suporte é picotado, esculpido por José de Guimarães numa mascara tribal. O Marchand doou a sua sumptuosa colecção a Oeiras, instalada num Palácio neo-colonial azul com excertos para ganhar espaço de museu. As obras apresentadas (uma infima parte de todo o acervo), apesar de serem de autores díspares, sobrepõe-se uma narrativa e isso é que lhe dá vida.
Em Outubro estará Paula Rego a ocupar a totalidade das seis salas.

12 de Julho, Centro de Arte Manuel de Brito, “100 Artistas à Volta do Papel”, patente de 31 de Setembro a 21 de Setembro

domingo, 13 de julho de 2008

As Vinhas da Ira

Dia de calor ou apenas estufa-fria variante de alcatrão quente, os comboios passam velozmente e acordam as gaivotas que cruzam o céu enviadas para limpar o lixo. As pessoas andam devagar num tempo preciso de submissão à temperatura ardente, fogo, fogueira ou sol onde ardem florestas de almas ou serão corpos no Tejo que banha paralelamente o cenário do Optimus Alive? Postos de abastecimento de Sagres, hot dogs, pizzas, W.C, e há mulheres vindas do estrangeiro, de vestidos de seda até aos joelhos, tops de alças, tops azuis, meias brancas, sapatilhas, saltos altos, pisam a terra batida que separa o palco Optimus e o Metro, pelo meio está uma área de dança, com palmeiras de bambu a imitar o harém do Rui Reininho, de branco a engatar uma adolescente de biquíni que dança sobre a lama. Perco a merda que trazia num dos bolsos onde o papel higiénico é riscado por uma caneta permanente vermelha para me recordar que sou mortal, sanguinário ou simples atrasado mental que não consegue sair da cadeira de rodas. Descubro as a.m.o.r , o duo mais sexy deste festival de ébrios, drogado, alucinado, disparo o flash sobre os seus sorrisos de adolescentes e melenas louras, beijo de despedida, amor? Há quem diga que estou aqui para ver os National? Há quem me cuspa na cara com o preconceito do costume? Envio uma mensagem mas as gaivotas perseguem os pombos para lhes comer a cabeça, excêntrico desejo? Concerto frio e distante, longe do oferecido na Aula Magna, mas com momentos para suspender no museu da arte efémera. Encontro rostos conhecidos que enterrei em Évora, numa peripécia que me levou seis anos de vida, a derreter o tempo para fugir dali, abraçar mar e por fim morrer. Equivoco construído com vista para um futuro perpétuo, relutante e promíscuo, acelero para longe deste precipício, que fere os ouvidos numa Eurovisão que vai ser ganha pelos Gogol Bordello, um número de circo com bailarinas e um violinista que abandonou as ruas de onde nunca deveria ter saído. “Is there someone who wants to fuck me? You can go backstage and I `ll fuck you!”, o vocalista dos The Hives repetiu esta private joke três vezes, e em cada uma delas tentei esgana-lo, partir-lhe a boca com umas botas de biqueira de cimento, para que não se esqueça de mim, aos mortos nada se lhes pode privar, vistam-me de homem aranha antes de entrar no forno, cuspam-me na cara se estiverem vivos. E cantem como Zack, dos incendiários Rage Against the Machine, que rappa contra Bush e toda América branca, preta, amarela, verde, vermelha, que tem o mundo como refém, violento, concentrado de distorção sobre ritmo funk.

Dia 2: Relutantemente escurece e apresenta-se a lua em estado de graça à espera de dar à luz. O vento insinua-se através de uma brisa discreta, suave que me arrepia a pele de caveira datada de 1972, fardo de tempo, peso, leve ou o contrario também serve desde que não peças mais uma música nem cerveja. Ser subjectivo gratuitamente e cair no poço da beleza, que venham todas as mulheres que me levaram ao epitáfio da poesia, e às linhas snifadas de um livro assinado por Cervantes, épico e burlesco, cada vogal ou consoante, verbo difuso utilitário, caixão de cartão para poupar as árvores que nos alimentam a respiração, tóxico solitário. Tenho amigo ausente algures num quarto a compor a melodia que nos falta ouvir, sitiado de máquinas que ouvem o pulsar, cavaquinhos e um megafone, de onde grita o seu nome: João Aguardela. As estrangeiras estão bronzeadas como se estivessem revestidas de uma película brilhante, apalpo e exala o perfume doce, rosto delicado de poesia convexa e sexo introvertido, húmida, um fungo exorbitante de hipérbole. Beijo-a no momento em que Bob Dylan sobe ao palco, com o seu grupo de amigos com os quais verteu umas garrafas de Jack Daniels, enrolou uns charros, e riu. Os meus apontamentos ditam o seguinte: esteve em pé no órgão, e cantou como se estivesse sozinho, as músicas tinham sempre a mesma estrutura, solo da guitarra eléctrica/solo da harmónica de Bob/ a banda atenta as deambulações do mestre, no encore cantou “Like a Rolling Stone”. Foi-se embora, não sei quem é ele, se é o mito se o cadáver do mesmo, enterrem-no de chapéu de feltro e fato preto com uma fita branca nas laterais das calças. Colocam no palco umas esculturas de anjos negros, cópias góticas, mas de esferovite para lhes retirar peso, é colocado um tecelão atrás do baterista e do teclista com um anagrama: Within Temptation, a distorção das guitarras é constante, entra em conflito com a voz etérea de soprano da cantora morena, de cabelos negros compridos, com um corpete e saia brancos, a sua silhueta é o corpo de uma estátua em movimento, que canta histórias da novela das seis da tarde, que o amante fugiu com outra na hora do altar e de enfrentar o padre e outras misérias rocambolescas, “today is my birthday” anuncia a soprano, parabéns.

Dia 3: No palco Metro, sob uma tenda rectangular acumula-se o pó que o vento forte levanta, em cada onda a toxicidade é inspirada, rodam copos vazios, as saias são violadas e os cabelos conspurcados. Um dos donos das roulottes encharca o chão com uma mangueira, algo que é insuficiente para fixar a terra batida, o frio colhe os ossos devagar e poderia fazer uma comparação com algo relutantemente tétrico, mas faz parte do jogo de representação, sou uma simulação de sentimentos, apenas me exibo para me curvar para receber as palmas. Na pista do harém do Reininho vem o tecno que os machos gostam de dançar e as fêmeas pavoneiam-se numa sublime contra-cena, o jogo de costumes que acaba num W.C portátil para anular com a ansiedade. Não sei onde deixei os livros de ponto, onde gravo os acontecimentos dignos de registo, para evitar a repetição e o facilitismo das frases feitas, e ultrapassar um bloqueio artístico. Abandono a angustia e leio sobre os Midnight Juggernauts: “palhaçada com sintetizadores nojentos, um trio de gajos que parece que não lavam os dentes desde que nasceram, não fazem a barba ou cortam o cabelo e as canções são tão más quanto a dos Europe, a única banda familiar nas redondezas deste grupo de vadios que agradam os estetas que ignoram os cânones do belo”, puff, que merda, e onde é que andas? Perdi-te no primeiro dia! Estou sentado a pensar em ti, escreverei um poema eloquente, algo que dissipe a fealdade deste cubículo, esteja o céu negro e o trópico a palpitar num telemóvel onde te escrevo a mensagem: vai começar a tocar a Róisín Murphy, a ex-vocalista dos Moloko, que troca de roupa de beat após beat, brinca com as duas coristas, canta, dança, nunca tira o chapéu, beat, beat, sem intervalos, vira o traseiro para o público, abana-o, beat, beat, abana, e provoca um aplauso generalizado, Róisín é chama inglesa, é elegante, é popless. Deixo-a a cantar e avanço pelo pó para o palco principal, onde está instalada a alma de Neil Young, canadiano que tem uma vida sofrida, quase morreu nas mãos de um aneurisma cerebral, tem um filho com insuficiência mental, e desde que pegou numa guitarra que anda a cantar sobre a verdade de John Steinbeck. Há um profundo humanismo nas suas canções, ao longo de décadas colocou-se no lugar dos trabalhadores, do imigrante ilegal, dos índios expropriados e vítimas das doenças venéreas e vícios dos brancos. Executou um furacão de solos que rasgavam as canções violentamente, mexia-se como se fosse o seu primeiro e último concerto, a hipnose surgiu gradualmente. Young fecha os olhos enquanto canta e a sua boca ganha uma expressividade extraordinária, salta, senta-se no piano e instalamo-nos na sua sala de estar, repleta de pianos velhos, instrumentos de percussão, slides-guitars, um dólmen, uma pomba branca de metal, e várias telas pintadas a óleo, recordações de estrada. “Harvest Moon” como aquela que está cimeiramente instalada entre o céu e o inferno e a vertigem dedilhada por Deus.

Optimus Alive 08! Passeio Marítimo de Algés, Oeiras, 10/11/12 de Julho

segunda-feira, 7 de julho de 2008


Fim-de-Semana Lusitano

Matadero é um conjunto de várias estruturas concebidas no início do século passado, onde eram abatidos os animais que posteriormente seriam distribuídos pelos talhos madrilenos, encontrava-se no exterior de Madrid, hoje faz parte do perímetro da capital espanhola. São diversos os módulos de carácter pré-industrial que a Câmara Municipal esta a converter em teatro, café, galeria, etc. Neste último espaço encontra-se a dupla portuguesa João Mário Gusmão e Pedro Paiva, que apresentam peças carregadas de um simbolismo filosófico, mergulhadas numa sala escura, os focos incidem sobre uma caveira que sobressai de um bloco de pedra; filmes de 60 milímetros projectam imagens de homens à procura de algo inenarrável; uma rocha de várias toneladas encontra-se suspensa, através de um jogo complexo de luzes o seu reflexo surge reduzido em miligramas. Predomina o paradoxo em “Horizonte de Acontecimentos”, como se cada obra fosse um foco de perturbação e de desconcerto.

Matadero- PhotoEspaña, patente de 17 de Julho a 24 de Junho

Thomas Demand apresenta um conjunto de fotografias de médio porte nas quais surgem interiores com telefone e fax, folhas A4 desorganizadas, numa clara alusão a uma utilidade do espaço e ao mesmo tempo a uma desumanidade que é sublinhada pelas cores cinzentas, branca, azul. Realça uma uniformidade global da época digital onde tudo é muito similar de espaço para espaço, monótono, incómodo, rotineiro, há um filme com um carro que ouvimos e vemo-nos a entrar na garagem velozmente mas nunca conhecemos as características do carro. A “Cámara” é um elemento meramente presencial quase omnipresente.

Fundación Telefonica- PhotoEspaña, patente de 5 de Junho a 24 de Agosto

Numa sala soturna semi-circular projecta-se uma sequência de imagens em slide acompanhadas pelas notas de um piano bem comportado. Vemos quatro adultos e uma criança a passarem uma bola uns aos outros, ao ar livre, rodeados de edifícios habitacionais. Durante a projecção os planos vão variando, aéreo, americano, meio plano. Através desta sequência David Claerbout imprime movimento à família japonesa que apenas se concentra num jogo banal, num dia filtrado por um cinzento que ilude a presença de uma luz solarenga.

Circulo de Bellas Artes (Sala Minerva)- PhotoEspaña, patente de 5 de Junho a 27 de Julho

A repetição de um mesmo rosto de quadro para quadro, ao qual apenas é alterada a cor do fundo. O autor Roni Horn demonstra a obsessão pela perfeição que fez sempre parte de todas as sociedades, para alcançar uma pequena evolução é obrigatória a repetição do mesmo gesto, a leitura de um texto, o ensaio da peça de teatro, o desenho de um rosto adormecido, etc.

Circulo de Bellas Artes (Sala Picasso)- PhotoEspaña, patente de 5 de Junho a 27 de Julho

As fotografias são de grandes dimensões e os planos aéreos, posteriormente manipuladas em computador por Florian Maier-Aichen, que lhes altera a cor, instalando uma realidade artificial que oferece às cidades ou às paisagens marítimas uma adjectivação cibernética. Através do repintar da realidade com cores negras ou de crómio, como se a realidade fosse queimada e transformada num outro espaço que diverge com a sua base. São obras extremamente sedutoras que sobressaem das paredes como se de elementos lunares se tratassem, produto de uma visão mergulhada em LSD que é traficado numa Los Angeles de urbe negra e céu azul.

Madrid, 04 de Junho. Museu Carmen Thyssen- Bornemisza- PhotoEspaña, patente de 3 de Junho a 27 de Julho.

O Prado é um museu que tem uma colecção muito vasta que passa pela escola Flamenga, por artistas como Goya, Rubens, Velasquez, são séculos e séculos de obras marcantes e popularizadas por reproduções como o são “As Meninas”, que ainda hoje são objecto de teses sobre o jogo de espelho. As salas são incontáveis e o acervo é de tal forma vasto que é impossível fazer uma escolha do que é mais belo ou representativo, há tendência para que se fique com uma ideia vaga do que está exposto, seguir cronologicamente as salas nem sempre é fácil. O Prado é a catedral da beleza ainda subjugada a mecenas reais ou à igreja, que impunham os temas que os pintores tinham que executar, dai os motivos serem na sua maioria religiosos ou de cariz cortesão. Através deles podemos perceber as inquietações de cada época, as técnicas usadas, as paisagens onde passeavam os reis à cavalo numa caçada pela tapada do Palácio. São testemunhos precisos sobre um passado alicerçado numa sociedade piramidal, que tinha como fundamento filosófico a Bíblia que impunha uma moral e por conseguinte os costumes. Há obras de fantasia que representam o inferno, ou Adão e Eva com folhas a tapar delicadamente as partes sensíveis, o inferno é local onde a dor é fruída de forma sanguinária, no céu os anjos fazem-nos companhia enquanto dedilham a harpa, ou cupido dispara a seta que nos infecta com amor.

Museu do Prado

O Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia é consignado a uma época pós-Revolução Francesa, quando o tempo deixa de ter um carácter circular para se instituir uma linearidade que ainda hoje está vigente. Os nomes mais sonantes são Dali e Picasso, o primeiro pintou todos os estilos até se estabelecer no surrealismo onírico. Picasso foi o constante perturbado, que explorava cada pincelada como se fosse criar uma nova estética, a síntese encontra-se na “Guernica”, ode épica às vítimas da Segunda Guerra Mundial. Mas há mais artistas como: Carlos Saura, Bacon, Juan Muños, Harun Fracrok, Sachiko Kodama, Ben Rubin e Mark Hansen, Magrite, Tapies, etc, uma overdose que perpassa a história da arte contemporânea.

Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia

A colecção permanente do Museu Carmen Thyssen- Bornemisza começa no século XIII e acaba no século XX. É uma mistura condensada do Prado e do Reina Sofia, numa sequência temporal agrupada esteticamente, o que prevalece um didactismo latente. Desde os retábulos em edícula passando por Rodin, John Constable, Salomon van Ruysdael, Alfred Sisley, Paul Gaugin, Edgar Degas, Van Goth, Edward Hopper, Picasso, Dali, os impressionistas, expressionistas, o cubismo, surrealismo, simbolismo, etc. Um conjunto soberbo e em simultâneo eloquente, que emociona os sentidos como se cada sala fosse um atentado à nossa ignorância, é deste terrorismo que as sociedades carecem.

Madrid, 05 de Junho. Museu Carmen Thyssen-Bornemisza.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Vieira da Silva

Desde os primeiros trabalhos de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) que é visível a inquietação. No início esse elemento está contido nas formas que pinta, numa projecção com o defeito da mão, enraizada no expressionismo. Maria Helena Vieira da Silva pintava o que via, aproximando-se da “realidade” de forma gradual, mas paradoxalmente evidenciava dúvidas e indefinições, como elementos predominantes. Enquanto criança dividiu a sua educação artística entre o piano e a pintura, instruída em casa, algo que lhe permitiu desenvolver a capacidade psico-motora que articula o pensamento com o gesto. A sua observação do espaço e o seu domínio é devedora de uma herança que representava o real, vemos as figuras esguias, a paisagem, o retrato de Arpad, o seu auto-retrato de contornos negros e solitário. A figura era incorporada numa moldura que sublinhava a sua expressão corpórea e expressiva. Há uma infantilidade perversa no gesto, na contenção suprema de não ver tudo ou representar o facto mas antes o significante. É este o epicentro do nascimento de Vieira da Silva: apresenta um conjunto de sinais que o espectador procura agrupar sobre um único entendimento. Do expressionismo passa por um surrealismo lírico, muito sedutor, consequentemente sóbrio e austero, as figuras ganham um anonimato simbólico, e o que antes era real agora é fantasia, que questiona o inconsciente. Procura libertar-se do passado, mas mantém o contorno, tenta inflectir contra as regras que lhe impunham a herança expressionista, romper com o espaço, através da perversão da perspectiva e subversão da profundidade. Este ponto marca o fim da década de 1940; em 1928 instalara-se em Paris, onde havia descoberto o amor de “Arpad-o-português” como Cessariny o denominou, um exilado hungaro judeu, da aprendizagem em sua casa passa para a escola francesa de Bissière, convive com os surrealistas, intelectuais e poetas que acompanham o seu crescimento. As rupturas estilísticas serão uma constante ao longo da sua vida, recusou a imobilidade, questionou o espaço e consequentemente a arquitectura, elaborou programas complexos de decomposição de estruturas que se suportavam na irrealidade que a abstracção nunca resolveu. A ambiguidade do seu trabalho será cada vez mais presente, nomeadamente de 1940 em diante, a partir do qual jamais será capaz de se sobrepor à realidade, mas antes, aprofundar uma invisibilidade que pretende impor uma nova conceptualidade do vazio.

segunda-feira, 23 de junho de 2008


Violência Institucional e Poética

A porta habitual da Fundação Serralves encontrava-se encerrada, somente nos é permitido entrar através do portão principal do Parque Serralves, que comemora vinte anos, com inúmeras actividades: vôos fixos em balão quente no prado Serralves, actuação da Fanfarra Orquestra da Escola Profissional de Música de Espinho no Ténis ou oficinas em família na clareira das azinheiras.

No hall de entrada do interior do Museu de Arte Contemporânea estão estacionados cinco carros a cheirar a sucata, orientados para um ecrã onde a emissão é o cinzento quando as televisões procuram um canal que lhes proporcione imagens, programas, paisagens. O autor desta instalação é Erik Van Lieshout e intitulou este drive in decadente de “Rock”.

Os peixes, uma profusão de peixes castanhos com tubos espetados nos seus corpos expelem água, são mais de cem suspensos no ar, torcidos, com bigodes, a boca e os olhos abertos, a água jorra sobre o tanque negro. Esta “One Hundred Fish Fountain” de Bruce Nauman é uma fonte de onde flutuam peixes e destes água, a circulação normal da água? É através dela que respiram, pelas guelras, mas eles estão mumificados. São apenas elementos decorativos pescados pela memória cognitiva do autor, poderia ter mais luz, mas a tragédia seria maximizada, poderia variar de espécie, mas já não seriam um cardume ao qual lançamos as redes do olhar.

“One Hundred Fish Fountain/Fonte de Cem Peixes”, patente de 18 de Abril a 6 de Julho.

“Linhas, Grelhas, Manchas, Palavras” reúne um compêndio extenso e inesgotável do minimalismo que apresenta as suas características hereditárias: a austeridade dos materiais, a monocromia, o risco, a mancha, a tensão, o ponto, etc, numa repetição tão extenuante quanto fatigante. As obras pertencentes ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, não representam nada de novo ou extravagante, didáctico é certo, aparentemente matéria revista e aumentada. De sublinhar o “diálogo” entre este corpo expositivo com as obras da Fundação, maioritariamente composto por autores portugueses.

“Linhas, Grelhas, Manchas, Palavras”, patente de 09 de Maio a 22 de Junho.

The Rolling Stones, Kraftwerk, Eric Satie, Black Flag, Allen Ginsberg, Music Barbarie, Fluxus, Wiliam S. Burrougs, Sonic Youth, Einstuerzende Neubauten, Philip Glass, Laibach, Velvet Underground, Lou Reed, The Beatles, John Cale e muitos outros fazem parte da colectiva: “Vinil – Gravações e Capas de Discos de Artista”. O exterior das obras são objecto de discriminação autoral que passa por artistas como Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Jaroslaw Kozloeski, Robert Rauschenberg, elaboraram o design gráfico, e é deste que o melómano usufrui primeiramente a obra, entre ambos tem que existir uma conecção minima de empatia. Há música concreta a manchar o espaço, um ponto de escuta, e pautas riscadas por mãos à procura do acto criativo que nos permita ouvir o silêncio. Esta exposição perpassa as décadas de sessenta à noventa.

“Vinil – Gravações e Capas de Discos de Artista”, patente de 10 Maio a 13 Julho.

Três nomes reunidos sob a designação “Violência Institucional e Poética” com opções diversas mas não opostas no seu âmago: subverter a irreverência. Erik van Lieshout apresenta uma enorme tenda de bombeiro suspensa a partir do tecto no interior uma televisão, elemento que unifica esta instalação com a “Rock”, onde é apresentada capítulos pitorescos da sua vida privada.

Numa outra sala as paredes são ocupadas de baixo para cima com folhas coladas, nestes trabalhos à acrílico, nada há de infantilidade ou necessidade de se apoiar a esse rótulo, são manchas criadas e colocadas num âmbito narrativo cromático, tão só, ou palavras de ordem soltas como “merde à la police”, ou, “je t`aime”, assinadas por Anne-Lise Coste.

Foco de perturbação pelo tamanho das obras de Tatjana Doll e pelo tratamento pictórico. Em termos de estrutura são obras de dimensões extravagantes, uma parede é longitudinalmente ocupada por várias carruagens de Metro, que passam num segundo por uma estação de Toquio, azuis, brancos, vermelhos, levados à distorção pictórica. Numa das salas um camião de cem toneladas está parado à berma da estrada, à espera de reboque, falta o triângulo, e o colete fluorescente mas são pormenores que nada acrescentariam ou iriam contribuir para a subservidade destas telas delirantes e exorbitantes que fazem parte da paisagem moderna, onde a sucata é o seu maior poluente.

"Violência Institucional e Poética”, patente de 18 de Abril a 13 de Julho.

Museu Serralves- Museu de Arte Contemporânea (Porto), 22 de Junho.

domingo, 18 de maio de 2008

Un Chien Andalou

A bateria e o baixo estão ensaiados para se equipararem a gémeos a lutar pela luz, e ter “Brainy”, com o pormenor do violino, e o guitarrista da direita a executar o solo na boca de cena do palco da Aula Magna, um anfiteatro ditatorial.“I think this place is full of spies, I think I'm ruined, Didn't anybody, didn't anybody tell you, Didn't anybody tell you, this river's full of lost sharks, I know you put in the hours to keep me in sunglasses, I know” and “I had a secret meeting in the basement of my brain, It went the dull and wicked ordinary way”, com o coro dos guitarristas congénitos, a arderem a canção com gritos, Matt Berninger aproxima-se do público, a suplicar à mesma mulher, ao espelho quando a gilette limpa o rosto da espuma de barbear, corta-se. A perdição é eterna em “surprise, surprise they wouldn’t wannna watch, another uninnocent elegant fall into the unmagnificent lives of adults”, com a voz introvertida no microfone nervoso, numa harmonia desconcertante, Matt Berninger mexe os braços e marca o ritmo com murros sobre a mão esquerda, auto-punitivamente, ao reviver o que se passou numa noite de Primavera, os acordes são dementes o ritmo complexo de tesão equivalente. “I'm so sorry for everything, Baby, come over, I need entertaining, I had a stilted, pretending day”, remete para a ondulação cortejada pelo mar, “freak out” , “all we have to do is”; “I'm so sorry for everything, I'm so sorry for everything, I'm so sorry for everything” ; “I pull off your jeans, and you spill jack and coke in my collar, I melt, like a witch and scream, I'm so sorry for everything” a poética que sintetiza a existência do amor, o violino de Padma Newsome sobre a muralha sonora delicada tecida por dois pares de gémeos e um outsider. “We are very happy of being in Portugal. Tree times these year.” E finaliza: “We feel like we are not been judged, do you now?”, Matt Berninger, apresenta The National, a transpirar, concentra-se na sua decadência que é aplaudida efusivamente. “Slow Show”, a introdução é fresca e suaviza-se com o decorrer da narrativa, ganha densidade infectada pelo pulsar do orgão, infinitamente, "twenty nine years”, melancólico. O ritmo marcial de “Squalor Victoria, squalor Victoria”, suplanta na sua visualização fílmica, caída, desmaiada, num espasmo cinético, cresce e deixa-se levar pelos acordes do piano e o rasgar do violino a contrapor com a voz grave. “Abel” rouca e submissa e as palmas e os murros no ar, as palmas ao ritmo de maracas, com o gémeo da guitarra esquerdina ao piano, a perturbação do psicadélico obsessivo, retro, distorcido. Berninger violenta a boca de cena desloca-se para a esquerda, a cantar, gritar e a remexer as veias, a eriçar a pele do microfone numa convulsão. “Your mind is racing like a pro, now, Oh my god it doesn’t mean a lot to you, One time you were a glowing young ruffian, Oh my god, it was a million years ago”, com arranjo sustenido da pandeireta, a incutir um ritmo delicado, num ricochete de perturbação. O cantor bebe de uma garrafa de vinho compulsivamente: “I fell like Collin Powelll”; “If you were Collin Powell I would kick your ass!”. “Ada” melodia sincopada que se submete a uma equação delineada por um colectivo embriagador, “Stand inside an empty tuxedo with grapes in my mouth waiting for Ada”, etérea “Ada”, por vezes “Ada” é insubmissa. "Apartament Story" a banda sonora do Chelsea Hotel, “alright”, com as guitarras a deflagarem sobre a melodia, a voz “la, la” ah, mimeticamente, e a secção rítmica a precisar o tempo médio do nascimento de um carácter uno, a invasão do presente. A sequência de “Fake Empire”: “Tiptoe through our shiny city with our diamond slippers on, Do our gay ballet on ice, bluebirds on our shoulders, we’re half-awake in a fake empire, we’re half-awake in a fake empire” e “Star a War” numa lógica de terrorismo poético, as peças que faltavam à nossa civilização para ceder à evidencia da perfeição. A última é um sortilégio de profusão contida, “star a war”, em qualquer canto da sala, do nosso organismo. “Mr. November”, irrompe da mesma casta dos Joy Division, o sangue é infecto-contagioso, “Mr. November! I won't fuck us over, I'm Mr. November! I'm Mr. November, I won't fuck us over!”, gritado em vertigem sobre os cadeirais da Aula Magna, Matt raspa com os lábios no microfone, segura-o, grita, canta, esperneia, eleva-se acima da gravidade.

“Boxer”, The National, Aula de Magna (Lisboa), 11 de Maio.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Uma Revolução Imagética

O ponto de partida para esta exposição colectiva, que tem como suporte a pintura, assemblage, instalação, filmes, é a distorção da realidade de uma forma consciente: “Revolução Cinética”. Reunidas por Emmanuel Guigón, director do Musée dês Beaux-Arts et Archéologique de Besançon, no Museu do Chiado. O conceito desta exposição alicerça numa ilusão: o artista cria objectos com mecanismos que redireccionam a luz que incide sobre as cores, recorrendo a espelhos, alterando e proporcionando movimento às mesmas. O nosso olho é incapaz de descodificar o que é real da fantasia, cinético. Nas salas onde a luz é “clara” as partículas movem-se diluídas no colorido, tela com quadrados que se “mexem” gradualmente provocando o efeito de ilusão, uma sala com néons policromáticos pintam o compartimento branco. O objectivo é transportar o espectador para a ilusão inconscientemente, assim, não sofre qualquer resistência aos jogos de luzes. O cinetismo perturba na sua beleza esquemática, do familiar para o improvável, do real para a fantasia, o brinquedo que é uma alegoria do infinito. “Revolução Cinética” faz um resumo do movimento cinético que surgiu na Europa entre 1955/75 e que incluiu os nomes de Marcel Duchamp e Francisco Sobrino, Joël Stein, Gregorio Vardanega, Victor Vasarely e Jean-Pierre Yvaral, entre outros. Duchamp apresenta um filme de sete minutos, nonsense visual, a preto e branco. Esta obra encontra-se numa sala escura onde nos é proporcionado usufruir com mais nitidez dos mecanismos da fantasia. O paradoxo e o desconcerto predominam, como se as artes plásticas procurassem ocupar de forma irónica o espaço criado pelo cinema, desconstruindo a sua estrutura, anulando o carácter narrativo e ater-se somente às cores e ao seu reflexo quando lhes é incutido o movimento. A visão perturba-se e seduz-se, ao ser retirada da rotina diária, onde prevalece a lógica como normativa dominante. Nota negativa para os vigilantes que parecem turistas desorientados, e o porteiro que prima pela antipatia monocórdica, para além de não existir outra forma de pagar a entrada ou comprar o catálogo senão com dinheiro.

"Revolução Cinética" Museu Nacional de Arte Contemporânea, Museu do Chiado (Lisboa), 11 de Maio, patente de 14 de Março a 16 de Junho.