segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Black Celebration

As nuvens adensam-se em redor do perímetro do Pavilhão Atlântico, composto na sua maioria por prédios longos, constituídos por materiais que os tornam leves, quase inexistentes. No interior do Pavilhão há muitas mulheres vestidas de preto, a elegância predomina, não seria surpreendente que estivessem algures a Kate Moss, ou, a Tracy Vandal. O ecrã led que ilumina o palco tem um círculo a meio do topo, passam as iniciais D.M, as pessoas aplaudem, o som da sala aumenta gradualmente. Os Depeche Mode estão a subir ao palco pela direita baixa, o compositor Martin Gore é o primeiro a surgir, de casaco de lantejoulas cinzentas e sapatos da mesma cor. “In Chains,” abre a celebração em volta de um agrupamento que no início da década de oitenta uniu dois campos estéticos aparentemente opostos: a pop e a música electrónica com origem nos alemães Kraftwerk. “In chains,” mistura-se com o ecrã vermelho a pingar sangue, no círculo um homem caminha mas o seu destino é inequívoco: “In chains,” com a voz de Gore a fazer de coro à do cantor-performer Dave Gahan, de fato e colete pretos, sem camisa. “I `m in chains!”, a canção tem como princípio o blues misturado com um tóxico que o torna cibernético. Dave dança e abre os braços como se estivesse a espalhar uma fé, que se transmite através do seu sex-appeal. “I´m in Chains,” despe o casaco e ouvem-se os gritos de uma muralha desafinada de mulheres. “Wrong” é o extremo do erro, da má conduta, da perversão, “wrong!”, de todas as maldades ocorridas e que são da nossa responsabilidade. O ritmo é violento e a conjugação dos acordes tem mais plasticidade do que o original, o primeiro single que serviu de apresentação a “Songs of The Universe,” o último álbum, que os D. M promovem em Lisboa. No ecrã surge a banda, que em palco é apoiada por mais dois músicos, um baterista e um pianista. Dave dança antes de surgir a batida tribal de “Hole to Feed,” as duas vozes encontram-se afinadas ao mesmo nível. Inicialmente o tema começa a impor uma maior agressividade, mas tal foi apenas desenhado e não totalmente concretizado. “Good evening Lisboa!”, Dave recebe em troca um milhar de gritos. “Walking in My Shoes,” é um tema tétrico, de apelo a que os outros se solidarizem com a nossa dor, tremendamente desesperada, e por conseguinte ajudar-nos a fugir da ansiedade que nos encaminha para o suicídio: no ecrã um corvo negro sobre um fundo cinzento, está empoleirado numa trave, à espera do nosso cadáver. “I´m not looking for absolution”, “forgive me”, “I do”, “star walking in my shoes”, “star walking in my shoes”, “if you try, try walking in my shoes.” A música segue o percurso que nos leva até à demência electrónica, o corvo esvoaça ao sentir o vento mórbido. Desce o jogo de luzes e torna o palco mais pequeno. Dave rodopia com o tripé do microfone nas mãos, “only fifteen”, “you look good,” Dave coloca as mãos entre as pernas e ri ao ouvir os gritos das, “only fifeteen”, “you look good,” e quando o refrão: “It´s a question of tiiiaame”, “a question of time,” movimenta-se com o tripé, do lado esquerdo para o direito, como se o objecto fosse o seu ponto gravitacional. “Precious,” perde o pendor sintético e ganha rugosidade e o preâmbulo da primeira para a segunda parte da canção é acidentada, quase em contra-circulo para com os acordes suaves. A responsável é a guitarra de Martin Gore que transpõe a canção do slow para o psico-rock. “World in my eyes,” é a primeira vez que Gore se coloca atrás do teclado, a narrativa insinua que as palavras são supérfluas, “let the body to the talking”, “let me show you, the world in my eyes!”, “I take you to the highest mountains”, “belive me”. “Can you hear me Lisboa?” Gritos. Dave Gahan transforma o tripé do microfone num varão de uma casa de streap, sobe e desce, com ele entre as pernas e olha para a plateia, e convida-os a entrar no jogo da… “My eyes”, “my eyes”, "my eyes" a voz grave leva-nos para dentro de um corpo nu. O ecrã ganha tonalidades laranjas, os samples lançados são um fraseado árabe, a batida é reminiscente à dos Einstürzende Neubauten. Variando do rápido ao lento, as vozes relatam: “touch me.” Dave Gahan abandona o palco e é Martin Gore: “Sister of the night”, num binário lento, “breaking down your wheel”, denota algumas limitações vocais de Gore, tentando gradualmente instalar-se na melodia do tema, em vão. “Hey sister?”, com um solo réplica de uma geografia acidentada, mas simultaneamente calculista. O piano surge delicado e a voz ganha tonalidades quentes, num chamamento irresistível, “and I Thank you, from bringing me here, for bringing me home”, “belong here”, o público: canta o coro: “Home”. “My last praaaay”, palmas, as luzes iluminam os espectadores. Martin ergue os braços e movimenta-os como as de um maestro, marcando o ritmo do coro: “OoOoOOooOoOoOoOO”, passeia, “Thank you, for bringing me here”, coro: “OoOOOOOOooooOOOO”, do público, Martin dobra-se e agradece a atenção e o carinho dos portugueses. “Mr. Martin Gore!”, sublinha Dave Gahan. “Miles away,” com a guitarra em estrela de Martin Gore, “you are miles away”, num gingar de bordel repleto de clientes com chapéus de cowboys prontos a snifar a nossa alma. O solo distorcido, destrói o passado e estabelece um outro futuro, onde “your eyes tell me something”, “you are miles away”, voz diabólica: “Miles away”. “Thank you very much!” Dave dança quando os acordes míticos de “Policy of Truth,” são disparados pelos três teclados e a bateria pontua-a com o respectivo balanço, “never again”, com o ecrã a projectar um jogo Tetris, Dave rodopia, “never again, is what you saw”, “never again”, “never again”. “Don´t say you love me, don´t say you want me, cause`s no good,” comparativamente com o original, este ganha na vertente extravagante, como se estivesse Andy Warhol na mesa de som de palco, a misturar o Kitsh e a dar-lhe uma conotação comercialmente seriamente icónica: “You now you can´t be”, “it´s no good”. “Thank you!” O sadomasoquismo é revelado, quando as luzes descem, e o ecrã se enche de tinto, que nos inebria, alcooliza, e o inconsciente invade o consciente, vestimos a mascara e sufocamos em cabedal preto: “In your room”, “your favoritive slave”, solo agudo e rápido a rasgar as nádegas, a dor é orgasmo: “In your room, Where time disapear”, “your favoritive mirror”, “your favoritive slave”, “away”, Dave dança, as luzes sobem e o prazer desaparece. “I Feel you” é tão penetrante quanto um sentimento que estamos a praticar pela primeira vez, o ritmo seco, leva Dave a beber de uma garrafa de plástico com conteúdo escuro, as luzes dançam lentamente, os acordes percorrerm a canção e transformam-na num Inferno, para onde correm os desalmados. “I Feel YOU! AAAAAAAAAAAA!”, solo, a maquina não pára, o sentir de: “AAAAA”, com a voz a ser o elemento distorcido. No ecrã três astronautas: Dave Gahan, Martin Gore, Dave Fletcher, ficam em suspenso, mas os acordes circulares, “words are very unnecessary”, “hearts to be broken”, são as palavras-chave de “Enjoy the Silence”, “to be broken.” Dave Gahan desloca-se pela passadeira, pede ao público para mexer os braços da esquerda para a direita, tenta dar continuidade à canção, mas todos os músicos seguem a guitarra de Martin Gore, que em regime progressivo, alavanca consigo tudo e todos, ignorando o cantor, épico: Dave, agacha-se e coloca a sua boca junto à guitarra de Martin, e finaliza: “Enjoy the Silence”. “Never let me Down again”, “taking a ride with my best friend”, “ride”, “come down”, “my feet on the ground.” O primeiro tema do encore é um passo atrás na interpretação de Martin Gore, “One Caress”, não consegue ser expressiva, reduzindo-se a um momento nulo, apesar da letra: “Oh girl!”, “in your darkness”, “obrigado!”. "Stripped" é um hino que se poderia ouvir num bar, repleto de espelhos, o ritmo mistura-se com os acordes de “Stripped”, “take my hand”, “back to the land”, refrão é cantado pelo público: "Let me see you stripped down to the bone," a progressão é violenta, a carne é apenas a decoração dos ossos, Dave e Martin fazem headbanging junto ao bombo da bateria, segundos em que o delírio não faz parte da razão.“Behind the Wheel”, palmas, acordes, teclados, samples, loops, voz: “I don`t care,” desvairo, delirio: “Tonight”, “passenger”, “tonight.” O epílogo é um ponto equacionado através de uma imagem de montes a serem montados por cavaleiras, prontas a estarem nas esquinas dos círculos das cidades, onde se vendem por uma bebida, um fósforo ou um cigarro, desde que haja pavio, e se tenha confiança no nosso “Personal Jesus.” Com os acordes da guitarra em constante distorção, e os samples a nos transporem para o deserto e se formos atingidos pela alucinação da miragem, e esta seja uma mulher de pernas longas, cobertas por meias de rede negras, um casaco curto com um friso ao longo dos braços, e uma mini-saia, que quando se abaixa mostra as zonas que nos providencia a devoção aos Depeche Mode.

“Tour of the Universe”, Depeche Mode, Pavilhão Atlântico, 14 de Novembro.

domingo, 8 de novembro de 2009

Blade Runner

As ruas criadas por Vittorio Gregotti e Manuel Salgado são percorridas por um acorde fino de frio. O Tejo que toca a costa e gradualmente mistura-se com o mar salgado, passando próximo de uma base área de Tires, onde vivi, com a minha avó, pai, mãe e irmão. Sou filho de duas mães, sou João Aguardela. Vou ser sempre este binómio, como se houvesse um outro para descobrir, a portugalidade, esse conceito cultural. Está a passar um conjunto de segways conduzidos por um par de anjos, um homem caminha lentamente e segue o carro de tubos pretos que tem umas colunas suspensas a cantar: “diz-me amor quem são os teus pais? Eles são normais?”; “Morcão de um raio, tu não passes mais no meu bairro!”; “Logo, logo de seguida perco sintonia”; “mas gosto de sentir a tua língua dentro de mim, dizem os meus bons amigos, que não se beija assim! Os lábios? Os lábios nos lábios e o coração? O coração à míngua. E a tua língua na minha língua!”; “Sonho com uma princesa… Eu sooou escravo do amor”, “um Marciano no congelador.” O carro tem no cimo um anúncio Blade Runner: “Megafone 5= Atelier? Teatro de Rua,” e ostenta uma bandeira cravada como uma antena e na ponta um Coração Independente, “diz-me amor quem são os teus pais?” A plateia do Centro Cultural de Belém está cheia, assim como os camarotes, estão reunidos para ouvir: “Eu só com a boca faço isto:” e ouve-se uma mola a saltitar de palavra em palavra circularmente. O programa semanário da "As Quintas dos Portugueses" da Antena 3, é misturada conjugando frases em inglês do nono ano. Os anjos transportam o Coração Independente do cimo da plateia até à fronteira com o palco, e erguem-no psicadelicamente e as suas luzes expandem-se gradualmente pela sala. Uma gaivota é projectada, o ritmo é acelerado, “dentro do meu peito”, “meu peito há um alambique de aguardente!”, surge a síncope com um baixo pesado, os anjos separam-se e bebem de pequenos cantis o álcool. O Coração Independente apaga-se. Silêncio. Desce um ecrã sobre o pano de cena, surge a ficha técnica e artística dos que irão subir ao palco, apareço numa planície a misturar a origem das coisas, e a alterar definitivamente o percurso cultural de uma ruralidade que foi gradualmente urbanizada, pela tradição e modernidade importada. Megafone ao vivo, ou, era um DJ, ou, três músicos em palco, as pessoas dançaram na Expo 98. “Eu basicamente quero fazer um trabalho de guerrilha.” Sobe o pano e surgem vários vultos vestidos de preto, tocam flauta, e tambores, há uma voz principal masculina secundada por outras duas, mas como são de timbre muito próximos, formam um coro de avarentos que cantam sobre os costumes rurais: “cruel vento”, e ainda o caso de uma mulher que andava com o padre da paróquia, “mora lá uma mulher perto de uma vizinha”, “ou sacerdote de missa.” E o “piripiri em excesso”, os Gaiteiros de Lisboa quando se tornam arrítmicos, as canções ganham garra, mas são uma minoria. “É para nós uma honra, esta festa de homenagem. Porque sei que o João detestaria que fosse uma homenagem. Antes uma festa à música portuguesa e da liberdade e irreverência!” Desce o ecrã e surjo a explicar quando começaram os Sitiados, “com um grupo de amigos do mesmo bairro”, “que se juntaram com o propósito de irmos ao Rock Rendez Vous”, a, “partir daqui percebemos que íamos ter futuros diferentes.” Sou projectado a vociferar e a gritar, “SE CONDUZIR NÃO BEBA!” Surge a banda de uma cantora com um comportamento febril como se quisesse absorver toda as pessoas à sua volta, tem um microfone à boca, e canta, fala pelo meio, despe o casaco de cabedal, canta, há uma voz off de um macho, que dialoga com a artista, os músicos vestem fatos de bares do fim do século XX. O acordeonista lidera o grupo encaminhando-o para as ruas de Paris e a um subúrbio latino-americano. Cada tema é um postal ilustrado percorrendo diversas geografias europeias, acentuada pela presença de um “pugilista.” Que canta o fado como se estivesse a fazer o refogado para a “porcalhota”, repetiu o termo três vezes, foi continuamente interrompido pela cantora dos Oquestrada, “ahahah, repete que o som estava muito mau! Ahaha,” à segunda algo parecido, e à terceira foi enxotada pelo pugilista. “Tony Paiva: O maior fadista das noites de Lisboa!” Intervalo. No ecrã surge o Megafone 5, o site que continua a espalhar as minhas canções através de descarregamento gratuito dos quatro Megafone, o primeiro editado em 1997. Dead Combo são dupla de baixo e guitarra, vestem fato de segunda-mão, cartola tétrica, e uma sequência de canções que quando se separam da métrica ficcional de Ray Cooder, e isso sucede quando a guitarra de Tó Trips, está ligada ao pedal da distorção, ganham um autónomo pendor visceral. Desce o pano e surgem imagens do meu passado instigado por uma obsessão em que queria ser 50% por cento da equação do outro lado está o público a cantar, a dançar, a bater palmas, a fazer moshe. E eu a gritar em Alvalade: “as formigas no carreiro da Ponte 25 de Abril”, “mudaram de rumo”, "mudaram de RUMO!", na atitude mais punk do Portugal ao Vivo, a seguir aos Xutos com stripers que se despiram integralmente! Sobe o pano lentamente e ouve-se o trinar das garras do Luís Varatojo nas doze cordas da guitarra de Lisboa. E Maria Antónia Mendes de luto de uma elegância irresistível segura o microfone, e canta: “Antes que o Mundo seja um incêndio”, “quantos ciclones queres?”, “éramos rebeldes por sistema”, “o terrorista carregava às escondidas uma bomba”, “no peito era o coração,” é este turbilhão que incendeia a sala. Soa o baixo e entra Sandra Baptista, que é ovacionada, veste calças negras largas, e um top negro com decote em V, que se prolonga para as costas, dedilha o baixo como se estivesse a revelar-se o meu anjo, de noite e de dia. Estou em palco com duas mães: a Sandra e a Música. “Nosso”, “remorso”. “Monotone”, surge numa frequência groovebox, “largas o coração ainda adormecido”, e “esqueces essa canção, já não passa na rádio mas que vive secretamente dentro de ti”, “bem dentro do teu corpo, esqueces essa canção”, “mas que vive secretamente dentro de ti”, “mas que vive secretamente dentro de mim”= Bairro Alto a passear pelos estúdios da Motown. “Encontrei-o no Teatro”. “Não me queres?”. O drama, “nunca me quisestes!”. “Um dia tão bonito e eu não fornico!”, secundada por uma guitarra com efeitos psicadélicos. Maria Antónia Mendes segura as mãos junto ao rosto, “tenho 365 sonhos”, num ritmo mergulhado em algo, como os passos de elefante de pernas de girafa que surgem no horizonte de uma peregrinação no deserto. Ah Dali? Dada? , “tenho uma estatua fluorescente da Virgem”, a iluminar a mesa de cabeceira, “tenho uma estatua da Virgem Maria, que me dá confiança e brilho à noite,” a voz desce umas oitavas e cava dentro de mim: “Tenho joelhos magoados, o calvário dos fiéis deveria ser menos árduo!” O pop-fado de, “um saco de merceeira”, “um só prato para o jantar”. Maria Antónia Mendes: “Sandra no baixo! Obrigado Sandra!”, palmas. Vou chamar ao palco um grande amigo do João que tocou com A Naifa, quando o João já estava doente,” Rodrigo Dias que balança um baixo familiar. “Como água como pão”, “assim te vi”, “que te vi a rasgar a vida.” A Naifa assume uma linhagem com as canções de intervenção que rugiram no Alentejo, com a guitarra portuguesa de Varatojo a frasear a pauta com acordes que se assumem a veia da sublimação. Paulinho cede o lugar a Samuel Palitos, ex-baterista dos Censurados, “fui apanhada aos 22 dois anos”, “a verdade apanha-se com enganos”, é uma verdade lúcida, a bateria dança juntamente com a baixista, a guitarra mergulha em si, a sorte, a frase neo-kitsh: “Sobrevivi a um coração míope”, “em amantíssima posse viral.” A voz e a guitarra enrolam-se, com o baixo a sustentar gravemente, pulsante, demente, “em amantíssima posse viral.” Paulinho, baterista dos RAMP, regressa ao seu lugar: “Obrigado Samuel!”, palmas. Um marinheiro soviético atraca em Lisboa e pergunta onde, “há senhoritas?”, de “um barco soviético a meio gás”,“disse-lhe que em Portugal haviam muitos comunistas,” mas o é que ele queria? Uma prostituta. Palmas. Do cenário austero da Naifa surge o João Aguardela, numa fotografia rectangular em t-shirt e a tocar baixo, atrás de Varatojo e de Paulinho. O olhar azul está ligeiramente a contemplar o céu. Maria Antónia Mentes emociona-se, ao revê-lo ao seu lado, “está um rapaz a arder no cimo de um muro”, “no cimo do muuuro,” é a cedência do meu corpo à imortalidade. “Antes de acabarmos, que queria dizer que foi o João que escreveu os poemas do último álbum ocultando-o da própria banda. Assumindo o Nome da avó,” e a sua mãe, são as suas duas mães. Reina o psicadelismo kitsh, com a voz embargada de tristeza, “mas levo muito a mal a ideia de ser feliz”, Groove, “ensinar-te em meu amor em praticar a caridade, nunca direi Saudade mas levo muito a mal a ideia de ser feliz. Filho de duas mães, adoro vesti-las de igual, tenho andado à tua procura para te amar. Sobre a mesa posta sem nenhuma vaidade, ensinar-te em meu amor a praticar a caridade. ENSINAR-TE EM MEU AMOR A PRATICAR A CARIDADE, ENSINAR-TE EM MEU AMOR A PRATICAR A CARIDADE, NUNCA DIREI SAUDADE MAS LEVO MUITO A MAL A IDEIA DE SER FELIZ." Sobem à alta esquerda do palco os anjos, apoiam a subida dos meus pais enlutados, no centro ao microfone, o meu pai: “O nosso filho esteja onde estiver, agradece e de facto não seria uma homenagem, mas uma festa da música portuguesa, como já foi dito. Ao irmão do João, ao Luís Varatojo, e a essa mulher que nunca abandonou o João, essa mulher é a Sandra Baptista." A minha mãe esconde o rosto, constrangida com as luzes, os seus dois pais. Recebem uma salva de palmas de vários minutos, como se fosse um palpitar das almas presentes a reconhecer que existe o megafone: “JOÃO AGUARDELA!”

“Megafone 5”- Homenagem a João Aguardela: Centro Cultural de Belém, 04 de Novembro.

sábado, 31 de outubro de 2009

A Clockwork Orange

As propriedades detectadas neste corpo denominado de Tiguana Bibles destacam-se como um complot armado com doses de independência febril, que por vezes se encaminham para o abismo. O palco está montado na pista de dança da Via Latina, discoteca próxima da Praça da República, que agrega alguns bares onde os estudantes se drogam e embebedam, e discutem o improvável futuro, ou, as aulas na Universidade de Coimbra, o cérebro da Capital do Distrito. Tiguana Bibles começam com o instrumental que é uma passadeira por um deserto banhado por tubarões ensopados em sangue, pinga das guitarras, em particular da Victor Torpedo, um filho do tédio. A música ganha voz humana através de Tracy Vandal, e saia preta com riscas brancas, e um top, que é encoberto por um casaquinho, que encobre os seus ombros brancos. A sua voz é a lava de um vulcão que hibernou num Verão e se ausentou distraidamente, não para a terra do nunca, mas para a aridez que provocam os sonhos premonitórios que nos explicam a beleza. “IT´s against the law”, influenciar as pessoas a se auto-mutilarem, e a se canibalizarem e se exporem aos raios cancerosos. “Child of the Moon” é de compasso acelerado, com o contrabaixo e a bateria a imporem um pendor hell-billy, são o pulsar do edifício, que o fazem tremer mas em simultâneo são os seus pilares: Tracy: “OOOO”. Ela puxa a saia e a boca expande-se pelo microfone, os acordes de, “I Don`t care anymore”, saltitam de guitarra em guitarra, que se inclinam para a esquina onde espreita o rock à espera de violar uma idosa endinheirada, de saia e casaco, o clássico Coco-Chanel, “I Don`t care anymore”. Vandal bebe whisky, despe o casaquinho, ergue os braços e bate palmas, abana as ancas de costas para o público, “so run”, “so run”, “so run”, acordes surf-billy, a cantora retira o microfone do tripé. A movimentação no palco de Tracy, é de uma profunda sensualidade contaminada por uma ironia provocativa que é British. “I saw you in the streets”, mas não esqueças o covil que te aquece e que por natureza te irá transformar em cinza, numa auto-combustão que é um luxo para o portador desta doença rara, “don´t forget your home”, falseto: “I saw you in the streets”, e o impulso é para ser seguido através de um gráfico cardíaco de um hiper-tenso, foge, foge, “runaway from your hooome”, com os Tiguana Bibles, falseto: “UUUUU”, falseto, “UUU”, “UUUU”, “UUU”. “I only now tree words in Portuguese!”, alguém do público entrega-lhe toalhetes para limpar o colo suado, o seu rosto está maquilhado para realçar os lábios e os olhos, mas estes são dois pormenores que magnetizam o espectador. A introdução do oitavo tema é longa e compassada, num ritmo western-spagheti, oiço tiros, sangue, sangue, os bons os maus e os medonhos a cavar a sua sepultura, Tracy recorre à spoken word para narrar o sucedido, dos seus lábios as palavras brotam como se fossem pétalas embebidas num frasco de formol. É a altura para a autópsia realizada pelos solos de Victor Torpedo, que em ziguezague se multiplicam, a bateria de Kalo e o contra-baixo apoiam a guitarra, Tracy: “you”, falseto: “ouououou”, “aaaaa”, “aaaaa”. No primeiro encore a canção é lenta, pautada por “dreams”, e o falseto… “This is a song for all the Boys!”

“Child of The Moon”, Tiguana Bibles, Via Latina, 29 de Outubro, Coimbra.

sábado, 26 de setembro de 2009

Electric Love

The Cult: a imagem que prevalece no fundo do palco é um índio, apesar de serem uma banda inglesa, a iconografia relacionada com o seu álbum Love de 1985, é o universo dos índios americanos, que irão apresentar na íntegra. O Coliseu de Lisboa encontra-se repleto de t-shirts pretas, góticos, botas de tropa, ou, de plataforma, adolescentes, e quarentonas. Esta banda faz parte de um imaginário libertário, que através da conjugação das guitarras e de uma forte secção rítmica, expressam “Nirvana”. Ian Asturby já não é magro e com cabelos até à cintura, está gordo e com os cabelos encaracolados, e perdeu a voz límpida de barítono. Está alheio ao facto de que estão trinta graus, o casaco de cabedal, o cachecol, e as luvas que seguram uma pandeireta, levam-nos a julgar que ainda crê que está nos Estados Unidos, onde decorreu a primeira parte da digressão Love Live. “These way “, “Nirvanaaa”, atira a pandeireta para o público. “Only you baby”, “only you baby”, “think a solution”, “yeah, yeah, yeah”, “baby, baby, baby”, com o solo de Billy Duffy, a completar, “Big Neon Glitter”. “Thank you for coming tonight”. “Love” é apresentado de forma irrepreensível, com uma voz insidiosa e o riff da guitarra percorre a canção, quando Ian se cala, a guitarra de Duffy liberta-se num solo majestoso. “Brother Wolf, sister Moon”, é um slow épico em que o amor entre o lobo e a lua é um conto de fadas negro, e o uivar é de Ian: “sister Moon”, “help me”, “sister Moon”, “OOOOO”. A chuva cai sobre o deserto onde crescem escorpiões que se reviram e espetam o seu veneno que intoxica quem se atrever a enfrentá-los: “Here comes the rain”, “I Have been waiting for her, for so long”, “yes, it comes again”, “I love the rain”, “Yes, it comes again”, “I love the rain”, solo da guitarra de Duffy. “The Phonenix” é uma sequência de acordes de wah wah, em que a voz é um mero elemento decorativo, sem grande presença na canção. “Do you now Cristi Ronaldo? He sucks!”, é Ian Asturby a provocar os portugueses, que não reagem, ficam inertes, confusos. Despe o cachecol, “away”, “get away”, pausa, “hollow man”, “every day”, solo, “yeah”, “yeah”, “yeah”. Os índios foram devastados pelas doenças dos europeus, pelo alcoolismo, pela tecnologia das armas, roubaram-lhes a cultura, roubaram-lhes a alma: “Flowers”, solo, “There`s a revolution”, “revolutuion”, “revolution”, “revolution”. No ecrã que se encontra atrás dos músicos surgem imagens da queda do muro de Berlim e do Maio de 68, “There`s a Revolution”, “revolution”, “revolution”, “revolution”, “revolution”, “revolution”, com solo de Duffy a finalizar. “Sanctuary”, e, “Black Angel”: “now he thinks he `s at home”, “Where to go?”, Ian ajoelha-se: “Goodbye!”. E encerram a sequência do álbum Love. “Electric Ocean” é uma mistura de hard-rock que provoca que as ondas produzam curto-circuitos, com Ian de pandeireta e Billy, a fazer solos, a levantar o braço direito, a empunhar o indicador como se estivesse a liderar a catarse do público, “EEEElectric”. “I love you every hour”, “Wildflower”, com solo compassado, “I love you every hour”, “Wildflower”. “These `s our first concert for the European tour, thank you so much for coming!”. A apoteose final é apresentada através de “Firewoman”, “common litlle sister”, “Fire”, solo, “baby”, “baby”, Firrereerwomanna”.

Love Live, The Cult, Coliseu, 25 de Setembro.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A Casa da D. Celestina

Em 1965 Paula Rego expôs em Lisboa, pela primeira vez, na Galeria de Arte Moderna nas Belas-Artes, estiveram presentes os progenitores (o pai viria a falecer seis meses depois), e a alta sociedade da capital. Nesta altura, Paula desenhava e posteriormente recortava-os, e colava-os na tela sobre fundos monocromáticos, era fortemente influenciada por Francis Bacon amigo do seu marido Victor Willing. As telas eram de uma agressividade voraz, e os temas manifestos contra o Estado Novo, que era dominado por um homem: António Oliveira Salazar. Paula havia realizado o seu percurso artístico-escolar em Londres, para onde partiu com 16 anos, na Slade Scholl of Fine Art. Na exposição de Lisboa foi interpelada por um convidado que lhe perguntou se os seus quadros são coisa de prostituta? “Não, se fosse estaria a desenhar igrejas”, foi a resposta mais politicamente correcta que se pode dar a um ignorante, dominado pelo preconceito e pela insegurança. As pessoas que me rodeiam na inauguração da Casa das Histórias, são na sua maioria pertences à nata de Cascais, de bronzeados ainda latentes e perfumados com fragrâncias inevitavelmente elitista, há artistas, empresários, executivos, críticos de arte. Não há espaço para se ver as obras e seguir o percurso que é predominantemente didáctico, desde um trabalho de escola, onde começou a desenhar à vista, passando pelas óperas, Vivian Girls, Pillowman. A mulher é a paisagem que Paula Rego prefere explorar, pelas razões que se prendem com a sua sexualidade, que era censurada durante o Estado Novo. A artista é todas as mulheres, em especial aquelas que sofreram por não terem liberdade para abortar, ou, que são manipuladas pela vontade de Deus, ou, pela sociedade. Estes vértices, são dominados por homens? É contra o falocentrismo que a obra se insurge, algo que é típico da sociedade latina, neste ponto aproxima-se de Portugal, e quanto mais se focaliza mais dilacerante é o seu discurso. Esta política de confrontação irá dominá-la sempre, mesmo quando relaciona as suas telas com obras literárias, algo que já a cativava em criança quando ouvia a leitura do pai, sobre o “Inferno de Dante” com ilustrações de Gustavé Doré. Este interseccionismo, marca obras como “Under a Milk Wood” de Dylan Thomas e “Birthday Party” de Harold Pinter, ambas peças de teatro. Surgem através das diversas personagens que cria mas acima de tudo, pelos fundos falsos, que remetem para cenários, esta contra-posição, entre: algo real, as personagens, e algo artificial, os cenários, provocam uma dicotomia que projecta relevância às personagens. A Casa das Histórias, poderia ser um teatro onde se colocariam em cena as peças que marcaram a vida de Paula. Ela criou inúmeros vectores de entendimento com a realidade, a sexualidade, a ópera, a literatura, drama, a arquitectura, religião, a portugalidade, a pedofilia, o aborto, o alcoolismo, a paternidade e a maternidade, a demência, abandono, a violação, regicídio. Estes temas não são preocupações de uma prostituta, nem tão pouco é tema de conversa dos convidados, que se fazem valorizar por serem vizinhos da Casa das Histórias e ter sido uma maçada ter vindo de carro, porque não havia lugar para estacionar. Aceitam Paula Rego porque é consagrada por uma sociedade anglo-saxónica, onde dominam critérios de liberdade e onde se premeia o mérito, assim, como existe uma forte educação artística que reúne nomes como Turner, David Hockney, Damien Hirts, Bansky. Paula Rego realizou uma longa peregrinação, viveu na dependência emocional de Victor Willing, que a orientava em termos estéticos, sobreviveu à sua morte. Colocou nas telas Lila Nunes, a enfermeira que o tratou até aos seus últimos dias, e que é o espelho de Paula, na raiz deste triunvirato há uma história de amor, que encontrou a sua casa com vista para o mar tantas vezes navegado para descobrir o desmistificar do medo de existir.

A Casa das Histórias, Paula Rego, 18 de Setembro, Cascais.

Camane, homem de estatura baixa, de voz grave que canta o fado. Foi escolhido por Paula Rego para animar a Cidadela de Cascais, uma área rodeada por edifícios que formam um quadrado. A entrada é um túnel com origem na arquitectura militar, e o fadista, canta como se fosse um farol, que em noites de nevoeiro perfura as ondas e traz de novo à vida as ninfas que viviam no Tejo e que Camões tanto enalteceu. “Fica preso à saudade”, “naquele rio tão puro, o tempo inseguro”, o rio, a corrente, como metáfora da passagem do tempo que é domínio de Deus e não do homem. Camane, tem consigo a guitarra portuguesa, a viola e o contra baixo, “entre o passado e o futuro”, “mas não acho o que procuro”, “quando o tempo é inseguro”, “entre o passado e o futuro”, “mas não acho o que procuro”, “o amor quando se revela”, “não se sabe revelar”, “quem quer dizer o que sente, não sabe o que dizer”. “Mas se ela adivinha-se”, pausa, “fica sem alma, fica só inteiramente” com a voz de Camane a subir como se fosse um apelo de comiseração. À capella “partiu zangada comigo, deixou um retrato que me aqueceu na noite friaaa”, surge o trinado lento da guitarra portuguesa, “o céu que não é meu”, “porque é que partiste? Ainda vivo sofrendo a minha agonia e não me levaste a morte”, com um final apoteótico, pois a voz arrasta os três instrumentos. A introdução é realizada pelo trio de músicos, devagar entra a voz do fadista, “livre pensamento foram-te hoje encerrar”, “levaram-te”, pausa, “a meio da noite”, “de todas as mais sombria”, “foi de noite e nunca mais se fez de dia”, “noite, o veneno”, “persiste em envenenar”: “ao menos ouves o vento de cristal?”, “ao menos ouves o mar?”. É o veneno que as palavras incutem na memória e nos recordam da paisagem que passou e amanhã a noite será diferente, venha Deus ou seu irmão gémeo o Diabo, para nos resgatar desta mortalidade. Aha saudade. O fado corrido é cantado do “Bairro Alto, vou dar o salto?”, “para o tempo que aí vem”, “ouvir Lisboa a chorar”, “Lisboa morre por sair à rua”, “para as tristezas que Lisboa tem”. As notas arrastadas são fruto de um dia “azarado”, “céu que nos agarra”, “de cem milhões de guitarras”, “pode ser que nos mate”, “só por séculos de fado”, “só milénios de NAAAAADAAA”. A mulher é o objecto do amor de Camane: “os teus olhos sedutores são duas Avé Marias”, as guitarras trinam, a portuguesa sola sobre a viola, o baixo faz a ponte entre ambas: “REZO TODOS OS DIAS”. Quando Camane era criança era-lhe proibido cantar os fados dos adultos, “e as quintinhas, sextilhas, e os decassílabos” que eram escritos pelos seus amigos, juntava-lhes as guitarras e cantava, quando ascendeu à idade adulta foi-lhe permitido cantar: “Alfredo Marceneiro, este fado é dele”, a guitarra portuguesa ensimesma-se solenemente, devagar, devagar, devagar, “de uma noite menos fria onde não sinta a agonia”, “vou de um fado a outro fado, porque o fado sou eu”, “o meu destino assim mudado”, “ser fadista”, pausa, “triste sorte”. “Antes de acabar quero oferecer um ramo de flores à Paula Rego”, o fadista entrega o ramo ao Ministro da Cultura, que se levanta para as receber e entrega-las à artista plástica. “Sei de um rio”, as margens nocturnas do Tejo unem-se: “a minha boca a separar-se da tua”, “sei de um rio”, a voz é tão funda quanto o Cabo da Roca, “dá-me os lábios desse rio que nasceu na minha sede”, “e a minha boca até quando vai separar-se da tua?”.

Cidadela de Cascais, Camane, 18 de Setembro.

O segundo dia de festa na Casa das Histórias, conta às três da tarde com a “apresentação das publicações e da programação para 2009-2010”. No auditório o primeiro a discursar foi o Presidente da Câmara de Cascais, António Capucho. “Como é que chegamos até aqui? Tenho duas irmãs que são pintoras, uma delas fez uma tese de mestrado sobre o desenho de Paula Rego. Ela não conhecia Paula Rego, ou conhecia de se cruzar com ela no paredão, conheceram-se, e foi daí que elas se aperceberam da vontade de Paula Rego em ter um Museu”. Posteriormente, António Capucho, encontrou-a no Palácio de Belém onde a artista estava a fazer o retrato de Jorge Sampaio que a “apresentou aos Conselheiros de Estado, aí, ela percebeu que eu era o Presidente de Cascais”. Após este encontro o Presidente visitou diversos locais com a artista, que “acabou por se apaixonar da Casa Zamora”, “onde D. Carlos jogava ténis”, “depois foi a escolha de Souto Moura, tinha que ser um dos expoentes máximos da arquitectura portuguesa”. Quando “este local começou a crescer, Paula, perguntou-me: ´Para quê quero uma casa das histórias tão grande`”, por fim, “convidamos a Dra. Dalila [Rodrigues] que aceitou o desafio”. E antes de finalizar: “O impacto de Paula Rego teve sobre a opinião pública de Lisboa, foi enorme, todas as pessoas vieram para ver a exposição”, “até podíamos transformar a Cidadela em Casa da Paula Rego, porque não?”. Conclui: “Espero que ela seja feliz neste regresso a casa”.
A Directora da Casa das Histórias, Dalila Rodrigues, considera a Casa das Histórias: “não é o Museu Nacional de Arte Antiga”, mas antes, “uma marca internacional, tem um reconhecimento claramente internacional, não pode ter outra marca”. A ex-Directora do Museu Nacional de Arte Antiga, lidera uma equipa que se ocupa das diferentes vertentes da colecção. A Casa das Histórias, terá “duas exposições temporárias ao ano, com a possibilidade de ter mais uma”, no acervo constam “seiscentas obras, gravuras, desenhos, modelos”, “irão prevalecer conferências internacionais”, “onde estarão especialistas internacionais”. Prevê-se para Abril uma exposição de Victor Willing, para além da eventualidade de uma de Goya, que Dalila Rodrigues se encontra a negociar.

Casa das Histórias, António Capucho, Dalila Rodrigues, 19 de Setembro.

Às cinco horas sobe ao palco do auditório da Casa das Histórias Jake Auerbach`s, inglês documentarista. Começou por dizer que havia feito um primeiro documentário sobre Paula Rego em 1988, quando expôs “in Serpentine Gallery”, mas não ficou satisfeito com o resultado e aproveitou a retrospectiva no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em 2007, para iniciar outro documentário. Neste basicamente apresentou a vida e a obra, em que os comentários eram realizados pela artista, sem que surgisse um contraditório ou alguém que desse uma perspectiva mais ampla das telas. Enigmaticamente não referiu que Victor Willing, já era casado quando se juntou a Paula, e que ele era consagrado mesmo antes de Paula ter almejado esse cunho em 1988. Não colocou nenhum dos críticos de arte que a têm estudado, como é o caso de John McEwen, Ruth Rosengarten, Fiona Bradley, para assegurar algum contra-ponto. Focou o seu trabalho na vertente mais sensacionalista e pessoal da artista as depressões crónicas do pai de Paula Rego, e o domínio que a mãe exercia sobre ele. E deixou que Paula, se diminui-se ao ponto de que se, “não fosse a pintura estaria num manicómio, que é o lugar onde poderia estar”. Jake pergunta-lhe: “Está a dizer isso literalmente? “Sim, eventualmente será para onde um dia irei”. Não lhe pergunta se ao longo da vida recorreu a psiquiatras para controlar a demência. Apenas, deixa o quadro da mulher perturbada, que é um clichet redundante, que pinta para exorcizar os demónios que a vida lhe consignou.

Casa das Histórias, Jake Auerbach`s, Documentário sobre Paula Rego, 19 de Setembro.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Pintura e Poesia

Henri Fantin-Latour (1836-1904) foi um artista plástico que tinha um domínio profundo sobre a poética romântica. Era esta a raiz do seu trabalho, que se dividia em três temáticas: o lirismo suportado na música clássica, a natureza-morta, e o retrato. O primeiro ponto, é realizado através da inspiração proporcionada pela Ópera, em que a técnica aplicada é de pinceladas individuais policromáticas, a intenção é transpor cenas lúdicas, em que as figuras surgem esotericamente. A natureza-morta é levada ao extremo da delicadeza que o pormenor permite, são pequenas composições de um realismo desarmante, pela sua representação de um género que tinha tanto de académico quanto de obrigatório a qualquer artista do século XIX. No retrato, Fantin-Latour, excedia-se através de figuras de corpo inteiro, ou, de meio corpo, sentadas ao piano ou a ler, os fundos— tal como na natureza-morta— são meios-tons invariavelmente pardos, as figuras sobressaem, e a perspectiva criada é a partir destas por contra-posição do fundo. É neste capítulo que Fantin-Latour se transcende ao representar o exterior dos seus familiares e amigos como Baudelaire, mas simultaneamente incute-lhes uma gestualidade “invisível”, quase passiva, estática, mas que obriga o olhar a incidir e a tentar perscrutar o seu carácter.
No catálogo consignado à exposição da Fundação Calouste Gulbenkian e que será também publicado no Museo Thysen-Borneisza, para onde seguirá a mostra. Eduardo Lourenço intitula a sua dissertação de “Pintura e Melancolia”, e inicia a sua tese da seguinte forma: “Diz-se do génio que é como os anjos, uma espécie num só individuo. Pelo menos foi assim que o Romantismo o teorizou e o mitificou. Só na nossa memória como pura legenda os génios vão aos pares para a Arca de Noé. Nos meados do século XIX, Baudelaire, num poema famoso, dedicou aos génios da pintura ocidental um retábulo mítico onde a sua visão romântica do génio inventa a genealogia da própria Modernidade. Baudelaire desce ao limbo da aventura pictural menos para resgatar quem o não precisa—de Rubens a Delacroix—que para assinalar à pintura mesma o estatuto sublime por excelência.
O reservado Fantin-Latour não figura nesse cânone poético destinado a influenciar o discurso estético desde Élie Faure a André Malraux. Nem pela idade, nem pelo estatuto discreto, o futuro autor de Le Coin de Table podia pretender aos olhos do poeta de As Flores do Mal essa consagração. O seu lugar na cena pictural da sua época e na sempre viva memória dela que ainda conservamos, é mais modesto. Quase frisa o apagamento. Como se tivesse escolhido adoçar a luz ofuscante do génio, segundo Baudelaire, semelhante à dos “´faróis`” que aclaram por intermitência a vaga sinistra que de “´idade em idade vem morrer à beira da eternidade`”.

Henri Fantin-Latour (1836-1904), Fundação Calouste Gulbenkian, 02 de Setembro. Patente de 26 de Junho- 6 de Setembro.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Délicatessem

A aldeia encontra-se iluminada com as luzes do Verão, à entrada da área destinada às farturas e carros de choque, várias lápides estão expostas rodeadas por uma rede de galinheiro. As adolescentes com sotaque de França, Suíça, vestem roupas de cores claras e acentuam nos topes, para aumentar a corrente de ar e desta forma arejar a temperatura corporal. Os convidados desta noite de festejo são os G.N.R, com o palco instalado à frente de um campo de futebol sintético coberto por uma alcatifa para não o danificar e impedir os jogos dos casados contra os viúvos aos Domingos à tarde após a bênção do Padre às suas beatas e beatos. A bandeira da festa na Bidoeira de Cima é hasteada por Rui Reininho, vestido com um blaze azul às riscas brancas, e uma camisa branca, ganga e sapatilhas cinzentas completam a indumentária digna de um por de sol em Cascais, junto à marina a ver os velejadores a zarparem para o Ultramar. Os G.N.R ainda perguntam se o espelho é a fonte adequada para obter o reflexo de Portugal, “perguntei ao meu espelho”, “complicado”, “e continua de pé?”, o fraseado da guitarra sustenta toda a canção que é envenenada por um funk nervoso e excitante. “Bom dia. Obrigado pelo vosso convite, apropósito foi o primeiro deste ano”, é a cerimónia do Rei. Sou o “Popless”, “yeah”, com as guitarras em distorção, “quando tudo sobe também desce”, “mexe e remexe”, “ e assim acontece”, “ai, ai, sabendo que é boa”, “o segredo é Pop-pop-pop-lesss”. O aviso do Rei: “Meninos e meninas não se cheguem às falécias, por causa da humidade, capice?”. O palco encontra-se rodeado por um pinhal de solo arenoso, as luzes são um jogo simples de very lights e de uma parede led que dança ao ritmo das canções. “Há um bicho novo para limpar”, “mais vale nunca, mais vale nada”, “cérebro em fuga”, “letal”. Apresenta Jorge Romão, como o “George Constanza” da “série Seindfeld, não era?”. “Somos muito novos, temos 30 em cada perna. Tirando as partes gagas”. A pronúncia do Norte é sempre prenúncio de morte, “hemisfério traga outro Norte”, “a bússola”, está de tal forma viciada que aponta inquestionavelmente para Norte: “Mar”, “mar” e o bandoleon expira uma tragédia que levava os portugueses para o Mar do Norte à pesca à linha do bacalhau, “não tenho barqueiro”. O agradecimento vindo de um Rei letrado em romances de cavalaria queimados por Cervantes: “Se não fossem vocês estaríamos na tropa! Esta é dedicada ao meu amigo Mickael, assim um gajo giro. E eu não sou giro? Somos uma boysband de gajos giros!”. Os “ratos” nesta aldeia parecem “mafiosos convictos habituados a controlar”, não vos parece? “Efectivamente!”. Nunca daria para instalar uma banheira decorada à sombra dos pinheiros, porque a “Ana Lee”, “Ana Lee”, é mulher da elite, que delira com um “Lotus azul”. O que era uma canção à viola, é transposta em regime de rock-funk-transgressor, a transbordar de um “triângulo molhado”. Reininho informa o público: “Esta é mais difícil, é tipo preço certo”. Coloca a voz à David Fonseca a carpideira-mor deste país de anglo-saxónicos: “Esta música é em modos de Leiria, é em inglês!”, “she sucks”, “que rico”, “que maravilha”, com as guitarras a repetirem os acordes, no interlúdio são as teclas que realçam o kitsh, “ai! The Puerto Rico Show”, “The Puerto Rico Show”, “Miss. Venezuela”, “Miss. Caraibas”, “que rico sabor, ai! Ai!AI!AI!”, “Guantanamera, Guantanamera”, “AHAHAHAHAHAHAHA”, ecoa, soul-psicadelica, “Conchita, you are in the business…”, “I Want you!”, “Aiaiaiaiaiiaiai”, “The Puerto Rico Shooooooow!” . E a “Tirana”? A gestualidade do Rei implica uma comunicação semelhante à de um professor de matemática surdo. “Esta é o terror”, de onde fogem, “Dama(s) e Tigre(s)”, de um jogo “divertido e letal”, “por trás de cada porta há um só destino”, numa convergência proeminente rock. É “Sexta-feira (um seu criado)” algures num espaço onde rodam bebedeiras de bar em bar, com a voz em simultâneo com o riff: “Falta o teu voto na mão”, “já não sei em quem votei”. A conclusão de que, “os gajos com piada estão a morrer todos. Eu vou viver até aos cem!”. “Sinto a língua morta o latim vai mudar”, “estará a meditar?”, “Ui!”, “Ai!”, “Ui”, “Ai”. “E se o amanhã perdido for? Metamorfoses de pavor”, “OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO”, “aí vem a luz”, solo de guitarra-psico. “Esta é de um amigo nosso, Roberto Carlos”, vale a pena ser belo, rico e dono de um cabriolet e contar as histórias da nossa juventude às virgens que se passeiam à beira mar. Pois, as “assas servem para planar e sonhar”, e inscreve-las na memória para as noites gélidas de Inverno, “aconteça o que acontecer”. A adolescência é sinónimo de leituras com final feliz: cão, gato, e os objectos domésticos para dar utilidade à casa. Quando se é “Sub 16”, tem-se o sonho de ver os G.N.R ao vivo no Estádio de Alvalade e beber “cerveja escondido da mãe”, e gritar: “ESTOU FARTO, FARTO, DE DORMIR SÓ”. “Patchiuri, patchiuari, patchiurirararararararara”, “onde?”, “agora somente os de Bidoeira de Baixo”, “patchiuari, patchiauari, patchiuari”, “agora só aquela senhora que está a conduzir de sandálias e de topless!”.

G.N.R, Bidoeira de Cima, 23 de Agosto.

domingo, 5 de julho de 2009

Krazy Horse

Um espaço construído para voar como um óvni a rodopiar, comprometido no objectivo de exibir que há vida extraterrestre, lunar, onde teremos que nos deslocar num Moonwalk. Um dos protótipos que ainda está na linha de montagem, desfaleceu após uma injecção de adrenalina, como a que me esta a picar neste momento, a agulha chama-se: Kylie Minogue. Veste um vestido inspirado nas princesas das arábias, a sair da lamparina sonora do disco, tecno, bom, bom, a sonorizar uma discoteca repleta de pessoas vestidas com modelos do Jean Paul Gaultier.“Can you hear me Lisboa?”, “lá, lá, lá, lá, lá.”. O livrete do tempo é folheado através do cibernético, “I Just can`t get you off my mind”, “boy”, “lá, láaa, láaáa,”, a dançar livremente, ou, em sintonia por entre os bailarinos, cobertos com cabeça de predadores. “I feel you”, sustentada pelo baixo e bateria, “spining around”, “I don `t feel coming down”, “It `s no”, curva-se exibe as pernas, “OooooOOOO”, “I don`t feel coming down”, “AAAAA”, palmas, “Tank You!”. “WoW, Wow, you got it”, “Yeah, yeah”, “you got it, Wow, Wow, Wow,”, “slowoooooo, you got it”, “Wow, Wow, Wow”, teclados e o beat a potenciar uma luminosidade do pano de fundo, uma parede led, emite imagens, como se estivéssemos no interior do limão dos U2, “discoteque”. Intervalo. Kylie Minogue encontra-se num biombo gradeado, veste de vermelho, desloca-se, empurrada por dois escravos, rodopia, tem um chapéu para usar em Ascot, beat, beat: ”I Have my…”, “make me feel”, “Like”, num assalto de dominatrix sobre o público do Pavilhão Atalântico. “I never saw it right”, “so melectric”, “yeah”, “slow”, na recta final da música o break torna-se mais orgânico, pesado. “It `s so hot in here”, despe a saia, suspira, apresenta a banda. “You know something? I `m in love! There `s someone in love?”, o público diz-se apaixonado por Kylie Minogue: “two hearts beat together , IIIIII `m in Love”, “I `m in Love!” . Intervalo. Surgem os acordes bissexuais do “love boat”, da série de TV, Kylie aparece na proa do cruzeiro, num teté a teté com cinco marinheiros. A canção assume-se num “Querelle”, cor-de-rosa, azul, verde, lilás. Colocam a musa da Austrália sobre uma mesa onde ela canta aninhada, com os calções de marinheiro a apertarem-lhe as coxas, os mariachis irrompem por entre a métrica tecno. “Can you see these flower?”, e na mão esquerda desvenda uma rosa vermelha, essa pinga amor. “Are you ready for this?”, “ I know you feel me, cause you love me”, “baby, baby”, o ecrã led divide-se semelhante a um jogo de computador dos anos oitenta. Kylie fixa os braços, como se fosse o último reduto de sensualidade, secundada pelos bailarinos a acentuarem o ritmo sexual da trepidação das colunas a bombearem o beat dominado pelos samples dos teclados. Senta-se, dobra as pernas, bebe: “Tudo BEM?”, “If you now the title of the next song, I’d like to hear it”: coros: “OOO”, “OOO”, “OOO”, disco-sound, “Hey Lisboa!”, abana o traseiro, coloca o microfone sobre um apito vermelho: “Prrrriiimmmm”, “Thank you very much!”. Intervalo. No ecrã surge um palácio Vitoriano, a preto e branco, uma valsa perversamente kitch, marca o ritmo aos bailarinos. Kylie de top branco, com um colete coco-chanel e um tutu preto, as botas negras cobrem-lhe os joelhos. “Stay forever, with a night like these, just be together”, “very close to you”, “I Just can´t be”, “Will you touch me?”, pausa, “thessses”, pausa, “just wanna be together.”. Os bailarinos criam um corredor por onde Kylie desfila, antes de começar a cantar: “Ne laissez pas tomber votre nation!”, “To your lonely hearts”, “oOOOOOOOOOOOO”. “It`s so hot”, deita-se, e dobra as pernas como se estivesse a pedalar sobre Pégaso, “ready to sing with us? Are you ready?”, “Let `s do it…”, “Kids,” é a primeira canção onde o baixo se sobrepõe ao teclado, funk, “yeah”, o dueto, originalmente interpretado com Robbie Williams, é interpretado juntamente com as duas coristas, num jogo soberbo de confiança. “I `M gonna give you all of my Love”. “F-U-N”, à capella a arrebatar das suas cordas vocais uma profunda veracidade, anulando o tecno dos plasmas, que tem predominado durante o espectáculo. “Do you remember the old times?”, abana o traseiro, “Remember?”. “How does it feel?”, as luzes incendeiam o pavilhão que é manchado por nuvens de confetis que nos levam de volta às noites loucas do Studio 54, “How does it feel?”, “in my heart?”. “Lucky”, “Lucky”, “Lucky”, com a guitarra em distorção, e os metais a repetirem as notas, como se fosse um coro da Antiga Grécia. A sua voz ensimesma-se: “It´s in the air”, coros: “love me”, Kylie : “I do Love you.”. “Let´s go back to the beginning? You are being amazing!”, “Let `s do the Locomotion?”, “In my imagination, there`s no complication.”

Kylie Minogue, Pavilhão Atlântico, 4 de Julho.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Blue Velvet

A lua envolve Coimbra exalando um perfume suave e intenso que se cola à pele lentamente. Circunda a arquitectura repleta de rugas impostas pelas estações, que durante o ano, se passeiam pelas ruas. A fuga é um acto falhado. O fado é o travo de um trevo que dá sorte por ser diferente dos seus idênticos, crescem à sombra das árvores centenárias do Jardim da Sereia, que a noite esconde, por ser um pulmão marginal. Acendem-se as luzes e a música, é um instrumental de contornos rock and billy, quando os brancos tomaram de assalto o blues e lhe deram um tempero mais agressivo, menos rural e consequentemente citadino. Entra uma mulher de franja, que lhe esconde os olhos e atira o rosto para o mistério que o conceito de beleza encerra. O seu corpo robusto, é vestido por uma seda de alças preto, que a cobrem somente até abaixo das ancas, as meias de licra calçam uns sapatos de salto alto metalizados. A sua voz é tão suave quanto volátil, “I now my faith”, “give a litle of your heart”, com as guitarras a deflagrarem em distorção, e o contra-baixo juntamente com a bateria a se justapor a este dueto. “It`s against the law”, “these kind of love”, “to feel the way, I feel about love”, com um ritmo marcial e as guitarras a ocuparem o espaço deixado vago pela voz para adensar a fatalidade da canção: “It`s against the law!”. “I `m coming home”, é a promessa, cantada por Tracy Vandal, é um convite irrecusável, atrevam-se a ouvir este canto e estarão próximos de um lar doce, doce, doce e febril, “don`t waste my time, I`m coming home.”. “And your blood is going cold tonight, bye (train), bye (train), bye (train)”, o início desta canção é pautada por um ritmo lento que nos mergulha num vácuo, mas as guitarras elevam-na para uma outra dimensão, como se um par de facas a esquarteja-se em pontos sensíveis e a perpetua-se para o épico, “goodbye train, he `s going to take you home.”. “There `s a place where lovers go, to cry their troubles away, and call it, lonesome town, where the broken hearts stay”, tão aveludado que se se entornasse sobre uma mesa seria um vinho espirituoso, degustado de olhos fechados veríamos um reduto onde o infinito impera. Tracy, “you are the first people to hear this song”, é a única canção que segue uma métrica pop, fugindo ao escrutínio das guitarras, “I don`t care anymore”, “I don`t care anymooooore”, “there is no escape in our lives”. O segundo instrumental leva Morricone a incendiar as suas pautas e dançar com uma amiga ao abrigo de uma lei que impõe à natureza o seu trágico circuito de renovação. “Lost words” é apresentada numa frequência mais lenta à sua congénere tocada inicialmente, Tracy, aproxima-se da boca de cena, senta-se, canta, abre as pernas, canta, fecha as pernas, e de joelhos desloca-se como uma escrava a cumprir uma promessa por uma santa: Blue Velvet?

“Child of the Moon”, Tiguana Bibles, Teatro Académico Gil Vicente, 24 de Junho.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sinestesia

Entram os cinco músicos que acompanham Mayra Andrade no seu périplo por Cineteatros e salas de congressos, como sucedeu em Aveiro. Mayra, tem uma tez mulata e um corpo de nenúfar, mas que em vez de seguir a maré, impõe ao mar, o ritmo das correntes, a sua silhueta é de uma sensualidade desarmante. E o seu canto é de sereia que encantou Camões, e por ela, ofereceu aos portugueses a Ilha dos Amores. É o êxtase. A loucura. O crioulo oferece ao seu canto uma perspectiva enigmática, com a repetição de argumentos, percebemos que há uma ausência, que comparativamente ao fado, é semelhante. O público que enche o Teatro Académico Gil Vicente (TAGV) em Coimbra, grita: “És linda”, ou, “és a nossa bandeira”, com resposta da Diva: “Uma bandeira, é muito quadrada”, a rainha é um arquipélago de beleza e de sensualidade. Acompanhada por um duo de guitarras, um, é mais rock and roll, o outro é Pat Meteny, o que em algumas canções é um timbre descabido. Curiosamente, o outro guitarrista, pega em cavaquinhos, e fá-los soar a guitarra eléctrica, em guitarras e fá-las chorar, é o suspeito numero dois, o responsável por uma segunda voz. O baixo é um negro de camisa psicadélica, calça luvas, o seu dedilhar é de veludo, num diálogo directo com a Diva, comunica, não se impõe, é a reverência perante a Rainha de África. Ela é a Ilha de Cabo Verde, que à capela iniciou o concerto, e finaliza-o entregue a uma ladainha encantatória, é a beleza que se concentra num palpitar que sentimos, mas que não conhecemos, a pluralidade e a determinação do verbo, é o substantivo da profunda estupefacção; seja, o jogo dos percussionistas que palpitam como chagas de lava a irromper da terra de Cabo Verde, desta dualidade sobe à vida poética uma geografia exótica, apesar da aridez da paisagem cabo-verdiana. É de uma extrema simpatia para com a Celina da Piedade: “Vocês conhecem a Celina da Piedade”, as luzes acendem-se do TAGV, para Mayra Andrade contabilizar os que conhecem a acordeonista de “Rodrigo Leão”. A canção que assinaram em conjunto, é uma narrativa parisiense, mas falta a Celina no palco, para ela apertar a sua concertina e elevar a estética da canção, para o seu centro. Após o encore, surge Mayra Andrade, a Rainha de África e exala o seu timbre inqualificável, que concentra a sua energia no microfone e gradualmente, afasta-se do mesmo, num scat, inqualificável, poético poderá ser, é virginal, termo que qualifique ou explique o divino.

Stória, Stória, Mayra Andrade, Teatro Académico de Gil Vicente, 10 de Junho

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Autopsicografia

Os Livros Ardem Mal é a designação a encontros com intelectuais, ou, artistas, que se realizam no foyer do Teatro Académico Gil Vicente,(organizado pelo departamento de Letras da Universidade de Coimbra), numa cidade afectada por uma temperatura proibitiva. O convidado é o poeta e cantor dos G.N.R, Rui Reininho, vestido com uma camisa escura e ganga azul, calçado de sapatilhas cinzentas. “Já li alguns livros ao longo da minha vida”, a ironia é acesa pelo Rei, “não sou bairrista, não há canção mais bairrista do que o fado”, sobre, “os jornais ardem mal, eu sempre disse, sobre a crítica, é um acto único.”. Sobre ao facto de lhe ser, “difícil gostar de histórias novas”, quando era ainda criança, “espreitei o Borges”, através dos Círculos de Leitores era, “um sonho aqueles livros chegarem à nossa casa”, “os contos do Edgar Alan Poe”, “esta história dos livros é uma paixão”. Queimar um, “livro é o gesto mais atroz e revolucionário. Dar um pontapé na T.V, apagar a rádio. Mas queimar um livro é preciso coragem!”. “Um amigo meu, que enlouqueceu prematuramente e que foi anestesiado pelos freudianos, dizia: ´todo o pensamento universitário tem tendência para impor a mudança, mas na verdade, tem como objectivo que nada mude`, ahahhah”. Quanto à poesia, “não é para ser lida do princípio até ao fim”, “as minhas líricas comon & anas não têm pretensão, mas que subam ao povo, como diria o Homem Pedro de Melo”. Sobre Andy Warhol: “Ele não tinha a vontade de distinguir a baixa da alta cultura”, a ligação entre o artista plástico e o narrador pop é, “era escrever sobre nada”. O tema, “Bem Bom” das Doce, surgiu numa, “brincadeira, vamos fazer desta maneira-- estas obrazinhas tornam-nos prisioneiros-- com um arranjo à Marques de Sade, para que não fosse o ar de travesti das Doce.”. O Rei chegou a traduzir, “`Sodoma e Gomorra`, até ao primeiro volume é interessante, ele depois escreve numa de papel higiénico”, mas, “todo o meu trabalho tornou-se inútil. Tenho várias traduções que não aconselho, do final da década de 70, durante a qual era editado tudo o que era acabado em ismo”. Sobre o Teatro o trabalho do actor é, “para mim é assustador, repetir adnauseaum, até à exaustão”. Resume o mito: “Acho uma estupidez uma pessoa suicidar-se e não continuar vivo.”. Já quanto o predomínio do português nas suas composições: testemunhou uma conversa entre dois adolescentes, numa esplanada em Tentugal, quando estes viam um cartaz dos G.N.R: “`Não vais ver esses gajos! É uma pirosada do rock cantado em português!`”. Não alinha ao lado daqueles que acham que a nossa língua é “incantável, impronunciável, se pensarmos naquelas obras em alemão, ouvimos peças maravilhosas”, depois, “estudei os desvios fonéticos. Wolfgan, tem uma postura alemã, depois na fase pedreiro livre vai buscar o italiano.”. Na Galiza é interpelado pelos amigos, “Reininho, coño, se tens grupos tão bons porque coño, cantam em inglês? Sentem-se uns colonizados?”. Sobre a sua escrita refere que, “fui-me controlando ritmicamente”, “eu sou um poeta mas ninguém acha isso! Eu procuro as palavras certas, por vezes acordo com diferentes fonemas, já me inscrevi em japonês, em russo.”. O método de trabalho que prefere, “Camilo José Cela: ´quando a inspiração chega encontra-me a trabalhar`”, quanto ao meio, “o computador é bom, por vezes para apagar.”. O “inglês fere-me”, o que mais o impressionou foi o facto de ter visto, “o povo timorense a ser chacinado. Aquela gente a dizer ´Avê Maria Cheia de graça`, não diziam: ´Help me!`” , “em Macau ninguém fala português!”. O seu amigo Pedro Choft disse-lhe que: ´Não gosto muito de rock é um bocado estúpido. Mas se calhar o rock é o último refúgio da poesia`”, contudo, poderá ser muito fácil reduzir a escrita a um "´Obladi, Oblada` de Lennon/Macartney, mas há um poder encantatório que as palavras podem ter.”. Cita, Pedro Mexia: “´O homem não tem pretensão de ser um poeta per si`”, e confessa, “gostava de ter um busto numa rotunda e as pombas defecarem sobre mim, ahhahah.”. E sublinha que, “não há obras menores, somente as obscenas”, sobre os G.N.R, “a nossa função era gozar com toda a gente, e rir de nós próprios. Os surrealistas, no dia em que Paris caiu nas mãos do De Gaulle, os surrealistas, vieram para a rua”, dar vivas ao nazismo. “A Anar Band teve vários equívocos, o Jorge da Chaminé, tocou violoncelo connosco, em 1977 na Figueira da Foz”. O pecado preferido do Rei é: “Vanity is my favority sin.”. Numa entrevista na TVE, perguntaram se os G.N.R eram “pop ou rockopop?”, El Rei: “Si creo que és popRockopop`, tipo Zapatero e companhia, ahahha.”. “É difícil ver o Elvis em Las Vegas, todo aquele super-herói gordo. Dói-me vê-lo”, canta, “are you lonesome tonight? Talvez por isso tenha criado esta personagem da Companhia das Índias, tenho feito mais Cine-teatros, que para mim é difícil porque as pessoas estão sentadas, que foi durante anos um acto de indiferença.”. O que sucede a um Rei Sol? “Uma pessoa com a prática ouve vozes”.

Os Livros Ardem, Rui Reininho, Teatro Académico Gil Vicente, 1 de Junho.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Ama Romanta

As colinas de Lisboa estão suspensas sobre um calor nocturno, iluminadas por a Lua que se exibe timidamente, que é gradualmente absorvida pela cidade da Mensagem. Sei Miguel é alto, magro, o cabelo escuro e espesso, pendem-lhe até as sobrancelhas, exibe um rosto sério e marcado pelas noites de desassossego, tumultuosas, belas, angustiadas, eléctricas, solitárias. Tem um brinco que parece o dente de uma baleia, que lhe dá um aspecto de corsário pronto a esquartejar os peitos palpitantes das ilhas virgens, as sandálias mostram pegadas que marcaram as ruas escuras e velhas da capital. Sei Miguel é um trompetista que conjuga delicadeza com silêncio, apoiado numa banda de três músicos: precursão, trombone de varas, e guitarra eléctrica, criam a base para o músico comunicar, seja através do precipício da leveza introvertida, socorrendo-se da surdina, ou, quando a retira, da extroversão. Por vezes dialoga com algum dos seus músicos, mas predomina, a sua dupla personalidade, que por entre os acordes que jogam por assimetria, e, ou por oposição, une as sete colinas, que são heteronomias de uma geografia acidental, é a poesia da conjugação de um quadro cénico que perturba as ruas alicerçadas no fado. Sei Miguel é o trompetista de uma contemporaneidade cinética, que mantém as raízes no jazz, mas que se encontra numa verbalização independente. Palmas. Ouve-se a sua voz, após meia hora, de concerto no Lounge: “Obrigado. Quando se toca uma peça nova pela primeira vez, há sempre um aspecto técnico, que posteriormente desaparece.”

Sei Miguel, Lounge, 28 de Maio.

sábado, 30 de maio de 2009

Arriba! Avanti?

“Grândola Vila Morena”, em registo de vídeo serve de suporte à entrada de uma trupe de comediantes: Homens da Luta, de Neto e Falâncio, a liderarem uma banda proeminentemente acústica. Neto é o comunista do Megafone que luta e assume os “problemas do povo”, é a solidariedade em formato de comício do PREC , a demagogia e o absurdo unem-se. “Vamos reviver o 25 de Abril! Isto não é a Rita Redshoes, só com canções de amor, pá!”. “Eles andam ai, a meter o nosso dinheiro ao bolso”, que está no cerne da, “luta camarada, a luta contra a reacção”, “os tambores lutam”, “é um prazer tê-los aqui hoje”, “luta, luta, camarada luta contra a reacção”. Falâncio é o agricultor ignorante que resume tudo a um vocabulário de dicionário unidimensional: “Reacção”. Neto: “Sejam bem-vindos ao espectáculo dos Homens Da Luta!”, a música é um resumo das angustias do povo, “a corrupção, pá! A recessão pá! Os comprimidos pá! E o povo pá?”, musical, “quer dinheiro para comprar um carro novo”, musical, “o povo também quer Ferraris!”, musical, “camarada da pesca? E o povo pá?”. Apresenta, os funcionários, “Lisnave”, “a nossa facção intelectual da luta a Quinta das Dores”, “no Bombo, o camarada Zé Pereira, uma salva de palmas! Não sejam tímidos, pá!”, “nesta ponta um homem que conduziu o Chaimite de Salgueiro Maia, uma salva de palmas para o soldado de Abril!”, musical, “e o povo, pá?”, musical, “na concertina, a Sesaltina da Concertina, é ela que mete o pêlo nos Homens da Luta”, musical, “na guitarra, o incontornável, kikikikikikirikirikiriki, o camarada Falâncio!”, musical: “E o povo pá?”. “Está Caro”, é “dedicado ao preço das coisas”, os tambores rugem, como numa arruada do PCP onde militam os verdadeiros comunistas. A rotina: “Vamos imaginar um jovem casal, que quer comprar casa. Lá vão eles ao BPN, Caixa, para comprar um T2s no Cacém!”. Resumo: “Lá se vai o ordenado!”, musical, “até ficarem endividados até aos cabelos, pá!”, musical, “lá se vai o ordenado! Isto está caro!”, refrão: “Isto está caro, camarada caro”, “o que faz falta é animar a malta, o que faz falta é dar de comer à malta, o que faz falta é libertar a malta”; “fazias jogo de conselheiro de Estado? O Sr. é acusado? Tá isento? Tem imunidade!”. A luta arrefece o ritmo, mas… “A reacção é só filhos da puta! Mas quando a tarde cai para a revolta, manda-se vir uma Jola e vai-se dar uma volta!”. Na seguinte, “vamos falar dos mártires da luta”, sobre o Tarrafal, “vamos falar dessa prisão que foi a Auschwitz da revolução!”, “eu, camaradas, estive no Tarrafal”, “a gritar feriado que é o meu objectivo”, “os melhores anos da minha vida passei-os no Tarrafal. Eu fui torturado no Tarrafal. A dura tortura do sono, onde nos obrigavam a dormir horas a fio!”. Os cabrões dos torturadores diziam ao Neto: “Seu comuna! Seu anarca! Só queres feriados? Dorme!”, a localização errada da prisão onde esteve Álvaro Cunhal, “na Ilha de Cabo Verde, onde sita o Tarrafal!”. Onde o Neto teve uma experiência homossexual: “Fausto tá aqui alguma coisa entre nós?”, “aí percebi porque lhe chamavam o Anaconda!”, “e ali mesmo aliviei o Anaconda.” . “A luta, quando está calor, ninguém é obrigado a trabalhar!”, conclusão: “A luta assim não dá!”, tambores, “39 graus à sombra é um calor do Diabo”, “o povo calado será sempre enganado!”, “a luta assim não”, numa frequência africana, “kirikirikirikirikiriki”, “o povo calado será sempre enganado”, “a luta assim não dá”, “a luta assim nã dáaa”, Falâncio dança como se fosse membro de uma tribo afro. Desde o 25 de Abril, “muita coisa mudou: antes, havia presos políticos, hoje, temos os inocentes políticos!”, antes, “o povo queria votar e não podia, hoje pode votar e não quer. Antes usava-se muitas metáforas, hoje em dia as canções é só…”, Neto é censurado por Falâncio: “Piiii”. Neto arrisca a falta de decoro: “O meu amigo Ary dos Santos”, imita o Ary declamador de poesia lírica, mas que era dita como se o Ary estivesse a relatar uma epopeia, “eu sou o Ary dos Santos”, o espanto da poética, o Ary confessa a Neto, “tenho um problema que me está a preocupar”, e o que será? “Tenho tesão por ti! Não me chames paneleiro! Isso não!”, Neto constrange-se mas salva o Ary do desalinho: “És homossexual”, e interdita a excitação do poeta, “mas comigo não! Pá!”. “Vamos tocar a ´Tourada` do Ary”, apresentada em formato hip-hop: “pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá.”. “Uma salva de palmas para o camarada Ary! O touro é o povo!”, “e depois há aquelas bichonas que querem que o toro vá ter com eles! A gente não mata o touro, metemos sal grosso nas feridas, que ele ainda tem que ir montar umas vacas gordas e dar bifes!”. O momento “Mudasti” é uma canção para o patrocinador da luta, que poderia ser tinto do garrafão ou cerveja, antes, é o chá da Nestea, “mudasti?”. Quanto ao desemprego, “é férias sem emprego”, “e o que se vê agora é só empresas a fechar”, “desemprego pá? Férias sem emprego, pá: E a Quiimonda, pá? E a Toyota, pá?”, flauta, “e a Samsung, pá?”, “e vocês todos, pá? E Portalegre, pá?”. Das melhores, “conquistas de Abril. Eu estou a falar das gajas que se engatavam em Abril!”, “no Galery, chega um gajo da bola e seca tudo. Quando aparece o Ronaldo com o seu amigo Zé, que é o amigo dele, mas não vamos falar de desgraças! Pá!”. “Quem faz um filho fá-lo por gosto!”, a conjugação verbal, “fá-lo”, é relacionado gestualmente por Neto com o seu falo. “Uma conquista de Abril”, o ritmo lento indica paixão, “estou muito sossegadinho e vejo uma rapariga a passar. Uma rapariga do campo”, Neto: “Olá, camarada!”, ela: “Hihihihi”, “olha que tens umas cooperativas muito desenvolvidas. Que tal irmos ali para baixo de um sobreiro? Sentei-a no colo e a minha revolução, já estava em pedra! Parecia a estátua do Cutileiro. Baixei-lhe as cuecas e meti o 25 de Abril, lá para dentro!”, “quem faz um filho fá-lo por gosto”, com predomínio da concertina e das percussões, o Neto mete o Megafone sobre o pénis: “por gosto.”. “Para homenagear esse povo que fez a revolução, dá-lhe Celsetina da Concertina”, a polka embebida em vodka, “aqueles que quiserem, subam ao palco para dançar esta música russa!”, sobem as mães da revolução e outros espontâneos. “A casa da luta é a rua! Vou desafiá-los para ir para a rua, a luta continua quando o povo sai à rua, pá!” Os Homens da Luta páram o trânsito da rua adjacente ao Cinema de São Jorge, apropriam-se de um largo junto a uma estátua, não há cravos, nem chaimites, nem sangue, é o povo a aprender a ser homem.

Homens da Luta, Cinema S. Jorge, 27 de Maio.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

One Night Stand

A noite está cálida, as luzes de Aveiro iluminam a ria que é uma piscina de canais de corpo de serpente, a maresia estagna-se no ar e em cada rua há um cartaz: Rui Reininho & A Companhia das Índias. É a estrela do Norte que ilumina o centro do palco do Teatro Aveirense, veste prateado e sapatos pretos de baile de finalistas, a melena cinzenta e o rosto magro e sem rugas não contam nenhuma novela do Paulo Coelho ou de outro farsista qualquer, é a luz, é o Rei. “Ryders on the Storm” dos Doors, surge em regime de síncope circular com os instrumentos a mimetizarem o original, não numa de monge copista, antes de chacota soturna e envolvente, a tensão instala-se, e onde era L.A, agora é Ribeira. “Tank you very mouch”, “pobre flor no terramoto”, é reposto tepidamente ao ritmo de uma frequência breve, “peito aberto”, do naturalismo a lírica é transposta para a metáfora, que nos esconde a eminência da interrupção, “sem ninguém”, “S”, “O”, “S”, o suspiro que é um alerta que não obterá resposta. “Eu um homem de AVeiro, eu um homem de MAtosinhos. É assim que se fala na capital do Império, não sei se sabiam?”. O hino punk, “Anarcky in the U.K”, é mutilado na essência, uma bala para os ouvidos das burguesas que enchem a sala, “my name is anarchy”, ao ritmo de um metrónomo electrónico, com solo de teclado, Sex Pistols num transatlântico construído para voar embriagado. “Socorremo-nos de um clássico como ´Morremos a Rir´”, a canção pró-imigração, que enobrece a ironia e retira as fronteiras que nos separam de mulheres exóticas: “Vamos todos a Paris se o esperma o permitir”. O blues electrónico do “Caso Estranho do Amante Preguiçoso”, que nos convida a conhecer a capital, “cheiras bem? Então vem, então vem, vem até Lisboa”, “Cheiras bem? Ganhas mal? Então vem até Lisboa”, Reininho revela (pontualmente) desconcentração e algum desacerto. “Estamos perto de Fátima, tanta gente com as velas…”, sussurra num assomo de respeito, mas em simultâneo enaltece o ridículo da celebração, que tem esta madrugada o seu clímax. “Faz parte do meu show meu amooor, amooor”, é o tropicalismo que já pontuava o Psicopátria, assinado pelo famigerado Cazuza, e com arranjo de sax que o Reininho imita, “meu amor”, sax-voz, “meu amor”, sax-voz, “meu amor”, “meu amor”. Relembra os dias de saudade “da Vagueira” uma praia que serve Aveiro no Verão, e ao Rei falha a memória: “ Esta música chama-se…”, “o John Lennon, ahhaha”. O minimalismo de “Yoko Mono” é delineado perfeitamente pela banda de quatro músicos, mas o criador e artista, perde metade do andamento e quando segura a Yoko, não é tarde de mais, mas já é tardiamente, “há um médico na sala?”. As palmas acompanham o tema das arábias, que transpira a deserto riscado por tuaregues enrolados em lençóis de cetim e hálito de haxixe mascado “fakir, aqui e mais além”, Reininho pontua-a com campainhas que tilintam compassadamente, criando um vácuo por onde desaparece o Emir para se deitar com o seu sequito de cativas. “Bem Bom” das Doce é massajado pelo cravo, mas para além deste apontamento, não é melhor ou pior que o original, “não sei se repararam mas depois vieram os Abba e copiaram, ahhahah”. “Esta música é tão difícil, tentei toca-la quando era pequenino e não consegui”, pausa, “vou precisar da vossa ajuda nos lá, lá, lá, lás”, pausa, “I Will Rock You”, a banda inicia os míticos acordes de “Space Oddity” de David Bowie e o Rei “goza” como diriam as brasileiras: “Enganei-me!”. “Do you really make the Play?”, numa toada fadista, “stars, are very diferent today”, com solo de teclado a sujar os acordes crescentes que transpõe a primeira parte da canção para a segunda quando a nave de Major Tom se despede ciberneticamente da mulher e os reactores afirmam “she nows”, na canção há dois narradores um é o Major Tom o outro clama por Major Tom: “Can you hear me Major Tom?, Can you Hear me Major Tom?”, a resposta é um vácuo onde cada um deve preencher com imaginação, abstraindo-se da angustia da interpretação de Reininho. “Dr. Optimista” é apresentado sem mácula, “então vá!”, “Sável da treta!”, “até pelos olhos!”. “Heart Break Hotel”, cantado à capella, e apoiado subsequentemente pelo baixo, de seguida juntam-se as teclas e por fim a bateria, compõe o resto do retrato, “I feel so lonely, I could die”, “I could die”, é o slow do Rei, abafado num ritmo ao qual lhe retiraram a ansiedade do original e colocaram uma mascara trip-pop. “Esta é uma música que nos acompanha desde a primeira hora”, “Sympathy for the Devil” de Jagger/Richards, é uma bomba de um erotismo sublime, de tão equilibrada, ao se acercar de uma vertente disco-sound que lhe parecia alérgica, mesmo assim é perfeita, “do You Now my name?”, com o jogo de luzes vermelhas, “Who killed the Kennedys?”, “Pleased to meet you”, geme, “UooUUooUUUooUU”, “ I guess you know my name?” UoouuUUooUUUooUU. Os Clash irrompem numa frequência neo-kitsch, “all my corazon”, “all my corazon”, “te quiero all my corazon”, a música versa sobre a guerra civil espanhola na qual venceram os que destruíram La Guernica.

Rui Reininho & A Companhia das Índias, 12 de Março, Teatro Aveirense.

domingo, 26 de abril de 2009

O Claustro dos Corvos

Os RAMP são um remoinho de esquizofrenia bruta, liderados por um Minotauro de cabelos encaracolados que o vestem da cabeça até aos ombros. Quando abre a boca as chamas incendeiam o Alfa Bar, repleto de adolescentes que se acotovelam, abanam a cabeça a seguir o ritmo de “Blind Enchantment”, o primeiro tema de Visions, o álbum que se distribuiu à entrada. Ou se atropelam, empurram, ao instalar a desordem, surge o reduto da demência, onde o grotesco é a nota que impera como fio condutor de duas horas de terror sonoro, nunca encontraremos o início ou fim do novelo, o labirinto é um claustro onde os corvos devoram os cadáveres dos cães atropelados por Mercedes descapotáveis. “Esta música, queria dedica-la a quem fez parte de mim, faz parte de mim, e continua a fazer parte de mim. Apesar de já não estar cá!”, “Alone”, “OoooooOOOOOO”, “vocês:”, “OOoooOOOOo”, “MAIS ALTO!!!!”, “OOoooOOOOO”. Os miúdos atiram-se sobre o palco, o roadie manager, a Velha, entra e tenta segura-los com a paciência de uma idosa amante do croché, “CALMA!!!!”, “CALMA!”. A tensão dissipa-se gradualmente mas paradoxalmente o Minotauro encaminha-os para o clímax. “Anjo da Guarda” de António Variações é revisto sobre uma palete de solos distorcidos e em ritmo arrítmico, são as frequências de um coração à beira do ataque de nervos, a voz: “eu tenho anjo, anjo da guarda que me protege de noite e de dia!”. “Nesta altura recuamos ainda mais no tempo, o próximo tema chama-se ´Thoughts`”. A sequência de solos entre os dois guitarristas transformam, “Walk Like an Egipcian” da girls band mais sensual do planeta, as Bangels, num bordel onde o pagamento se efectua através de escárnio e de gozo, “Lá, lá, lá, lá, lá, lá”. “Vocês não são nossos fãs, mas nossos amigos. Este é o momento em que recuamos vinte anos, este é o momento em que partilhamos o nosso Inferno!”

Visions Tour, RAMP, 25 de Abril, Alfa Bar.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Colhões Felpudos

Os Mão Morta são originários da Roma portuguesa, Braga, e o seu nome deriva de imposto cobrado na Idade Média. A cabeça cantante é Adolfo Luxúria Canibal que lidera o quinteto de músicos, três guitarras, baixo, bateria, os "Ventos Animais" sopram do palco do Cine-Teatro de S. Pedro, Abrantes. “As noites de Budapeste são noites de rock and roll”, é um tema gingão, que transpira noitadas com prostitutas embriagadas, o solo da guitarra é contraponto a tudo o resto, “as tardes de Budapeste são tardes de rock and roll”, a voz de Adolfo rasga a melodia pop, “mulheres lindas de morrer”. “As Tetas da Alienação” assume-se como uma premissa que se concretizou com a actual crise mundial, “e com isso ocultar a pobreza real”, “são as tetas da alienação”, as tetas que alienam mas também matam a fome, e os dependentes viciam-se na alienação que lhes impõe felicidade. “E se depois o fogo te perseguir?”, as guitarras assumem-se como as artérias das canções, é delas que verte a cor indecisa de “corre atrás dele!”, “e se depois?”. Adolfo começa a distanciar-se da sua persona para encarnar as palavras, as sílabas, as consoantes, o ritmo, a voz é garrida de sangue ou de distorção, “e se depois?”, “e se depois!”, “e se depois?”, “o fogo te perseguir?”. A voz adensa o “silêncio”, “ninguém dizia nada”, “o silêncio”, “ninguém dizia nada”, o solo angular sobressai por entre as guitarras e o baixo em distorção. “Um dia”, “o que é que isso interessa?”, “tu disseste: nada”, “um bater de asas”, “o que é que isso interessa?”, “tu disseste: nada”, o baixo equilibra a hipnose impregnando-a de adjectivação dos blues, perigosa, desalinhada, “o que é que é isso interessa?”, “vocês disseram:”, público: “nada!”. O cabaret delicado de uma bailarina que procura dominar o equilíbrio num bar onde lhe pagam copos para a apalparem, e ela dança de colo em colo, “olha a menina a dançar”, “da sorte e do azar”, “xadrez”, “jogo para nunca, nunca mais acabar”, “olha a menina a rodar”, “mistérios da sorte e do azar”, Adolfo dança sozinho como se tivesse um corpo no qual coloca a mão no ombro e na cintura. “Este tema foi tocado pelos Mão Morta muito antes de terem qualquer disco editado”, as guitarras digladiam-se e o baixo é a única voz que mantém o discernimento, “pé”, “pontapé”, “só sangue”, “sangue”, sangue”, “AAAAAHAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!AAAAAHAAAAA!AAAA!HA!AAAAAH!AAH!”. O discurso contra a manipulação dos meios de comunicação sobre a população: “Em directo para a televisão”, “ahahah”, “a confusão, é a guerra sem quartel, de empresas locais. Ou então, ou então, encena-se o directo para a televisão. Em busca do controlo, de mercados locais”, “chamem a ambulância por favor”, “chamem a ambulância por favor”, “ahahahah”. “Penso que penso” é circular com a guitarra em regime de slide, “penso, e penso que vou flipar”, “estou farto de mim”, “penso que penso, penso que penso”, a origem do falso pensador, que se vê no beco da alienação porque o seu pensamento está viciado a inúmeros jogos de auto-elevação e superação de si próprio, a resposta é sempre a mesma, “murmurar, murmurar, murmurar, murmurar, murmurar, murmurar, murmurar, murmurar, murmurar, murmurar”, a agonia, a origem do suicídio “estou farto de mim, estou farto de mim, estou farto de mim!”. A voz de Adolfo contrai-se e puxa os cabelos como se fossem fios eléctricos, “estou farto de mim, estou farto de mim” e o choro irrompe. O “Primeiro de Novembro”, é iniciado pelo público, “lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá”, “solidão, saudade!”, “lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá”, em ritmo marcial, mas dos que provocam vertigem. “Guarda civil”, “divertiam-se que nem doidos”, “a ver o sol a nascer no Mediterrâneo”, o noise é visceral e Adolfo dança durante o solo e liberta-se do super-ego. “Quero morder-te as mãos”, “ahahahha”, “respiração de foda”, “auauauauauaua”. “Lisboa, Cais do Sodré”, “com as suas caras fugidias”, “o fantasma de luz e de cor”, “fantasias”, é o hino das vias por onde circulam os corpos que decoram as ruas, são apenas elementos orgânicos viciados e presos a uma situação que os subjuga a um fatalismo, “o dealer roubou-me, roubou-me a alma, raios partam! O deaaaleeeer”, “enorme letargia”, “Táxi!!!!” e a distorção é um vómito de ressaca, que suja a calçada portuguesa com bílis, “Casal Ventoso se faz favor!”. “Cão da morte”, “beleza no teu rosto”, “a foder até ao osso”, “morder no meu…”, “sinto um cão da morte a bafejar no meu rosto”, “aaaAAAaaaaAAAaaaAAAa”. “Vamos tocar uma música muito linda, para quem gosta de músicas lindas, chama-se ´Chabala`”, “uma pistola na algibeira”, “a fria noite envolta em nevoeiro”, “chabala”, o refrão é em falsete a imitar a voz de um chabala tonta, daquelas que dançam numa caixa à qual damos à corda para a ver dançar, o agudo de “Chabala”, é o canto de uma sereia que se prostitui aos marinheiros “Chabala”, a síncope e um solo atmosférico irrompe de blues tétrico, “chabala”, “chabala”, “chabala”. “Caídos”, “duas garrafas”, “onde as cinzas e os mortos repousam crescem flores”, “onde os anjos pernoitam”, ruído, “e as mulheres que eles amaram”, “rigorosamente”, “escondidos”, “nascida dos ratos”, “as mulheres que eles amaram jamais se despertaram”, “os demónios fervorosamente escondidos”. “Sou”, semeia o caos e a destruição, “meu nome”, “sabes quem eu sou? Uma miragem”, “Anarquista Duval”, “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA”.


Ventos Animais, Mão Morta, Cine-Teatro S. Pedro, Abrantes, 03 de Abril.

terça-feira, 24 de março de 2009

Um Homem na Cidade

Entra em palco um trio de músicos, guitarra portuguesa (de Lisboa), a viola e o baixo, todos de natureza acústica, começam por afinar os instrumentos e de seguida iniciam a canção, surge Carlos do Carmo de fato escuro camisa branca, assim como a sua melena que apenas lhe cobre parte do crânio, que tem rosto de menino que relata a vida alheia: “Talvez a mãe fosse um rameira de bordel e o pai um aristocrata em decadência”, talvez o tenham educado “entre navalhadas”, “nasceu assim, cresceu assim, chama-se fado”. Carlos do Carmo, tem um timbre aveludado que não precisa de exibir-se em subidas e descidas de escala, é um sopro quente do antigo. “Certa noite, vi o meu destino nos teus olhos fatais e fiquei tão pequenino”, o ritmo é lento e Carlos do Carmo segura o microfone como se fosse uma cruz, “não sei voltar ao passado nesta noite derradeira”, “vejo-te ainda ao meu lado neste fado bailado”, “vou contigo, coração a morrer dentro de mim. Se ainda bates sem razão”. “Boa noite Figueira, foi com muita alegria, que quando aqui cheguei às cinco da tarde, vi que a sala estava esgotada. Foi muito bom! Assim como é encontrarmo-nos no início da Primavera e no Dia Mundial da Poesia”, em Lisboa deram-lhe a alcunha do Charmoso, é o último fadista contemporâneo da Amália. “Traz as rosas mais frescas do jardim”, “põe o vinho no copo”, “cruza as mãos no regaço”, “prova depois o vinho como o pão”. “Até agora só cantei homens, agora vou cantar uma mulher: Maria do Rosário Pereira, andei com ela ao colo”: “são as línguas das mulheres que vinham lamber-me a ferida se me virares as costas”, “não sei se me traíste, mas eu senti-me traído, mesmo sem ter a certeza”, “tens de perder a mania de deixar as pontas soltas na história do nosso amor”. Ao referir-se ao trio de músicos “parecem engenheiros hidráulicos, era o sonho da minha mãe que eu fosse engenheiro". O próximo poema é da Maria Teresa de Noronha, “revejo tudo e reduzo o meu amor de toda a hora, minha amante, minha amiga, na manhã à toda hora”, “um amor quase perfeito”, “não sei se é contigo se é comigo que me deito”, “coração quase morto”, “fado longe, fado perto, fado destino de mim”, “às vezes é um deserto outras vezes um jardim”, “só este fado de amoooor”. Sobre Dean Martim do qual se diz amigo: “ele estava com uma bebedeira tão grande. Perdoem-me este parêntesis”, “um chuto”, “um céu no olhar”, “os putos”, “mas quando a tarde cai senta-se no colo do pai”, “os putos”, “as carícias brilhando na mão”, “parecem bandos de pardais à solta”, o público: “os putos”, “são os putos deste povo a aprender a ser homens”. Desce do palco para a plateia: “o prazer de cantar, tem algo de narcísico. Os meus filhos já não se recordam de me ouvir cantar a brincar”, “a vida já passou um bom bocado”, e lembra, “fez vinte e cinco anos em Janeiro que morreu José Ary dos Santos”, “era a tarde mais longa que me acontecia”, “surgiste na tarde”, “meu amor”, “já não tenho a certeza se és a alegria ou a tristeza”, “foi a noite em que os nossos corpos cansados não adormeceram”, “meu amor”, “minha estrela da tarde”, “meu amor”, “é por ti que acordo”, “essa noite que nasceste despida de magoa e de espanto”, finaliza a pedir uma ovação ao “Dia Mundial da Poesia, palmas! Para o nosso Ary! Sempre!”
Aparecem os músicos da Sinfonieta de Lisboa, que em nada acrescentam aos temas, por vezes alguns apontamentos não são redundantes, mas apenas servem para realçar o trio de músicos em particular a guitarra portuguesa. “Os amantes infelizes deveriam ter coragem para mudar de caminho, o amor dá-nos tudo”, “mas quando a vida se acalma”, “se estás a tempo amordaça o coração”, “mas se não estas contínua, diz-me isto a minha mãe, ao ver-me chorar por ti”. Discursa: “os puristas não gostam que nós cantemos com orquestra. Todos os meus êxitos, foram sempre com orquestra, e se me perguntarem se eu me sinto fadista a cantar com orquestra? Eu digo que sim”. E canta como se fosse um cauteleiro embriagado, “perfeito coração, no meu peito”, “esse olhar que era só teu, amor que fostes o primeiro”, “morreria no meu peito”, “meu amooor”, “na tua mão, mas a mão bateu no coração”. Sobre a Sinfonieta, Carlos do Carmo é taxativo: “são todos músicos portugueses, todos!”; “pela manhã vi como dormem os silêncios”, “e na ternura do meu quarto a loucura”, “só vejo a manhã do dia”, “só agora é que não estou perdido por ser de noite”, “procuro o sol da meia-noite nesta tarde”, “só agora a voz faz sentido”, “por ser de noite”, “canto o fado ou estou perdido?”. De seguida apresenta o autor da décima primeira canção, este tema é de “um dos maiores melodistas que o fado já teve: Max”, “e gravar na minha pele as fontes da minha dor”, “a noite continua…”, a amplificação da sala é anulada, Carlos do Carmo improvisa sem o microfone, “que se estendia no mar”, “noite, céu dos meus casos perdidos”. O cantor justifica o erro, “estas coisas podem acontecer”, “lá vai no mar da palha o cacilheiro”, “pouco tempo e muita mágoa”, “parece um barco lançado no Tejo por uma criança”, “Bairro Alto, tu cá, tu lá, um barco de brincar”, “e parte de um cais que cheira a jornais”, “fica mais triste o coração da água”, “pouco Tejo, pouco Tejo e muita água!”. A guitarra portuguesa inícia um clássico que a orquestra acompanha com respeito, “agarro a madrugada como se fosse um criança”, “uma videira de esperança”, “tal como o corpo da cidade”, “que desagua no Rossio”, “sou um homem na cidade, que de manhã acorda”, “vou pela estrada deslumbrada”, “sou gaivota que derrota toda a tempestade”, “agarro a madrugada como se fosse uma criança”, “o malmequer dessa cidade que me quer bem”, “a falar sem medo”, “como aroma que o mar tem!”. O trinar do fado vadio, “vou cantar o Bairro Alto”, “tristes bizarras em comunhão, andam guitarras a gemer de mão em mão”. A flauta respira em surdina prolongando os acordes das guitarras, “tu deixas-te de ser minha”, “por morrer a andorinha não acaba a Primavera”, “se deixaste de ser minha, não deixei de ser quem era”, “e os dias passam bem”. Os violinos e a flauta dão continuidade à melodia da guitarra portuguesa: “No castelo ponho o cotovelo, em Alfama descanso o cotovelo”, “a almofada na cama do Tejo”, “tão pura”, “teus seios são as colinas”, “cidade a ponto luz”, “cidade da minha vida”, “és mulher de rua”, “Lisboa menina e moça”, “seios”, “cidade a ponto luz”, “amada”, “cidade da nossa vida”, “cidade por minhas mãos despidas”, “cidade da minha vida”. A acentuar os acordes circulares, “canoa de vela erguida, que vens do cais das colinas”, “sem encontrar companheira”, “canoa de vela em banda, que vens da boca da barra, os gemidos de uma guitarra”, “agora muita cautela, não vá o mar acordar”, “nunca, nunca, nunca mais”, “canoa por onde vais?”, “nunca mais voltas aos cais?”. Carlos do Carmo conta uma história da sua juventude, “o Sammy Davies Jr., veio a Lisboa, o Monumental não encheu. O Sammy veio com baixo, bateria, guitarra, e com uma orquestra que veio de Londres. Estava na plateia uma senhora americana que lhe pediu uma canção que não estava no alinhamento, o Sammy olha para o Maestro, e este abana a cabeça positivamente. E ele cantou a canção que a senhora queria ouvir e no fim disse: “You see, I `m very nice boy, I do what I`m told”. A guitarra e o baixo abrem espaço à voz: “sagrado é este fado que te canto. Do fundo da minha alma tecedeira”, “e passei por tantas portas já fechadas”, “que dão a liberdade ao passarinho”, “encho o meu vazio de coragem”, “a fome de estar vivo é tão intensa”, “paixão que se alimenta de perigo”, “só ter por garantia ser antigo”. “Este fado que vou cantar a seguir é mesmo o último. Esta terra é muito bonita, muito especial”, a viola faz um dueto com Carlos do Carmo, “sob a luz de um candeeiro está ali um fado inteiro”, “um certo ar fadistão, que qualquer homem assume”, por entre o público e sem microfone, “mas o fado nunca é o que se pensa”. E no penúltimo tema versa um acontecimento histórico do baixo Mondego, “eu podia chamar para mim, esse amor de Pedro por Inês”, “como dizer, coração fora do peito”, “não há flor, não há flores de verde pinhoo”, “gostar de ti é um poema que eu não escrevo”, “este fogo de amor”, “como dizer este coração fora do peito”, “não há guitarras nem cantares de amigo”, “não há flor, flores de verde pinhoo”.

Carlos do Carmo e Sinfonieta de Lisboa, 21 de Março, Centro de Artes e espectáculos da Figueira da Foz.