domingo, 28 de dezembro de 2014

The Beauty and the Beast

Estão dois Robots humanos nos respectivos teclados, atrás dos quais se encontra um ecrã, e os sons que emanam são profundos mas simultaneamente leves. A programação festiva é tolhida por uma melancolia decadente que é introduzida pelo teclado, surge Tracy Vandal de vestido com lantejoulas até aos joelhos, é magra e o seu rosto é de um esmalte claro com lágrimas sob as pupilas, a sua voz é melodiosa: “Take me in my arms”, é alegre “of the night”, e festiva quando determina “free and nake”, os Robots estão isolados dos distúrbios românticos de Tracy Vandal, “moon”, e quase num sussurro: “like we dance before”, num eco: “night”. Tracy Vandal desloca-se para o ecrã e os Robots sustêm o negrume da melodia e quando as cores se revelam trazem consigo raios que perfuram nuvens brancas carregadas de algodão doce cor-de-rosa. O canto de Tracy Vandal é o de um corvo que assinala a chegada da Primavera “we ran free and nake”, e o pássaro ganha corpo de ícaro que esvoaça em direção da lua cheia e canta: “straight to the stars”, “where we could run free and nake just you and me”. Palmas. Tracy Vandal ironicamente deprecia o “Karaoke” do Rei de Coimbra a Capital do Rock, Victor Torpedo que nesta narrativa representa a beast: “I`m not Vic and Karaoke! I`m Tracy Vandal!”. As teclas impõem um andamento pausado e a voz de Tracy Vandal é diáfana “off this city”, a profusão das programações mergulhadas numa progressão de nevoeiro assassino emolduram um filme absurdo que é projectado no ecrã. Tracy Vandal confidencia como se estivesse como interlocutor David Foster Wallace: “In this quiet hill none can hear my scream”, e um punhal perfura o peito de um imberbe virgem, o ritmo que liberta as máquinas é cadente e consequentemente opressivo. A ode à morte é perpetuada no verso: “and I want slowly fade away”. Os teclados rejeitam uma melodia aparentemente e paradoxalmente alegre mas que na verdade representa a luz post-mortem. O canto de Tracy Vandal é aveludado: “I wash until they fall into the night”, “I won`t be their to catch me”, desloca-se para a frente do ecrã, as programações ganham um dramatismo épico, de costas para o público abre os braços com os quais desenha uma cruz e das suas mãos chagadas pinga um sangue vermelho tinto, quando se aproxima do tripé na boca de cena canta através do microfone: “to catch you”, “circles around my eyes”, os robots impõe um crescendo arrepiante entre o filme negro e o musical de Hollywood, “I wash as you fall into the night”, a promessa é cantada por entre o lirismo tecnológico: “I won`t be their catch it”. Palmas. Tracy Vandal confidencia à pequena multidão: “I forgot to explain. First you fall in love and you get him. Second you get into pressure. Third you go to the beach and you want to die. This song is call ´Once a Sunset`”. As máquinas apropriam-se de um ritmo pausado, a voz de Tracy Vandal expele as palavras lentamente e penetrantemente: “Where I can hear you?”, “every piece of me, try not to try a smile”. Quando o refrão é repetido quatro vezes: “I remember once a sunset”, e a voz relata: “and I fall in the floor”, a melodia exalta-se inserindo um kitsch Pop, “anymore”, “somehow more than I can tell”. A Tracy Vandal descreve-se, “I remember once a sunset”, as programações mergulham no mar morto onde flutuam obrigatoriamente os corpos vivos ou mortos, brancos ou verdes e inchados com os olhos salientes das órbitas. “I can feel”, ouve-se o metal a bater no metal, “for me”, como se fosse o ritmo de uma dança fúnebre numa sociedade pós-industrial, “I can fell a darkness”, a batida dos ponteiros marca a passagem do tempo psicológico, “take my soul away”, a voz de Tracy Vandal é de um cisne branco pintado por Henri Rousseau, “my soul away”. Palmas. A quarta canção “was written by me and João Rui”. Os sintetizadores emanam dos teclados uma melancolia que se expande levemente, mas Tracy Vandal desconcentrar-se acidentalmente: “Sorry can we start again? I fucked up because I wans`t hearing” os Robots param e retomam a métrica inicial: o da esquerda insere os sons flutuantes e o da direita as notas de um piano melancólico. Tracy Vandal canta como se estivesse a contar uma lullaby, “I hear a voice”, “of this words”, a relação entre piano e sintetizador encontra uma expressividade dramática, “across the moon”, a voz ecoa, “was a strong”, o piano mantém a melodia outonal, “into the night”, “last time I remember”, “away from this world”, “across this room”. Palmas. “Thank you! Who do you want to kill? This next song is ´X Codes`”. A programação dos teclados é ascendente com um beat digital, “you have to kill your sadness”, a voz de Tracy Vandal revela uma angustia urgente, “my soon”, o ritmo digital é mais intenso como se fosse o tempo psicológico estivesse dominado pela ansiedade, “is a heart to follow, I will crash your sorrow”, “please stay”. Os Robots lançam uma cadência festiva de parada gay e a voz de ordem de Tracy Vandal é alta e consequentemente sobrepõe-se aos beats: “There`s only one way to get me”, as programações contém-se, “directions”; “a kiss is all that I want”, e por fim os robots ejaculam, “directions”, “a kiss is all that I want”, há uma ascendência rítmica promovida pelas programações, “and roll on the floor”, surgem a densidade cromática e as palavras determinadas, “we have to work it out”; e durante o beat Tracy Vandal é peremptória: “A kiss is all that I want, a kiss is all that I want, a kiss is all that I want”. Palmas. Tacy Vandal: “I`ll do the favor of not talk in portuguese”, “this song is call ´Fake`”. Os Robots impõe um ritmo curto e acelerado de discoteca de Ibiza onde dança sobre as colunas o Homem Aranha, “try to forget”, “try”, “remember”, a discoteca está comprometida com a lascívia que emanam das mulheres nuas. “You wish you where dead”, “so go go, I feel sick”, “so go go, up your face”, as programações revelam uma densidade de happy hour, “you are”, e o beat é promiscuamente kitsch, “that song you have to give”, no ecrã surgem figuras a preto e branco a contrabandear E, “go go”, “up your face”, “I get sick”. Palmas. “This next song is a very quiet song”; “It´s call ´One Second`”. A programação suspende-se como se fosse uma alma a emanar de uma recém-nascida e o teclado é cadenciadamente e melodicamente depressivo, no ecrã surgem vultos negros, a voz de Tracy Vandal é o de uma menina que vê o seu mundo a diminuir e o seu corpo a crescer e que alimenta o amor platónico por um anjo gótico, “one second to hold you”, “no matter”, o teclado sobrepõe-se à narrativa e cresce uma melancolia embebida num lago de cristais negros, “one second to hold you”, a programação irradia uma coloração de cadência dormente, “it doesn`matter ooo”, o teclado insere as notas de insulina e a programação adormece a menina. Palmas. “This next song is call ´If You Forget Me`”. O teclado grave e repetitivo é pontualmente polvilhado pelo sintetizador, Tracy Vandal olha para o seu reflexo: “you are fine to me”, “beautiful face again”, o teclado imita o timbre do cravo e oferece à canção uma espiritualidade Pop kitsch. Tracy Vandal canta lentamente: “pictures”, “streets and doorways”, sobre a densidade quase operática imposta pelos Robots. Palmas. “Last song”. “If you don`t go home and kill yourself”, “this song is call ´Last Take`”, “this song is about to die”. “Thank you for coming everyone”. A programação negra e profunda é acompanhada pelo teclado de melodia Pop, mas Tracy Vandal pede: “We are going to try this one again”, os robots param as suas maquinas psiconautas. Por fim retomam “Last Take” e a melodia que transcrevem é o namoro de um corpo com a sua alma, “the desire to die came from nowhere”, “the desire to die”, no seu canto há uma volatilidade que impregna o Salão Brazil de um esoterismo fúnebre, “and nothing”; “she belongs to anyone” os Robots são narradores flutuantes e a voz é delicada e sincera como um sussurro pecaminoso: “but the only words she could say was ´last take`”. Palmas.
A próxima estrela da noite é Victor Torpedo que sobe ao palco do Salão Brazil vestido de fato escuro e luvas de cabedal pretas como é apanágio de um mafioso prestes a cometer um crime banal. As colunas debitam uma música dançável e no ecrã dançam jovens, Victor Torpedo canta e prevê que “you are so dead”, as guitarras eléctricas e do baixo eléctrico derivam do movimento Madchester, “so dead”, a repetição dos seus acordes convidam à dança e o seu mais ilustre representante é Victor Torpedo, “ignore the city”, meneia as ancas antes de cantar os versos punks: “I`m sick of the city, I`m sick of the world”, dança absurdamente ao ritmo das guitarras e do baixo + bateria e do sintetizador que gingam alternadamente. A segunda canção é iniciada por uma pergunta de Victor Torpedo: “Tá tudo bem?”. A pulsão do baixo eléctrico é o elemento que conduz gradualmente para um groove ciber-kitsch, “to go”, o microfone parece que esta a ser arremessado contra o chão e daí resulta um estoiro metálico. Victor Torpedo revela a selva em que estamos inseridos: “People kill people”, “die”, o groove toma conta da consciência dos presentes através da sua festividade repetitiva com a devida disruptiva promovida pelo sintetizador, “People kills people”, “die”. Antes da terceira canção, Victor Torpedo sentencia sobre a beauty: “A Tracy não canta nada, eu é que canto melhor!”. Os sintetizadores introduzem uma melodia alegre, “dream about life”, Victor Torpedo no meio do público beija um dos espectadores, “like you and me”, há um solo de uma guitarra eléctrica alicerçada num ritmo binário, a festividade Pop domina-a como se fosse um fugaz encontro entre o homem e a felicidade, “like you and me”. Victor Torpedo aproxima-se do público, “like you and me”, “full of dreams”, “about life”, empunha o microfone a um fã que canta: “About life”. A quarta canção tem como princípio o riff de um baixo eléctrico e o sintetizador polvilha-a de uma vertente puramente dançante. No ecrã está um homem musculado seminu a fazer inchar os seus músculos picados por seringas hipodérmicas com hormônio do crescimento. “Loose control”, “they are calling for us”, os sintetizadores revertem-na para um travo de danceteria decadente da década de noventa, “happy in this land”, “loose control”, solo da guitarra eléctrica e do baixo eléctrico convergem para um madchester rock and pop-roll, “people care about”. Das mãos do homem musculado verte um sangue de poupa de tomate. Palmas. A quinta canção tem a premissa do baixo eléctrico que é preponderantemente pontuada pela caixa de ritmos, “go to a place that I konw”, Victor Torpedo despe o blazer, “people to bite”, surgem samurais no ecrã, “I know”, a melodia é Pop com assomos de um low beat contínuo que enfurece o Rei da Capital do Rock: “you control me”. A sexta canção mistura as programações com o baixo eléctrico, “their`s a way”, a voz de Victor Torpedo tem os trejeitos de um crooner sem abrigo, no ecrã surge Elizabeth Taylor no papel Cleópatra num palácio dourado que se derrete com os raios do deus Sol, “crime”, que recusa “a life of crime”, a Pop é um estado de alma profundamente decadente. Palmas. O Rei de Coimbra é um rebelde: “A minha mãe, desde os meus catorze anos, que diz que eu não canto um caralho!”, dedica a sétima canção a “todos os emigrantes”. O baixo eléctrico e as guitarras semi-distorcidas repetitivas transpõem uma Pop dependente da década de noventa. “Wind”. “Fresh desire”. Antes da oitava canção Victor Torpedo avisa: “Isto está quase a acabar!”. A programação em loop corresponde a uma melodia dançável que injecta sincopadamente uma festividade desarmante: “my eyes”, “TV”, no ecrã um gordo de cuecas tenta apanhar um homem magro e minúsculo de cuecas, um é a ratazana o outro um gato branco. Na nona canção o baixo eléctrico inscreve uma métrica repetitiva e que é quase negra, “that love sucks”, o sintetizador retira-a da dor e impregna-lhe uma melancolia determinada, no ecrã uma mulher armada escala um rochedo do qual cai, a guitarra eléctrica sola agudamente, “I belive in what you say”, e as guitarras versam um universo Pop que não a libertam de uma tristeza endógena. Palmas. Victor Torpedo é perentório sobre a popularidade da décima canção: “Os meus fãs sabem esta!”. Esta denomina-se de “Only Gosts” que tem um groove em que perdura uma bipolaridade entre a Pop e a dance music da década de noventa do século XX promovida através de low fi. Victor Torpedo enquanto dança passa o microfone a membros do público, “it`s only gosts”, no ecrã surge uma cria elefante num jardim-de-infância, “a picture on the wall”. A próxima canção é “Meet my Tribe” e Victor Torpedo discursa no imperativo: “Esta é a última depois toco mais quatro ou cinco!”. O loop que a perpassa é um afro-beat, “Meet my tribe”, no ecrã surgem afro-americanos que dançam freneticamente e fazem baloiçar as suas cabeleiras do movimento bombista os Panteras Negras, eco: “Meet my tribe”, “OOOO”. Palmas. Victor Torpedo determina: “Isto acabou! Querem mais?”. A programação da décima segunda canção deriva de uma relação entre o MDA e a água resultando numa inconsciente leveza do ser e consequentemente promove a deflagração da inexistência de constrangimentos morais, o Rei da Capital do Rock encontra-se no meio do povo com os quais delira: “OOO”. A décima terceira canção é apresentada por Victor Torpedo da seguinte forma: “Querem mais? Esta música é a última! Depois toco mais duas ou três”. Corresponde a uma sátira ao twist, “OOO”, surgem no ecrã chineses vestidos de cabedal com poupas hiperbólicas que dançam ao despique, “auu”, “AHAHH”, “common”, o twist acelera e ganha uma proporção de trip do absurdo, um homem nas cavalitas de um outro surgem espontaneamente no palco. A décima quarta canção é melodicamente melancólica, “let`s make some love”, no ecrã aparecem cadáveres de militares americanos num teatro de guerra vietnamita, as guitarras reverberam como ecos de uma última valsa. A décima quinta canção denomina-se de “Il Est Deja Trop Tard” e o Rei de Coimbra faz um apelo sentido: “Conduzam com calma, vocês são uns alcoólicos!”. Tem um groove das caraíbas, no ecrã uma loura espampanante olha para o público que observa Victor Torpedo que canta: “Il est deja trop tard” como se fosse uma confissão de um boémio que recusa partir para casa. A repetição de “il deja trop tard” e dos respectivos acordes podem incutir a hipnose, logo a canção está proibida de ser ouvida por menores, “I love Coimbra”. Victor Torpedo empunha o microfone a uma mulher de cabelos lisos que vibra com a canção e aceita o repto e canta: “Il est deja trop tard”. O Rei da Capital do Rock despede-se dos fãs: “Au revoir mês amis”.

Tracy Vandal and The Robots, “The End Of Everything” + Victor Torpedo, “Karaoke”, 26 de Dezembro, Salão Brazil @ Coimbra

domingo, 21 de dezembro de 2014

Textos Malditos

Os próximos convidados dos D3Ö são “os nossos amigos A Jigsaw”, “um caloroso aplauso para os A Jigsaw”. Palmas. Os A Jigsaw são uma dupla máscula constituída por João Jorri e de João Rui e este último queixa-se: “Faria para o ano dez anos que eu cantava sentado”, numa cadeira onde dedilha uma guitarra acústica e canta as suas baladas neo-negras, “mas estes gajos!” impediram-no de alcançar essa proeza e somente por isso os D3Ö mereceriam uma placa com o seu nome numa rua transversal à rua direita. “Night Before” é marcada por variáveis egocêntricas por parte do teclado de João Jorri, as guitarras dividem-se metricamente: uma é dantesca a outra convertida a um Diabo desconhecido. A voz de João Rui é grave e funda “fever”, o teclado de João Jorri anula-se para deixar as guitarras vaguearem como um unicórnio bicéfalo. “Strange guy”, “I have to try” , o solo do hammond é de facto pernicioso por evocar uma beleza inalcançável. Após a pausa o quinteto mistura-se e promove um caldo pronto a ser injectado numa veia azul, “I say yeah”, “it`s true”. Os A Jigsaw mantêm-se no palco juntamente com os D3Ö: “Lá ao fundo percebem o que eu digo?”. Em “Take this Love” o ritmo é quatro por quatro e a guitarra eléctrica de Toni Fortuna introduz os acordes que gradualmente a dominam com um torniquete torturador com a cumplicidade da guitarra eléctrica de Tó Rui. A voz de João Rui é funda: “for me”, “for me”, o recrudescer do ritmo ergue uma estrutura Rock and Roll, “why they say?”, e o teclado de João Jorri é pontual a emergir da rugosidade rock, “all the boys and the girls”, a constância rítmica emoldura a voz de João Rui, “hold you tight”, “no matter what they say”. Para anular a “frustração da redução de pessoas em palco, vamos chamar um outro trio, senhores e senhoras os Birds Are Indie”. “Uma salva de palmas para estes três senhores”, um dos quais é uma jovem tímida que se ocupa do teclado, um outro da guitarra acústica e da voz e ainda há quem empunhe um baixo eléctrico. Em “On The Age” o tempo que é estabelecido pela bateria de Nito é Pop, a voz é a de um jovem tristonho perdido propositadamente no caminho para casa, “standing all day”, o baixo eléctrico tonifica-a com uma profundidade Pop e o teclado é apenas um fantasma sóbrio. “Over my skin”. A contenção dos D3Ö sustenta a delicadeza das harmonias dos Birds Are Indie e evitam que “On The Edge” vacile numa melancolia Pop e desta relação há um fogo preso eternamente belo. Palmas. Ricardo Jerónimo dirige-se directamente em voz alta ao público: “Queríamos agradecer aos D3Ö por nos darem a possibilidade de gritar em palco”. Em “Wanna Hold You” são os Birds Are Indie que se impõe através de uma melodia frágil com a cumplicidade da bateria de Nito, que pontualmente é corrompida pelo solo da guitarra eléctrica de Tó Rui. A voz pertence à de Joana Corker: “Talk”. A resposta de Toni Fortuna: “Excuse me?”. Quando “Wanna Hold You” se encontrava em vias de ficar presa a uma monotonia Pop os D3Ö injectam no dreno uma vertigem rock pulverizando os Birds Are Indie. Toni Fortuna encarna num psicólogo rock: “Ninguém tem problemas?”; “a próxima música chama-se ´Too Late`”, e é a segunda e penúltima a ser executada exclusivamente pelos D3Ö. A pontuação da bateria de Nito é quase omnipresente e estabelece uma falsa progressão, as guitarras reviram incidentalmente as cordas e gradualmente impõem-se. O bombo bombeia um passo largo com a flutuação ríspida da guitarra eléctrica de Toni Fortuna sublinhado pelo solo preciso da guitarra eléctrica de Tó Rui. O encurtamento do ritmo oferece um minimalismo rock que perseguido pelas guitarras, “too late”, a comprometem com a usura do rock e isto oferece-lhe um carácter de originalidade. O solo da bateria de Nito confere um assomar de um efeito épico mas que rapidamente é vilipendiado pelas guitarras eléctricas em galope de sangue a inundar o coração. “Too late”. Palmas. Quanto a “Ai Caramba” , “é a primeira vez que a vamos tocar em público”, e para tal convidam o trompetista, “uma salva de palmas para Daniel Tapadinhas”, palmas. As guitarras eléctricas inserem os acordes semi-distorcidos e a trompete de Daniel Tapadinhas soa exoticamente como um shot de mescalina para matar de vez com a consciência ao extorquir-lhe uma alucinação incontrolável, os bombos ressoam à laia de passos de um gigante em vias de extinção. As guitarras repetem as credenciais de um rock profundamente comprometido com uma alienação ditada por uma sociedade alcoolizada. O solo da trompete de Daniel Tapadinhas é o epicentro de um terramoto que nos transpõe para um bar com música de mariachis desterrados de um México onde reina o narcotráfico. “Ai Caramba”. Os D3Ö são os transmissores de uma alegria desmedida alicerçada num absurdo em que eclodem para dominar as fronteiras que regem o Rock and Roll. Daniel Tapadinhas remonta através da sua trompete para um universo bafond chicano e as guitarras revelam-se consequentemente distorcidas, uma das quais emite um solo rock and billy e a bateria de Nito concede uma violência contida. “Diable”. Palmas. Toni Fortuna declara: “Vou tentar cantar a próxima música. Chama-se ´Make It`”. E não dispensa a trompete em surdina de Daniel Tapadinhas que procura revelar-se através da massa sonora repetitiva que as guitarras eléctricas dos D3Ö expelem em bloco, “Make it”, o desenvolvimento desta relação é contínua com Nito a suster os três músicos como se fosse um tapete voador repleto de ervas daninhas. “I want to do it”. A surdina da trompete de Daniel Tapadinhas procura imiscuir-se na vertente rock das guitarras mas a natureza do seu timbre inculca-lhe uma introversão (in)esperda. “I want to do it”. A bateria ergue-se e epicamente alterna com a surdina de Daniel Tapadinhas e os D3Ö encaminham-se alegremente para uma autocombustão desmedida. Para “2Day” Toni Fortuna convida “Raquel Ralha”, palmas, “queria agradecer aos D30 por estar aqui a rockar”. A lógica que a bateria e as guitarras eléctricas estabelecem é o da acumulação de cordes debitados em frequências alternadas. A voz de Raquel Ralha é doce: “Looks fine”. “My way”. “I say today”. As guitarras criam uma malha perturbadora mas simultaneamente sedutora, a voz de Raquel Ralha “shine” mas não rejeita o seu parceiro que a quer abandonar ao abandono, “I say today”, há um recrudescer rítmico dos D3Ö cúmplices com a cantora e sublinham uma estrutura Rock and Roll, “I say today”. Palmas.Toni Fortuna determina que seja “Raquel Ralha” a cantar “Croos The River” e a “Paula Nozarri vai fazer mais uma participação” e apropria-se de um teclado. O ritmo lento da bateria de Nito é inicialmente perturbado pelo jogo ríspido das guitarras eléctricas. A voz da cantora Raquel Ralha é de um timbre quente: “If I can make you happy”, e os D3Ö impõe um Blues atípico, “I can do”, quando surge a vertente rock Raquel Ralha é insensível à dor emanada pelas guitarras. “I can climb a mountain”. Há uma leveza no seu canto que é profundamente sedutor, Raquel Ralha: “Up”. Toni Fortuna: “to the sky”. Um solo arrepia o Blues que remonta empiricamente para o rio Mississippi que espelha um céu clarividente. “Cross the river”. Palmas. “A próxima chama-se chama-se ´Go`” e conta com Paula Nozzari na bateria e com Nito de formação totémica na pandeireta em pé entre Toni Fortuna e Tó Rui. A violência da bateria de Paula Nozzari é um composto determinante para libertar as guitarras numa loucura desenfreada, “I say go”. Sobre a potência rítmica as guitarras progridem em bloco mimetizando o famoso Wall of Sound inventado numa noite toxicómana por um assassino amigo dos Beatles, quando se canibalizam repetidamente, “I say go”. O solo de Tó Rui é um flash de heroína, a bateria reverbera num pulsar de coração alimentado com sangue poluído com pó, “let me”, pausa, “I say go”. Palmas. Toni Fortuna é o psicólogo das massas cor-de-rosa: “Não sei se algum de vocês tem problemas de coração?”. Para “God Knows” convidam Sérgio Cardoso que empunha o baixo eléctrico. Os D3Ö encetam uma estética virulenta, mas o baixo eléctrico de Sérgio Cardoso afoga-se no pantanal decibélico das guitarras, “I have to tell you a secret”. “Say”. Coro: “God kowns”. O solo da guitarra eléctrica de Tó Rui é em crescendo agudo, a bateria de Nito comporta-se como um louco que descobre que a sociedade é um manicómio, o solo em crescendo mantém-se, e a persecução da progressão dos D3Ö associa-se a uma fábula na qual fornicam diabos com hermafroditas. Palmas. Sérgio Cardoso mantém-se em palco juntamente com os D3Ö para tocar “Couldn`t Care at All”. A pontuação acelerada da bateria do monstruoso Nito suporta a aceleração das guitarras semi-distorcidas de Tó Rui e Toni Fortuna e este assegura um solo Rock and Roll mas pigmentado com vermelho negro. “Do it!”; “shake it”; “do it”. Pausa. A demência apodera-se dos D3Ö que não encontram cumplicidade no baixo eléctrico de Sérgio Cardoso, o delay da guitarra eléctrica de Toni Fortuna sobrepõe-se à violência rítmica de Nito que não se subjuga à agressividade da rugosidade das guitarras. Palmas. Sérgio Cardoso continua no palco do Salão Brazil a acompanhar os D3Ö para tocar “Say you Will”. O ritmo binário é potente e sobre o qual as guitarras distorcidamente actuam repetitivamente, “kown”, “ask you”, os D3Ö sustêm as notas, “no way”, “I say you will, I say you will”. Há uma detonação do epicentro dos D3Ö que é rápida e violenta, com uma incisão a sangue frio efectuada pela guitarra solo de Tó Rui. “I say you will, I say you will, I say you will”. Toni Fortuna: “A próxima música nunca foi gravada” e para “Nova Blue” convidam “o senhor Gui Barbosa”. A lógica instituída pelos D3Ö é o Blues com a devida memória sonora instituída pala harmónica de Gui Barbosa, “no”, “I love you”, pausa, “I`m in love with you”, “I love you too”, a harmónica de Gui Barbosa sopra um timbre de metal cromado e o ritmo ganha uma celeridade consistente. Toni Fortuna em regime de spoken word: “bad temper”. E ainda acrescenta: “É um prazer estar aqui com todos vocês”, palmas. Para a penúltima canção “Junior Dady” a bateria de Nito impõe-se através de uma cadência binária, Tó Rui ergue as mãos e bate palmas que são acompanhadas pelo público, os acordes das guitarras eléctricas introduzem uma rispidez de grão de cocaína, “yeah”. Toni Fortuna divide-se em duas personagens vítimas de bipolaridade surge um demente de olhos salientes, a sua boca liberta a língua que anarquicamente se exibe aos presentes, aumenta a altura e consequentemente a violência libertada pelos D3Ö, “inside my head”. Após a pausa o trio de Coimbra acelera virtuosamente como uma bola de speedball, “man”, Toni Fortuna está algures a subir para uma cadeira e a verter a sua esquizofrenia e quando salta explodem as personagens numa erupção que expele uma saliva viscosa de belladonas. A tensão é crescente com o solo de Tó Rui a imiscuir uma luminosidade rasteira mas épica, e os D3Ö transformam-se numa confederação beligerante que impõe a bomba atómica como futuro para a sociedade ocidental. No último tema Toni Fortuna convida para subir ao palco os convidados que o transformam em algo minúsculo e em conjunto encerram festivamente o concerto: “D3Ö and Friends”.

D3Ö & Friends, Love Binder Effect, 19 de Dezembro, Salão Brazil @ Coimbra

domingo, 7 de dezembro de 2014

Antichrist

Estão no palco mínimo da Havanesa um trio de delinquentes: Victor Torpedo na guitarra eléctrica, Pedro Calhau no baixo eléctrico e Marquis Cha Cha na voz, aos quais se acrescenta uma programação dançante. A massa melódica que daí emana é um groove que sub-repticiamente se apodera do ouvinte e consequentemente o obriga a menear as ancas. De realçar que o Marquis Cha Cha é um homem magro e alto que se encontra envolto uma gabardine castanha, na cara uns óculos escuros sobredimensionados para o seu rosto e na cabeça capucho do Pai Natal. Na quarta canção o Marquis Cha Cha questiona: “Are you ready for the miracle? Are you ready?”, o público responde-lhe com palmas, a melodia remete para os anos oitenta quando nasceu a designação indie no Reino Unido. “I`m yours”. Na quinta canção, quem domina sobre o beat atmosférico é a guitarra western de Victor Torpedo com o devido conluio do baixo eléctrico de Pedro Calhau, durante a qual o Marquis de Cha Cha despe a gabardine e revela o seu corpo branco de pernas felpudas, encobre a pélvis com um body preto que lhe oferece uma adjectivação sexy. A sexta canção tem um beat pesado que é assombrado pelo vocoder grotesco do Marquis de Cha Cha, a guitarra billy de Victor Torpedo flutua por entre as chamas da melodia que é polvilhada por gasolina pelo baixo eléctrico de Pedro Calhau. A sétima canção decorre a partir de uma métrica progressiva Pop: “Secret of life”. A oitava canção tem um pulsar predominantemente pesado e curto e incisivamente minimal com a dupla Victor Torpedo/Pedro Calhau a expurgarem um horizonte tórrido de deserto com um vento soprado por uma “bitch”.A nona canção é de uma métrica hipno-minimal rasgada pela guitarra eléctrica de Victor Torpedo, os PSICOTRONICS desembocam numa foz épica. A décima canção é incansavelmente dançante, cantada festivamente pelo Marquis Cha Cha: “Seat next to me”, “give me all your love”, que é aplaudida efusivamente pelo público, e educadamente agradecida pelo Marquis Cha Cha: “Muchas gracias”. A décima primeira canção é apresentada através de um beat rápido que é musculado pelo baixo eléctrico de Pedro Calhau com um solo imune à mediocridade de Victor Torpedo. A penúltima canção tem uma compleição da década de sessenta “belaparouva” que é divinamente decomposta pelos PSICOTRONICS. A última canção do concerto na Havanesa é de uma estrutura profundamente kitsch destinada para clubs onde se amam anjos puti. Após uma pausa, os PSICOTRONICS são convidados a tocar duas derradeiras canções que sumariamente representam um espírito subliminarmente transgressor e como tal inquiridor da nossa moral cristã.

PSICOTRONICS, 5 de Dezembro, Casa Havanesa @ Figueira da Foz

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Uivo

O documentário “Uivo” de Eduardo Morais marca os cinco anos da morte de António Sérgio e atesta que este não foi unicamente um radialista mas acima de tudo um homem que através dos seus programas revelou um ecletismo que o destacou dos seus colegas. Os entrevistados são músicos, radialistas, jornalistas, amigos e familiares e o ponto que os une é que existia em António Sérgio uma vontade expressa de representar uma minoria que não encontrava nos media um espelho no qual poderiam encontrar o seu reflexo. Ao colmatar este vazio António Sérgio é a voz de uma geração que quando sintonizava, por exemplo o “Som da Frente” (1982-1993) descobriam um líder que personificava uma marginalidade imposta pela sociedade. Numa época em que a internet era uma ficção e o acesso a determinados discos tinha que ser realizado através da sua importação. António Sérgio tem uma história profissional que é responsável pela produção do primeiro álbum dos Xutos e Pontapés “78/82” e do patrocínio de inúmeras bandas portuguesas como os Gift. Acima de tudo o António Sérgio usou a rádio como meio para difundir os géneros musicais Punk/Pop/Rock/Noise/Metal que eram rejeitados pelas rádios que difundiam uma estética imposta pelas multinacionais que exigiam o retorno imediato aos seus músicos. “Boa noite Coimbra. Cumpre-nos estar de novo em Coimbra com os Subway Riders” é a voz de Jinx o cantor e guitarrista dos Dirty Coal Train que é acompanhado por uma femme fatale na guitarra e eléctrica e por uma jovem na bateria. O percurso que iniciam é pontuado por garagens situadas numa cidade falida como Detroit como se as guitarras de Jinx e da Femme Fatale estivessem configuradas numa sujidade melódica. Disso é exemplo a quarta canção em que a distorção é preponderantemente entrecortada pelos breaks da bateria de Lena Huracán Coltrane. A quinta canção é de uma pulsão lenta mas pesada e as guitarras transportam-na para uma Pop incinerada. A sexta canção, deriva de um ritmo sujo e a nervura a céu aberto das guitarras de Jinx e da Femme Fale uivam: “EYEY”; “AAA”; “UAU”, instituindo alternadamente riffs viscerais sobre o ritmo pesado. A sétima canção tem um início tépido mas pesado que é gradualmente altercado pela dupla de guitarras: “I mean”. Na oitava canção o Jinx e a Femme Fatale cantam em uníssono sobre o ritmo acelerado das guitarras semi-distorcidas: “I love you”. “UAUAUA”. A nona canção tem pouco mais de dois minutos mas o que a torna mágica é o saxofone de Pedro Calhau que minimalmente transgride por entre a malha garage realçando o seu carácter de urgência Jazz. E após a última canção do alinhamento fica um eco que ressoa nos ouvidos do Salão Brazil e o transformam num espaço conspurcado por um pecado original. A segunda banda a subir ao palco do Salão Brazil são os Subway Riders que apresentam uma Pop eclética em constante desconstrução que é acrescida pela voz de Carlos Subway que se impõe como um denominador do absurdo. Nas canções em que esta vertente não é seguida, sobressai o kitsch da guitarra eléctrica de Victor Torpedo que encontra no teclado de Augusto Cardoso um cúmplice que lhe dá espaço para elevar cada um dos seus acordes ao Olimpo. A terceira canção tem uma enunciação de um flamenco embriagado que é dançada por Calhau Subway e este episódio revela acima de tudo que os Subway Riders não têm pretensões de particionar uma vida agrilhoada a um sistema económico-social que os torna recipientes de faits divers. Na quarta canção apropriam-se do México, na seguinte param na Jamaica, e a quinta é um “clássico low fi”. A entrada em cena do Marquis de Cha Cha: “Um génio de Portalegre que vai fazer um dueto com o Calhau”, surgem passarinhos a namorar à janela de um hospital psiquiátrico. A sexta canção é apresentada por Carlos Subway: “Agora vamos tocar uma canção do Marques” que é dominada por um beat atmosférico viciado num groove dançante. A sétima “I can`t get no satisfaction” é dominada pela guitarra eléctrica de Victor Torpedo que reproduz os acordes da canção dos Rolling Stones sem os mimetizar antes oferece-lhe um minimalismo rock and billy. “James Brown” é uma sátira à soul mas envolvida numa convulsão constante. “África” tem um loop melódico produzido pelo teclado de Augusto Cardoso que é repercutido acidentalmente pelos Subway Riders. Para encerrar o concerto convidam os diversos músicos presentes na sala a subir ao palco, melodicamente surge uma substância espessa que trama uma opacidade sonora.

“Uivo” documentário de Eduardo Morais, The Dirty Coal Train, Subway Riders, 8 de Novembro, Salão Brazil @ Coimbra

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Fado Alexandrino

Sobe ao palco do Salão Brazil a Joana Tê a responsável pelo festival multidisciplinar Re-Factory alusão à Factory de Andy Warhol em New York e à Factory de Tony Wilson de Manchester. Joana Tê discursa através do microfone: “Boa noite a todos. Bem-vindos à segunda parte do Re-Factory”; a tarde havia sido ocupada com o concerto dos Nó Cego, documentário, conversa com os Subway Riders, exposição de pintura. No palco do Salão Brazil estão os Vaginas Convulsivas constituídos por um trio: baixo, guitarra, guitarra e teclados e voz. A música que executam é apoiada num minimalismo low fi pontuada pela guitarra de Pedro Calhau que peja as canções com uma suprema vertente western do Ennio Morricone. A voz de Carlos Dias é um declamar cantado que causa inicialmente uma estranheza que se entranha e que não deixa que os presentes se ausentem para parte incerta. Quando as programações ganham corpo diáfano de pedra a partir da qual das quais a guitarra eléctrica de Calhau e o baixo eléctrico de Sérgio Cardoso a espessura sónica é arrepiante por apelar pelo desconhecido, um salto no escuro do escuro, um fechar de olhos que vê para dentro e perscruta a inconsciência com o seu labirinto de esgares que instigam o medo. Carlos Dias antes de executar a derradeira canção da noite despede-se da seguinte forma: “Vamos então tocar a última. Não sem antes de acabar, darmos os parabéns à Joana Tê por ter organizado esta coisa toda!”. Os segundos convidados do Re-Factory são os Cavemen, um trio de rapazes com uma formação clássica de banda de rock constituída pelo baixo e voz, guitarra e bateria. Os meus rascunhos apontam para termos como: “repetitivo”; “ritmo and blues”; “estereotipado”. “Somos os Cavemen aqui de Coimbra”. A execução dos Cavemen do rock and blues é de facto irrepreensível, mas este poderia ser facilmente descartado se as canções tivessem alguns laivos de originalidade, algo que é deficitário na sua linguagem à la carte, resumindo-as a decalques apresentados em diferentes ritmos para dessa forma ganharem um caracter artístico, logo único. Este vazio repercute-se no ouvinte de duas formas: a familiaridade do género leva-o a gostar dos Cavemen; na falta de soluções que acrescentem algo mais às canções impõe-lhe um tédio pernicioso. Os Cavemen têm humor: “Conhecemo-nos na caverna”, três jovens ambiciosos que se um dia se distanciarem das raízes que prendem a caverna à Terra poderão emancipar-se artisticamente. Surgem os míticos M`As Foice que envergam fatos diversos: há três palhaços, um cowboy com balões, mafioso e um lutador de judo de quimono com balões, banda histórica da cidade de Coimbra por se terem insurgido artisticamente contra a ordem estabelecida imposta pela cultura académica e consequentemente opunham-se a uma cidade que em 1987 ainda vivia da memória dos fados de Coimbra compostos por Zeca Afonso. Um transístor assinala a existência de “António Sala” e de “Júlio Isidro”. “Destino Coimbra”. Toni Fortuna é um homem educado e sublinha: “Queria agradecer gentilmente ao Salão Brazil por este chocalho”, exibe-o e lança um olhar tresloucado sobre o público. Ouvem-se badalos e chocalhos é a ruralidade a invadir um ambiente profundamente urbano e através deste paradoxo revela um Portugal de minifúndio. Nito é o Cowboy destemido, homem alto e de estrutura totémica, as suas palavras são de ordem: “Cá mais prá frente!”; e ameaçador: “Devo lembrar que o meu microfone chega aí!” e aponta ameaçadoramente para a plateia que esgota o Salão Brazil. “Obrigado capital do Rock”, o ritmo da primeira canção é curto, “pessoal”, “latada”, os balões arrebentam e largam pó talco, a guitarra eléctrica do Palhaço Triste expele um riff rock and roleiro que se impõe como denominador comum, “não sei, não sei”. Toni Fortuna encarna no Judoca educado: “Obrigado!”, o seu papel é o de um desestabilizador por se retratar como se fosse um atrasado mental com pronuncia beirã, o tolinho da aldeia, o acólito que acompanha o padre na pascoela para se embebedar gratuitamente. Judoca: “Pró caralho!”. Cowboy: “Quarta-feira”; “Quinta-feira”. Os M`As Foice impõem uma pausa ao rock. O Judoca recebe uma chamada telefónica e responde com a sua pronúncia que sublinha as palavras de um sibilar de uma cobra perdida no pinhal: “a sério, bâton, capim”. “ir prá merda!”, os M`As Foice mantêm a propensão rock até ao fim, “prá estudante, vai anda merda!”. A segunda canção tem como propulsão o baixo eléctrico do Palhaço Alegre e a guitarra eléctrica do Palhaço Triste, ouvem-se galinhas a coaxar como rãs embriagadas durante o eclipse da Lua. O ritmo é popular mas não é popularucho, antes uma satírica às canções de bailes onde os casais namoravam na época da vindima ou na colheita da espiga. O Cowboy e o Judoca intervêm na sátira: “Lalala pospos”, o solo da guitarra eléctrica do Palhaço Triste inculca-lhe uma urgência festiva que é repercutida pelo do baixo eléctrico do Palhaço Alegre, explodem balões na cabeça do Judoca como se fossem balas a perfurar-lhe o crânio mas a substância que daí emana é um pó que foi inalado pelo inadaptado da “Laranja Mecanica” antes de brindar com Moloko a vitória de mais um crime gratuito. A harmónica inscreve-se numa contemporaneidade pertinente, a fornecer à canção um tónico que impõe a disruptiva. Explodem mais balões que inundam o palco com uma propriedade lunar mas simultaneamente tóxica. Na terceira canção o Judoca num loop: “Houve um dia ao entrar na porta, na janela”, que é absurdamente entrecortado e transforma o desportista do oriente num gago digital, por fim o Judoca consegue libertar-se da sua anormalidade e resume: “A porta era uma janela que tinha saída”. A estética que os M`As Foice se propõem explorar é o Rock, “no futebol”, mas as palavras de ordem do Judoca e do Cowboy remetem para um universo festivo de jovens a delirar com a estupidificação. “Mau Maria e era tudo o que eu mais queria”, o baixo eléctrico do Palhaço Alegre transporta-a para o colo de um Blues mas que é metricamente proscrito pelo solo da guitarra eléctrica do Palhaço Triste, “coração”. Explodem balões que exortam o despertar do público que não se consegue abstrair da progressão hard rock que a remata com laivos épicos. O público ovaciona os M`As Foice. A quarta canção tem como potenciómetro o baixo eléctrico do Palhaço Alegre, o Judoca entoa manhosamente: “É pá franja só uma vez se usa franja”. “É pá franja só uma vez se usa franja”. “É pá franja só uma vez se usa franja”. “É pá franja só uma vez se usa franja”. A secção rítmica responde em bloco a este refrão através de uma pontuação curta e repetitiva, as guitarras do Palhaço Triste e do Mafioso revertem para um universo Rock, mas é a entoação do Cowboy e do Judoca satirizam o fado através da onomatopeia: “Lalareirei”, “Lalareirei”, solo semi distorcido da guitarra eléctrica do Palhaço Triste. “Emocion hurts”. As cores que os Mas Foice procuram evidenciar são naturalistas aplicadas na tela de forma abstracta satírica. “Sejas de Coimbra”. O cowboy: “Dunas são como divãns”. O Judoca atira-se sobre a plateia. E por fim um conselho oportuno de um padre ébrio: “Não se preocupem que as nossas mães lavam tudo”. Na quinta canção os Mas Foice desferem um Rock dominado pela bateria hard rock da bateria do Palhaço Rico e pelas guitarras distorcidas do Palhaço Triste e do Mafioso, “AAAA” , “não o quis”, a progressão que encetam é uma virtuosa analogia à estética hard rock com madeixas hair metal, “a gaja não o quis”. A sexta canção tem como premissa a bateria do Palhaço Rico e o solo do baixo eléctrico do Palhaço Triste impõe um Rock and Roll preponderantemente demente pois estilhaçado pelos riffs da guitarra semi-distorcida do Palhaço Triste. O Cowboy possui a dona de casa como se fosse “uma meretriz”, um balão explode junto à cabeça do Judoca expelindo esperma em pó e os M`As Foice convertem-se em hard rockers saídos de uma garagem de teias de aranha. Antes da sétima canção o Cowboy é cordial: “Esta música é dedicada a toda à gente que ainda tem borbulhas” e questiona: “quem é que aqui ainda tem borbulhas?”. Da plateia a resposta é um gélido silêncio que os impede de insurgirem-se contra o insulto disferido do palco: “Imberbes!!”. E baptiza a sétima canção; “A próxima música chama-se ´Acne Juvenil`”. O riff distorcido da guitarra eléctrica do Palhaço Triste apresenta uma exortação violenta repercutida pela secção rítmica, o Cowboy e o Judoca entoam uma ladainha infantil que se impõe através do absurdo: “Há muito perdi a vontade de brincar”. “Há muito perdi a vontade de brincar”. “Há muito perdi a vontade de brincar”. O Judoca dança e atira-se como uma estátua sobre o palco instalando uma tensão angustiante, e reina a contínua exortação do Rock destinado a ser vivenciada durante a adolescência em que a realidade perde o seu carácter determinista. A oitava canção é iniciada por palavras de ordem do Judoca: “Esta merda toda em conjunto!”, “o que andam a fazer caralho?”. Os M`As Foice introduzem o Blues com pigmentação proficuamente kitsch disso é exemplo o solo da guitarra eléctrica do Palhaço Triste, o ritmo relega-se para um arrastamento de mãos sobre a areia de um deserto iluminado pela lua. “E uma sopa de feijão?”. A guitarra entrecortada e semi-distorcida do Palhaço Triste ensimesma-se do Blues e consentaneamente realça o seu carácter kitsch. “Bacalhau à portuguesa”. O solo do baixo eléctrico do Palhaço Alegre não é mais do que o prolongamento da escala típica do Blues para ser o nervo que sustenta a oitava canção vilipendiada pela guitarra do Palhaço Triste e secundarizada pela do Mafioso. “Cheiro a merda”. “Bacalhau à portuguesa”. “Laralaralara”. O Cowboy em discurso directo: “Na impossibilidade desta possível”. O Judoca impõe um suspense inspirado na Agatha Christie através da frase destituída de lógica: “Como se canta isto?”. A veia que os M`As Foice exploram é a Pop para ser incluída numa playlist de uma rádio que tem como target uma creche com crianças enlouquecidas por causa do consumismo paternal: “Pingo Doce venha cá”. O Cowboy e o Judoca numa entoação adolescente: “Coca, Coca Cola Billy, Coca, Coca Cola Billy, sou um Coca Cola Billy com poupinha no ar”. Anulam a Pop para deficientes mentais quando as guitarras eléctricas semi-distorcidas do Palhaço Triste e do Mafioso inscrevem a nona canção num hard pop contaminado pela adjetivação kitsch. “Coca, Cola Billy”, a bateria do Palhaço Rico encurta o seu ritmo, “reggae”, “Angola” e a melodia africana é devedora ao Duo Ouro Negro envenenados por cogumelos alucinogénios. Os M`As Foice enquadram-se numa vertente predominantemente rock pub que é contaminada pela guitarra reggae do Palhaço Rico e do Mafioso e aparentemente surgem troncos de canábis a serem incineradas em Auschwitz. O Cowboy ganha balanço e faz-se à plateia que não é violentada pela correria enlouquecida de um Totem humano; e por fim o hard rock encontra-se nas harmonias rudes e aceleradas. “Coca, Coca Cola Billy”. Palmas. O cowboy descobre: “Só coca no chão” e insulta o público: “Drogados!”. Palmas. Segundo o Cowboy os M`As Foice podem tocar: “Duas músicas e meia! Só para vocês!”, e o Judoca informa: “que há um incêndio aqui ao lado” e nem o seu sotaque de Cardeal Cerejeira credibiliza a personagem e consequentemente não instala o pânico na multidão, mas não desiste e profetiza um digno fim para os fãs dos M`As Foice: “Morremos todos queimados!”. A décima canção é dotada de um ritmo com uma protuberância infantil mas gradualmente o Palhaço Rico posiciona-a numa vertente dois por dois vilipendiados pela guitarra semi-distorcida do Palhaço Pobre, transcrevem um Rock anti-pedagógico pois demonstrativo de uma severa modelação satírica. “Não estou a fazer nada”; “passear na rua, passear na rua”. O riff da guitarra eléctrica do Palhaço Pobre sustenta a canção através da sua contínua presença perturbante, o Judoca modifica o seu timbre adolescente para o de um monstro que devora os ácaros: “Terror”. “Todos os dias eu passeava”. O ritmo Pop é imposto pela bateria do Palhaço Rico conspurcado pela guitarra de arame farpado do Palhaço Pobre. O gozo é permanente como o estado de espírito de um sem-abrigo que se ri dos escravos das cidades que para ele não passam de erva daninha que lhe dão esmolas misericordiosas: “AIAIAIA”. Pausa. O Cowboy aponta com a sua mão direita para o tecto do Salão Brazil: “Ele estava”, “mas”. O judoca: “Emergência”. O Cowboy ensaia deslocar-se por um cabo de metal com uma vara nas mãos para o manter seguro enquanto se deslocado por entre arranja céus. O Judoca com sotaque castelhano: “Lolita e seus sapatos” de bailarina virgem para seduzir Woody Allen. Por instantes a métrica Pop funde-se à Rock e a melodia é um sedutor zumbido melódico proveniente de uma esfera suspensa no espaço à espera da sua cara-metade com cicatrizes de robot hominívoro. Os M`As Foice transcrevem as harmonias de um casamento de ciganos da Mancha em que reina una fiesta que festeja o fim da virgindade da Lovenita. A valsa é o último acrescento à decima canção: “EIEIEI”. “EIEI”. A décima primeira canção tem um elixir de baile mas a melodia quente que os M`As Foice membros ponderadamente executam é um “Fado Alexandrino” que não foi escrito por António Lobo Antunes. O Cowboy encarna no fadista vadio que cruza as ruas sujas do Bairro Alto com bordéis emancipadores de jovens perdidos na cegueira provocada pelo estímulo do líbido. O Cowboy é fiel aos seus segredos; “De quem eu gosto nem as paredes confesso”, ele e o Judoca levantam os braços a celebrar uma portugalidade de papel de cozinha chamuscado pelo terremoto de 1755. “Não gosto de ninguém”. Palmas. Na última canção os M`As Foice inscrevem-se num pendor Rock repetitivo da responsabilidade do baixo eléctrico do Palhaço Alegre e da bateria do Palhaço Rico que sustentam o refrão: “É Mas Foice”, numa toada à laia de um hino de futebol que é pontuado por ovelhas clonadas que procuram o seu pastor numa deambulação perdida sobre a lava petrificada. O público acompanha o Cowboy e o Judoca: “È Mas Foice” numa festividade digna de ser inscrita na nossa memória futura.

Re-Factory, 01 de Novembro, Salão Brazil @ Coimbra

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Peter Pan

Há um ecrã branco que cobre a boca de cena do palco do Coliseu dos Recreios sobre o qual são emitidas samples de imagens de figuras icónicas como por exemplo: Brian Eno; Nico; Siouxsie and the Banshees. Uma actriz reflecte-se no espelho e sublinha: “Face to face with the person you really are”. Uma declamadora entoa melancolicamente: “Waiting to die”. Nas ruas de Londres há inúmeros motins contra a “Witch” , “The Iron Lady”, “Scum”, “Margaret dead”. Um activista dos direitos dos afro-americanos discursa longamente. Surge um travesti que faz rir a plateia que se encontra a vê-lo no estúdio televisivo. Um cantor da chanson francaise canta e dança à volta do microfone como se fosse um chulo a suplicar a uma mulher que o ame perdidamente. Allen Ginsberg. O toureiro foge de um touro numa praça de touros latina ao som de “The Bullfighter Dies” incluído no último Lp “World Peace Is None of Your Business” de Morrissey. Os marginais New York Dolls emitem um punk kitsch e perguntam: “Are you looking for a kiss?”. Uma actriz diz com uma convicção insegura: “I`m a star”. O pano é enrolado de baixo para cima e as colunas emitem uma ópera, surge Morrissey com os seus cinco rapazes que envergam t-shirts com a inscrição “Fuck Harvest”, formam um retângulo no centro do palco como que a comungar de uma espiritualidade zen, deslocam-se em direção aos respetivos lugares. Morrissey em discurso directo: “Good”. “In a World with unprecedented violence”. As luzes claras iluminam as calças e a sua camisa branca com uns botões abertos no peito de onde salpicam uns pêlos onde baloiça uma medalha de prata. As guitarras pronunciam-se distorcidamente sobre uma métrica Pop, que consignam a “Queen is Dead” uma negritude de chá dançante em redor de um velório. “I say Charles don't you ever crave”, a voz de Morrissey é delicada mas incisiva, “Dressed in your Mother's bridal veil?”; o público é um coro negro que lhe responde: “OOO”. Morrissey: “I don't bless them”. O público ecoa: “OOO”. A densidade das guitarras é constante, intercaladas pela pontuação sustenida da bateria. Morrissey e o público delicadamente reclamam: “OOOO”. Morrissey: “Palace”. O ritmo altera-se para um Rock and Roll incomplacente e Morrissey empunha a sua mão aos fãs da primeira fila e um conjunto de palmas de mãos convidam o cantor a serem acariciadas. A progressão que encetam exorciza uma pigmentação presumivelmente negra para abater um aborto que é potencialmente um hominívoro que enverga uma coroa. O recrudescer da distorção emana uma carga de antidepressivos que colocam o paciente num universo onde há um bem-estar artificial, “Life is very long, when you're lonely”. Morrissey agradece a ovação dos portugueses: “Gracias”. A métrica que domina “Speedway” é sincopada e visceral por comprometer e subtrair prazer da dor, entrecortada pelas guitarras eléctricas em constante alternância, pontuada por um solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias. A voz de Morrissey: “Keeping me grounded”, procura sobressair da massa suja e delinquente mas abandona essa pretensão e isola-se da dinâmica distorcida em que se inscrevem os Fuck Harvest: Jesse Tobias; Boz Boorer; Solomon Walker; Matt Walker; Gustavo Manzur. “Can you see it in your heart?”. Após a pausa “Speedway” ganha uma outra máscara em que a distorção é contaminada por uns arrufos quentes do teclado de Gustavo Manzur e Morrissey abandona o seu isolamento e transfere do seu peito para o microfone uma angústia recorrente: “Keeping me grounded”. Boz Boorer desloca-se para a frente do público e descarrega a distorção que o transforma num homem máquina. “They weren't lies”. A bateria de Matt Walker transforma a canção num somatório das outras duas partes e a violência é agressiva mas contida sobre a qual surge um canto de pássaro tolhido por um eterno desencanto: “I've always been true to you, in my own strange way, I've always been true to you, in my own sick way, I'll always stay true to you”. A terceira canção “Certain People I Know” é iniciada pela bateria, e a guitarra eléctrica de Jesse Tobias introduz um riff distorcido. Boz Boorer com a guitarra acústica insere os acordes que sustentam a voz de Morrissey que é incapaz de segui-lo e inevitavelmente falha o primeiro verso de “Certain People I Know”. O poeta toma a iniciativa de parar os Fuck Harvest com um directo: “Wait”, enquanto faz saltar sobre o palco o cabo do seu microfone como se fosse o chicote de um domador de leões. “Certain People I Know” é dominada por um riff distorcido de Jesse Tobias sobre uma trepidação Rock, Morrissey através de uma voz grave canta: “And when I swing it”. A métrica afasta-se gradualmente do Rock para se imiscuir na Pop temperada com uma negritude diáfana. Apesar do verso ser profundamente irónico: “I trust the views of, certain people I know”, Morrissey ignora essa figura de estilo e canta friamente sobre a densidade cromática emanada pelos Fuck Harvest. O solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias sobrepõe-se agressivamente à melodia que destila veneno, a pausa apaga as luzes e quando surgem as brancas, “I do believe it's terrible”. “OOOO”. “OOOO”. Finalmente a canção é alienada por uma convulsão imposta pelo riff distorcido da guitarra eléctrica de Jesse Tobias seguido pelo do baixo de Solomon Walker e da bateria de Matt Walker. Palmas. Morrissey educadamente agradece aos estrangeiros que viajaram para o ver em Lisboa: “Obrigado”. “The Bullfighter Dies” é iniciada pela trompete de Boz Boorer e o seu timbre aproxima-se do usado nas corridas de touros que corresponde à “voz” do Inteligente que determina o início e o fim da lide. O acordeão de Gustavo Manzur fornece-lhe uma perspectiva de ruralidade da Mancha onde os animais são alimentados em nome do capitalismo. Associado a estes está o tempo da bateria de Matt Walker que é profundamente Pop, quando desaparece o acordeão sobressai a guitarra acústica de Boz Boorer a explorar um flamenco apátrida por ser profundamente kitsch. Morrissey é um estranho militante anti-tourada pois canta alegremente: “Hooray, hooray, The bullfighter dies, Hooray, hooray, The bullfighter dies, And nobody cries”. A acrescentar a esta equação Pop associada à World Music surge o solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias a desferir uma cutilada que tem a pretensão máxima de incorporar na canção a imagem do toureiro a ser colhido pela besta que luta pela vida. “Kiss Me a Lot” tem como principio o riff incidental de Jesse Tobias, insurgem-se trompetas heroicas que assinalam o surgimento de um exército composto por soldados britânicos que marcham em direção às Maldivas, quando desparecem levam consigo o contingente militar. O ritmo é espaçado e sustenta a lírica romântica que Morrissey sublinha: “I just care that you're there, and you will”. O crescendo da batida Pop instala uma perturbante negritude e quando surge o refrão: “Kiss me a lot, kiss me all over the place” há uma variação na métrica que relegam a canção para uma exactidão Pop monástica. A doçura de um convite que não é destituído de uma infantilidade desarmante: “Your mammy's backyard”. Por instantes os Fuck Harvest segregam uma pigmentação inquestionavelmente kitsch, liderada pela guitarra de Boz Boorer a reintroduzir o flamenco no concerto de Morrissey em Lisboa. As súplicas de Morrissey são ordens: “Kiss me all over and then when you've kissed me”. A vertigem é instalada pela guitarra solo de Jesse Tobias devidamente apoiada num crescendo sub-repticiamente Rock e unidos aportam a um épico fim. “I`m Throwing My Arms Around Paris” é a canção de amor sobre Paris para onde vogam as sereias para pôr um cadeado à voragem do Sena. A melodia adocicada é dominada pelo teclado de Gustavo Manzur conjugada com a guitarra acústica de Boz Boorer, o ritmo é uma cadência espaçada que estabelece a ligação entre o baixo eléctrico de Solomon Walker e a guitarra eléctrica de Jesse Tobias. Sobre os quais a voz de Morrissey transcreve uma entoação quase infantil de tão inocente: “In the absence of your love, in the absence of human touch”, a solidão é um ilhéu perdido na imensidão de um mar desfeito numa tempestade. “I'm throwing my arms around, around Paris because only stone and steel accept my love”. A canção é tolhida pelo solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias que se imiscui com a precisão de um conto infantil que induz o sono às crianças. “I'm throwing my arms around Paris because nobody wants my love”, o clarinete de Boz Boorer responde à tragédia do orador com solenidade e os Fuck Harvest progridem em crescendo. “Nobody needs my love”, as palmas do público acompanham as do tímido Morrissey que parece sentir cada uma delas como beijos que o resgatam da eterna clausura. Enquanto os Fuck Harvest gradualmente a finalizam Morrissey declara-se aos presentes: “I love you”. Palmas. “Thank you” e desenha uma vénia. A “World Peace is none of your Business” tem uma programação rítmica que é manchada pelo ritmo marcial do bombo, o público acompanha-o com palmas festivas. Morrissey entoa o refrão: “World peace is none of your business”. O solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias e o sombreado negro do teclado de Gustavo Manzur impõem à melodia Pop uma progressão para um espaço negro na escuridão. Morrissey canta como uma criança que usa a ironia para fugir à ordem estabelecida: “Oh, you poor little fool, oh, you fool”. Posteriormente ao refrão desfere: “Each time you vote you support the process”, após a pausa os Fuck Harvest sustêm em crescendo a melodia negra rebarbarizada no solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias. Pausa. “OOO”. “So many people in pain”. O público responde com palmas que acompanham a dramaturgia Pop, Jesse Tobias desloca-se à boca de cena e sobre o crescendo rejeita um solo febril da sua guitarra eléctrica. “No more, you poor little fool” a gramática tétrica da bateria de Matt Walker introduz laivos fúnebres. Morrissey com pronúncia espanhola: “Paz mundial”, as palmas do público perseguem o ritmo das de Morrissey. A natureza de “Istanbul” está infectada pelo baixo eléctrico distorcido de Solomon Walker e nesta premissa enquadra-se a bateria de Matt Walker num expurgar de dor constante, parece que os outros três elementos dos Fuck Harvest são meros figurantes mas na verdade procuram emoldurar a sangria da secção rítmica sem a pretender ferir. “When he was born I was too young” o narrador conta a história de um “father searches for the son” em “Istanbul”. O determinismo do minimalismo Pop é evidenciado através da exorbitação de um negrume espesso. Quando as luzes se apagam, surgem focos vermelhos que prenunciam uma tragédia anunciada nos jornais como exploração sexual de menores para deleite de burgueses tarados. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias introduz um solo distorcido oferecendo a “Instanbul” uma volumetria punk com fronteiras de arame farpado que rasga a inteligência da razão. Palmas. “Thank you”. “Neal Cassady Drops Dead” é alicerçada num ritmo curto sincopado que serve preferencialmente para que Morrissey cante numa métrica beat generation: “Bill Cassidy drops dead” ; “and Allen Ginsberg” ; “down in a barn” ; “Everyone has babies, babies full of rabies, rabies full of scabies, Scarlet has a fever”. “Junior full of gangrene, mine is melanoma”. Quando a bateria de Matt Walker quebra o ritmo sincopado, o verso: “Get that thing away from me” é cantado espaçadamente e após o solo sustenido de Jesse Tobias, Morrissey questiona-se: “Get that thing away from me, victim, or life’s adventurer, which of the two are you?”, a guitarra eléctrica de Jesse Tobias responde-lhe através de notas agudas. Morrissey vira as costas ao público e Booz Boorer através da guitarra acústica introduz o exotismo do flamenco, a progressão que encetam os Fuck Harvest é a condensação de uma violência contida como a força do contra fogo. Morrissey oferece a sua mão esquerda aos esfomeados da primeira fila e canta: “Lálálálá”. Palmas. “Obrigado”. Durante a pausa para a próxima canção designada de “Earth is the Lonelist Palnet on Earth”, Morrissey desloca-se para a direita onde se encontra o pianista e questiona-o em castelhano: “Nombre? Nombre?” e a resposta é dada nervosamente: “Gustavo Manzur”. O universo espanhol é descriminado pela guitarra acústica de Boz Boorer e o ritmo Pop é devidamente exonerado pela bateria de Matt Walker e Morrissey canta para entes distantes: “Day after day you say ´one day, one day`” e não se descobre na sala dos espelhos: “and you've got the wrong face”, “and humans are not really very humane”. A inversão do ritmo Pop para um outro mais agressivo que com a inclusão da guitarra eléctrica de Jesse Tobias impõem a transgressão Rock. “Earth is the loneliest planet of all”. “Time after time you say ´next time, next time`”. O solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias aumenta a intencionalidade dos versos de Morrissey e a guitarra acústica embriagada de Boz Boorer surge como se fosse um bombardeiro a despejar bombas sobre “La Guernica” de Pablo Picasso. Palmas. Uma jovem grita da plateia: “Smiths!”. Morrissey responde-lhe através do microfone enquanto se afasta da boca de cena do palco: “Why do you come here?”. No piano Gustavo Manzur dedilha os acordes de “Trouble Loves Me”, inicialmente são delicados e a espaços forte, o ritmo da bateria de Matt Walker é subtil e Morrissey canta uma preze numa cela que o aprisiona à invulgaridade: “Trouble loves me, trouble needs me”. O baixo eléctrico de Solomon Walker não se insurge contra o slow, sobre o qual Morrissey se retrata: “So, console me, otherwise, hold me”. O bombo é um coração a pulsar como que tolhido por um súbito amor correspondido: “Trouble loves me”. A guitarra acústica de Boz Boorer revela um despertar de cores que impregnam a melodia dormente de uma sóbria festividade, “Otherwise, hold me”. Os Fuck Harvest reviram os olhos e instituem o Rock e consequentemente suprimem a balada melancólica e com a conivência de Morrissey que eleva a voz: “See the fool I'll be”, são cúmplices ao realçar um organismo que emerge como negras lavaredas. Reinstala-se o ritmo tépido com as harmonias delineadas pelo piano de Gustavo Manzur, o solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias é um uivo solitário. “The wrong arms”. Após a pausa os Fuck Harvest introduzem a melodia Pop e Morrissey encanta: “Trouble loves me”, a progressão que encetam é um contingente delicodoce, “Otherwise, kill me”, instala-se uma contínua sublimação de um tónico que ora é um veneno ora o seu antídoto. “Can't get you out of my head” e os Fuck Harvest emancipam uma ordem com origem no épico. "Kick The Bride Down The Aisle" é apresentada através de um piano à laia de um órgão instalado numa igreja gótica flamejante, os sons metálicos dos pratos circunscrevem-lhe uma luminosidade corroborada pela guitarra acústica de Boz Boorer e pela eléctrica de Jesse Tobias e por fim o baixo eléctrico de Solomon Walker remata-a com uma tensão divinamente Pop. “I know so much more than I'm willing to say”. As propriedades que emanam os Fuck Harvest é uma candura que não ferra a pele, antes transferem um registo em que a lentidão é circuncisada pela guitarra eléctrica de Jesse Tobias. A denúncia: “She just wants a slave”. Morrissey dança numa contorção do tronco e lança os braços para trás num esboço de ave do Michelangelo desorientada no céu. Fisicamente Morrissey é alto e robusto, mas a sua gestualidade e o seu canto ainda remetem para o poeta enquanto jovem bombista dos Smiths. A camisa branca que Morrissey enverga está suada algo que confere ao seu peito felpudo uma masculinidade sexy. “One of Our Own” tem um início dominado pela guitarra áspera de Jesse Tobias associada a um rítmo contido de Solomon Walker resultando num harmónico opaco, aligeirado pela delicadeza da guitarra acústica de Boz Boorer. Morrissey canta romanticamente: “He died saving my life”, a cadência da Pop ganha tonalidades garridas de tão escuras. “Give me the gun, I love you”. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias impregna “One of Our Own” de uma incompreensível violência e o crescendo não se sobrepõe à dor de Morrissey: “Now I don't want to know tomorrow”. A guitarra eléctrica é irrepreensível: “I love you”. O solo distorcido da guitarra de Jesse Tobias é abstracto: “OOO tomorrow”. Jesse Tobias destaca-se da melodia dark Pop como fissuras a crescerem pelas vísceras adentro: “NOOO”. Solo de Jesse Tobias: “NOOO”. Quando surge a guitarra acústica de Boz Boorer é para remeter a décima terceira canção para um digno fim. Palmas. “Gracias”. Enquando executam “I`m Not a Man” as luzes apagam-se e são emitidos sons fantasmagóricos, a percussão embala um anjo puti num chapéu de palha a arder, “Cold hand”, a guitarra eléctrica de Jesse Tobias remete para um universo tétrico, “Well if this is what it takes to describe”, através da negação de “I`m not a man” Morrissey assume-se um Homem. A melodia é uma substância carregada de um kitsch pandémico não há antidoto numa drug store nem tão pouco na companhia de caixões usados. “Casanova”. O bombo de Matt Walker insurge-se pontuando-a com um repente indolente e as palmas dos portugueses ecoam, “I`m not a man, I'm something much bigger and better than”, palmas, a guitarra eléctrica distorcida de Jesse Tobias impõe-se numa métrica incidental, “Workaholic”. Os Fuck Harvest emergem num crescendo Pop ferido de lampejos Rock, a violência é aparentemente uma encenação sórdida instituída pelo absurdo de Samuel Beckett. “You are the soldier”. “OOOO”. E antes do verso: “I`d never kill or eat an animal”, há uma pausa que suspende a melodia das trevas e surgem as palmas do público que ocupam o vazio. O solo distorcido da guitarra eléctrica de Jesse Tobias é contínuo e em crescendo e o saxofone de Boz Boorer sopra como um louco a fumar brisa inodora. A Pop que inscrevem os Fuck Harvest tem nas veias morcegos que induzem ao suicídio, a exortação da progressão relega-a para o grupo das canções épicas. “Hand in Glove” tem uma concisão rítmica da dupla Matt Walker e Solomon Walker e o dedilhar da guitarra acústica de Boz Boorer apresentam uma harmonia Pop detentora de uma luminosidade clássica de uma tarde de Verão em Manchester, “Hand in glove, the sun shines out of our behinds”. Morrissey coloca o microfone sobre a boca e contrai o tronco para à frente e ergue a perna direita e debela-se com o passado.“Hand in glove”. A melodia ganha síntese no refrão cantado por Morrissey de forma teatral: “And if the people stare then, the people stare, I really don't know and I really don't care”. Há um domínio crescente da guitarra eléctrica de Jesse Tobias que tonifica “hand in glove” de uma perspectiva, “the good people laugh”, que perpetua uma agressividade contida conspurcando-a com uma leve inceneração, “how near you stand to me”. Enquanto Morrissey canta as estrofes do refrão dá costas ao público e baloiça as suas ancas sexys, a progressão Pop imposta pelos Fuck Harvest resgatam a melodia da melancolia. Morrissey enfrenta o público e despede-se através do verso: “and I'll probably never see you again”. Palmas. Morrissey discursa: “I `d like to make a suggestion to you. To this beautiful city; but first of all go to an art shop, and by a white spray, and you walk to the sea and see all the ads of MacDonald’s: and SHIT! NO!”. Palmas. Em “Meat is Murder” o palco é pintado a vermelho sangue de uma placenta de um golfinho, o slow é vilipendiado pela guitarra eléctrica de Jesse Tobias, surge o uivo grotesco de um animal a ser desmembrado por Francis Bacon. Sobre esta tragédia Morrissey canta/declama: “Heifer whines could be human cries”, enquanto é iluminado por um vermelho escuro como se fosse o lusco-fusco a incendiar o dólmen do Capitão Gancho, a melodia negra arrasta-se e percorre um labirinto decomposto por veias dilaceradas em vão: “This beautiful creature must die?”. A guitarra de Jesse Tobias é uma serra eléctrica a trucidar a “Virgem Maria” de Bansky, “is murder”, a cadência é fúnebre, “do you know how animals die?”. O verso que coloca os humanos perante a sua predação: “It´s not me why should I care?”. Morrissey desloca-se para o interior do palco próximo da bateria, o ritmo decresce, encontra-se estático de costas para a plateia, o ritmo aumenta com o despertar dos pratos a marcar o tempo na Terra do Nunca. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias é o elemento que se emancipa da carnificina e simultaneamente perpetua-a. Morrissey tem os braços presos às costas como se estivesse a ser fustigado por um chicote romano por ser o único Santo vegetariano, ouve-se a guturalidade minimal de animais a gritarem enquanto são retalhados para vestirem as louras nos Óscares. Na décima sétima canção “One Day Goodbye Will Be Farewell” Solomon Walker desloca-se com o baixo eléctrico distorcido em direção da plateia e destaca-se da métrica Pop imposta por Matt Walker, agrupando-se perniciosamente à de Boz Boorer, por entre as quais ecoa a voz de Morrissey: “And you will never see the one you love again”. A relação entre a Pop e a distorção é continuamente ressalvada, uma bipolaridade que é somente apaziguada pela reflexão: “I have been thinking, what, with my final brain cell”. “OOO”. O inconformismo de um rebelde com uma causa: “And when I die, I want to go to hell”. “OOO”. O ritmo desacelera mas a melodia continua a reflectir uma negritude alarmante “OOOO”. No fim Morrissey declara-se pela segunda vez ao Coliseu dos Recreios: “I love you” e abandona o palco. Quando surge Morrissey e os Fuck Harvest para executarem o encore são ovacionados. “Asleep” é dominada pelo piano dedilhado por Gustavo Manzur que segrega uma melodia lullaby. Morrissey encontra-se estático no palco sinalizado por um foco azul que o cobre da cabeça aos pés com uma tristeza infantil. Surge um mar com ondas de pétalas de rosas com caules pontuados por espinhos, as ondas quando embatem na areia desenham corações a sangrar nas trevas. Morrissey canta numa entoação que invoca uma doçura angustiante como que a demandar pela voz de sua mãe que renegou para encarnar em Peter Pan: “Sing me to sleep, sing me to sleep” e o público solidariza-se com o seu apelo. Morrissey não resiste ao elixir do sonho: “I want to go to bed”. Os arrepios percorrem a coluna vertebral do Coliseu dos Recreios, tombada perante o testemunho de uma beleza hiperbolizada através da delicadeza do piano de Gustavo Manzur associada à voz de Peter Pan que responde convictamente à mãe: “Don't try to wake me in the morning, because I will be gone, don't feel bad for me”. O piano reintroduz os acordes agridoces do refrão: “Sing me to sleep, sing me to sleep, I don't want to wake up, on my own anymore”. As notas do piano transferem uma tonalidade esotérica e a sua melodia liberta Peter Pan que voa em direção da Terra do Nunca. Palmas. O torpor agressivo que domina “The First of the Gang to Die” é afectado pela contenção dos Fuck Harvest a imporem harmonias Pop, das quais sobressai a guitarra eléctrica de Jesse Tobias que tem o domínio da melodia. O público bate palmas, a guitarra eléctrica de Jesse Tobias insurge-se através de um solo, “never been in love”; as variáveis dinâmicas entre os Fuck Harvest são de uma tensão continua como se fosse uma bomba a entrar em processo de parto sem nunca rejeitar o feto. Morrissey oberva um motim incendiando montras: “The first of the gang to die”. “Oh! Such a silly boy!”. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias promove um solo continuo e suspenso revertendo a ultima canção de uma angústia dilacerante. A trompete de Boz Boorer derrama um desarmante solo que transforma filigrana em lágrimas de ouro, a partir do qual há uma progressão épica. “Hey, hey”. Caem pétalas da rosa mar sobre o palco e a maresia quente instiga Morrissey a despir a camisa castanha que havia vestido no intervalo que meneou o início do encore, atira-a para a plateia que se digladia por uma parte e ouve-se um grito em uníssono dos presentes. Morrissey compõe o seu tronco, do pescoço pende um fio de prata com uma medalha com o relevo do seu rosto magro e imberbe com óculos pretos e sobre a cabeça uma auréola Pop.


Morrissey, ““World Peace is None of Your Business”, 6 de Outubro, Coliseu dos Recreios @ Lisboa

Dedicado a Tracy Vandal, Samantha Hand e Rui Reininho.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Maus

As luzes vermelhas estáticas, instaladas no palco da discoteca States, que tem uma decoração entre o bordel e o templo Maçon, esperam pelos Jack Shits. Surgem, dois guitarristas e a famosa Jackie la Feline na bateria baptizada de “Canja Rave”. Os Jack Shits torturam os instrumentos selvaticamente, mas a progressão melódica crispada com inúmeras variações rítmicas, associadas a uma voz que berra, oferecem à primeira canção um carácter de urgência inalcançável. A segunda canção é iniciada pelo clássico: “1-2-3-4”; e a versatilidade das guitarras introduzem-na a uma chama garage, instigadas pela rapidez da métrica da Jackie la Feline; a sua franja é sustida por uma bandolete branca, e a melena negra de uma leoa exótica cobre-lhe os ombros. Tem atrás de si, um espelho que reflecte a violência com que fere as peles da “Canja Rave”. Jack the Ripper grita: “UUUU”: “UUU”. E por fim, despede-se falsamente do punhado de pessoas que o está a observar: “Obrigado. Até à próxima foi um prazer”. E à quarta canção os Jack Shits, assoberbam-se de uma métrica Rock and Roll, que é variável conforme o eclodir das guitarras que ora formam a Wall of Sound, ou, se digladiam compulsivamente; Jack the Ripper grita: “I don`t want to feel real”; “I love you!”, “AAAAAA”, e a profusão do mecanismo é significativamente violento. Jack the Ripper discursa dispersamente: “Olá. Parece que hoje há qualquer coisa”, pausa, “o que vocês precisam de saber…”, aplausos, “eu chamo-me Jack; ele chama-se Jack e ela chama-se Jackie”, pausa, “a segunda é que a Joana [Tê] faz anos”, aplausos; e a terceira informação, que é irrelevante: “Temos discos para vender, que custam cinco euros”. A sexta canção, é uma ligação directa a um corpo em constante convulsão, que se recusa a sucumbir às mãos do Capitão Gancho, Jack the Ripper tenta retirar-lhe a caveira: “never show your face”; e nas trevas da Terra do Nunca os Jack Shits instalam um venenoso e longo sofrimento às crianças que não acreditam em fadas. Antes da oitava canção, o público sugere à Jackie La Feline, que dispa a blusa negra de cetim, pois o Jack e o Jack há muito que exibem as peles brancas, esta ergue-se do banco da “Canja Rave” e acena com as mãos negativamente, desilude a multidão, desejosa por um striptease parcial. A pulsão da oitava canção, corresponde a um coração em que a taquicardia alimenta o cérebro através de feixes de luz, que transcrevem imagens do Jack a discorrer pela guitarra como se fosse uma alma em lista de espera numa maternidade portuguesa. A quarta informação de Jack the Ripper: “Seguimos sensivelmente a meio do nosso concerto”. A nona canção é uma revelação da anterior, mas cada nota é imposta por um bloco sónico, que assoberba uma maravilhosa alienação, ostensivamente rasgada pela guitarra de Jack. Jack de Ripper convida, através de um grito de uma Mãe Coragem torturada por Bertold Brecht, “let`s go”. “Let´s go! Go!”. Jack the Ripper desloca-se por entre o público, e pisa um padrão de azulejos brancos e pretos, e penetra o público. Pausa. Quando sobe ao palco, os espelhos reflectem o seu esqueleto em que sobressaem as costelas; e os Jack Shits reinscrevem a canção num fluxo de garage rock, que é repetidamente reinventado. Palmas. A quinta informação: “A Joana Tê faz anos”. Que tem um cabelo vermelho vivo, um vestido tigresa cobre-a até aos joelhos, e o calçado é punk; é convidada a assumir a guitarra de Jack the Ripper; a segunda, a surgir do público, é Masha à qual lhe é atribuída as maracas. A introdução dos acordes seminais de “Glória” cabe a Joana Tê, que joga melodicamente/ritmicamente com Jack, as maracas dão-lhe uma tonalidade profundamente kitsch e alicerçados na consistência rítmica de Jackie la Feline, emergem uma melodia festiva mas dark; Jack the Ripper sobe ao varandim, lateral ao palco, e o público acompanha-o na épica entoação: “Glória”. As variações rítmicas transformam-na numa canção em que impera uma improvisação delinquentemente assertiva. Jack the Ripper, apenas se permite executar as duas canções do encore, por ter sido endereçado o convite pela aniversariante Joana Tê. A última canção é apresentada por Jack the Ripper da seguinte forma: “Mais uma, porque faz anos a Joana Tê”. “É uma balada, agarrem-se!”. Evoca os anos cinquenta, quando os jovens californianos se deslocavam de carro com a namorada para drive-ins ver o “Glen or Glenda”. Palmas. “Obrigado! Parabéns Joana!”.

The Jack Shits, “Aniversário da Joana Tê”, 13 de Setembro, States @ Coimbra

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Man on the Moon

O espetáculo conceptual, do artista Victor Torpedo, “Karaoke”, tem como princípio a emissão de canções pré-gravadas, que estão em sintonia com um ecrã, onde surgem imagens com as letras das canções escritas pela estrela Pop conimbricense. Victor Torpedo veste calças pretas, o blazer esconde a camisa com a paisagem de uma floresta tropical, e enquanto canta para o microfone, a declaração de guerra, “so dead”, invade a cadeira vazia que se encontra numa mesa de um casal romântico. As luzes estáticas da Casa Havanesa ilumina os seus rostos, que encobrem um espanto difícil de digerir, desenham um sorriso tímido e ela mete a palhinha, mergulhada num bebida exótica, entre os lábios. No ecrã surgem homens a dançar ao ritmo de “So Dead”, que versa uma decadente “Madchester”, quando a água ganhou um companheiro chamado ácido. “Sick of myself”. A terceira canção, que evoca a alma indie de Manchester, dominada pela guitarra de Johnny Marr, dedica-a, “esta é para o Eurico”; Victor Torpedo rodopia como se tivesse uma multidão infinita à sua frente. Por vezes Victor Torpedo abocanha o microfone evocando um canibalismo Sci-fi, e no ecrã surgem senhoras de saia e casaco que bebem Coca-cola. Enquanto Victor Torpedo despe o casaco, a canção é de uma melodia fúnebre, sublinhado pelo pendor tétrico do baixo, “they are calling for us”. Victor Torpedo sobe para o cimo de uma cadeira, e como que por encantamento, vê uma multidão de fãs, que gritam: “Victor Torpedo! Victor Torpedo! Victor Torpedo!”. E responde-lhes: “Why people die?”. A quinta canção leva-o a roubar o copo exótico, à tímida e entediada jovem, o companheiro não reage. Posteriormente surge Eurico com dois copos de shot cheios de sangue, entrega o copo a Victor Torpedo, elevam-nos ao ar e emborcam-nos num folego. Victor Torpedo canta sobre uma tragédia diária: “no time for fun”. A sétima canção, é descrita por Victor Torpedo: “É ainda mais triste. Obrigado Figueira, vocês estão todos felizes”. O tema versa um universo electrónico com harmonias sugeridas pelos Electronic, mas exploradas numa perspectiva kitsch. Há ainda a destacar a hipnótica “Meet my tribe”, que é cantada como se Victor Torpedo fosse um robot sobrecarregado com sentimentos dos humanos. Na canção, em que surgem no ecrã pessoas a dançar ao ritmo do twist, Victor Torpedo empunha o microfone a um homem que tem um boné branco, que surgiu do chão através de um inexistente alçapão, este retira do bolso do casaco de basebol americano colheres reluzentes, transforma-as num objecto musical de precursão, irrompem cavalos a ser esporeados por cavalheiros à caça de peles vermelhas, e Elvis Presley canta através de Victor Torpedo. O músico que não foi convidado a aparecer autointitula-se: “Jimmy Spoon” e tem “71 years old”. E recebe uma misericordiosa salva de palmas por parte dos presentes e dos ausentes. Victor Torpedo declara que já só faltam, “três ou quatro canções”, para o fim da sua performance na antiga livraria Casa Havanesa, durante as quais, expurga um contínuo e sedento desejo de extroverter o conflito entre as inúmeras personagens que compulsivamente o dominam, relegando-o para uma inexpugnável elegia ao absurdo.

Victor Torpedo, “Karaoke”, 12 de Setembro, Casa Havanesa @ Figueira da Foz

domingo, 31 de agosto de 2014

Yin and Yang

O festival Gliding and Barnacles, convidou para cabeça de cartaz, da segunda noite de concertos na garagem Auto Peninsular, os Subway Riders que estão a tocar sobre um palco de madeira suspenso no ar, as paredes que os circundam são de cimento vivo. Os Subway Riders são uma máquina em que as frequências arrítmicas de Chau Subway, e a guitarra freak de Victor Subway, o teclado moog fantasmagórico de Augusto Subway, e o saxofone esquizofrénico de Calhau Subway (e a sua dança flamenca), e por fim a voz declamadora de Carlos Subway, resultam numa decomposição de diversos géneros musicais, apresentados com uma dose reforçada de nonsense kitsch. A sala tem um pé direito que é vítima de gigantismo, e os troncos salientes do tecto sustentam as telhas onde as gaivotas, durante o dia, esperam que os caixotes de lixo vomitem lixo. O som dos Subway Riders propaga-se aquém do esperado, o que revela que houve mão criminosa, e extirpou-os com uma faca do mato, dos instrumentos pinga o sangue venoso, e a frustração não tolhe os presentes que se alimentam do absurdo sónico do quinteto conimbricense.
A terceira e derradeira noite do Gliding Barnacles é encabeçada por três músicos, que se dividem por, voz e guitarra, guitarra, e bateria, baptizaram-se de D3O. “A próxima música chama-se ´Go`”, pejada com uma verve rock, as guitarras funcionam como catalisadoras da potência da bateria. O mestre-de-cerimónias deste trio, é o mítico Toni Fortuna, homem magro, veste camisa e calças negras, e fala para o microfone ironicamente: “É a loucura deste género”. As canções dos D3O versam uma métrica ostensivamente Rock and Roll, mas o que os torna imunes à mediocridade, são estes factores: a exactidão com que executam os diversos temas, e a intromissão de solos minimais os transformam em objectos artísticos, proporcionando uma rugosidade em que impera uma agressividade incontida. Às salvas de palmas Toni Fortuna declara: “Muito obrigado! São muito gentis! You are very kind”, “obrigado a todos os presentes por estarem presentes”. Na canção em que são acrescidos por um músico, “never being rehearse before” , e apresenta o tocador de harmónica como o “pé de tartaruga”; o ritmo blues é o de uma locomotiva a cortar o deserto com o expirar a gás da harmónica, motor que polui com esperma a paisagem. Toni Fortuna emprega as palavras como se encarna-se num demente que julga que é Elvis Presley e Martin Luther King, tem a intenção suprema de nos converter ao Rock and Roll. Algo que é patenteado pelo punhado de pessoas que dançam violentamente aos pés dos D3O, respondendo ao impulso conectado com o líbido. Palmas. “Thank you all for being here”. Quando sobe ao palco um homem de t-shirt vermelha, e que dança entre os dois guitarristas, este retira gradualmente a atenção à música dos D3O. E o que parecia ser um acto isolado, passa a ser alargado aos jovens bailarinos, o palco torna-se escasso para tanta gente, que atiram com um microfone para o chão, e ainda ocupam o microfone de Toni Fortuna, com uma tonta entoação. O caos é continuamente contido, e o que começou por ser uma mera presença do homem da t-shirt vermelha passa para o domínio da idiotice quando faz gala de um striptease parcial, revelando a gordura felpuda. Os D3O são reféns dos seus fãs, mas continuam a debitar o seu elegante e potente Rock and Roll, até ao fim do concerto, em que são aclamados apoteoticamente pelo público.

Subway Riders + D30 , 29 de Agosto. 30 de Agosto, Gliding and Barnacles, Garagem da Auto Peninsular @ Figueira da Foz

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Peter and the Wolf

Surge no palco da Expofacic, em Cantanhede, um pelotão de músicos da Guarda Nacional Republicana, sentam-se nas respectivas cadeiras, e afinam os instrumentos de cordas. Após este acto, a Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana, executa uma partitura, que evoca delicadamente um andamento allegro ma non troppo: as cordas alternadas, por entre os trombones versus as trombetas, impregnam-na com um leve imperialismo; mas o óboe oferece-lhe uma inesperada delicadeza e a ascendência dos sopros relegam-na para ser ouvida durante a leitura de um romance de cavalaria. Os membros da Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana levantam-se das cadeiras e batem palmas e o público acompanha-os, surge o Grupo Novo Rock: Tóli César Machado, Jorge Romão e Rui Reininho; acompanhados por Jorge Oliveira, Miguel Amorim e Andy Torrence. Quem dá início à segunda canção, “Popless”, são as cordas da Guarda Nacional Republicana, o fenómeno sonoro é progressivamente lento com aforismos de uma beleza irrecusável; os sopros irrompem apelativamente e despertam uma claridade que encandeia os ouvidos de tal forma são épicos. Jorge Romão, Rui Reininho-- que veste um blazer branco que o emoldura com a inscrição: “The Last of the Famous International Playboys”-- Tóli César Machado e Andy Torrence, estão estáticos, olham directamente a multidão, que bate palmas. Rui Reininho apresenta-se: “Bom dia”. A programação é uma referência rítmica contemporânea, que é acompanhada pelo baixo eléctrico de Jorge Romão, e por fim a bateria enquadra-se na sua reminisciência Pop; e os sopros da Guarda Nacional Republicana subliminarmente sublinham a doçura dos acordes de “Popless”. O Grupo Novo Rock dá continuidade à Pop ligada à eléctricidade, e a adopção da repetição dos acordes instituem uma potencial hipnose. A voz Rui Reininho refere: “Maldito espelho devolveu a imagem dela sem reflectir”. O narrador desconhece o verdadeiro rosto da Popless, mas paradoxalmente sente que ela “passou ao lado”; os sopros da Guarda Nacional Republicana respondem-lhe com uma acentuação trágica que sublinha a lírica: “deixa-la zarpar”. A Guarda Nacional Republicana através das cordas e dos sopros repetem os acordes circulares que simbolizam “Popless”, propagando-se como se fossem um loop; sobre o qual Rui Reininho canta: “lá vem ela sabendo que é linda”, induzida pelo encantamento imposto pelo cantor. A progressão dos acordes, por parte do Grupo Novo Rock e da Guarda Nacional Republicana, prescreve um minimalismo kitsch: círculos e semi-círculos em constante contra ciclo, “ficou à toa”, “sabendo que mexe”. Quando Rui Reininho canta “Popless” surge a exorbitação dos acordes; e as cordas da Guarda Nacional Republicana conferem-lhe um dramatismo de romance de cordel, por contraposição os sopros são laivos de masculinidade: “E ela paga o jantar”; estes aliam-se inconscientemente à psicadélica pop instituída pelo Grupo Novo Rock (GNR). “Linda”. “Boa”. “Daqui até Lisboa”. “Popless”, “Popless”. A Guarda Nacional Republicana adensa a narrativa, através dos sopros e das cordas, que impregnam “Popless” com uma tepidez inesperada, o solo da guitarra eléctrica de Andy Torrence é um sombreado malicioso. “Ai lá vem ela sabendo que mexe”. A progressão é conjunta, entre GNR + Guarda Nacional Republicana, vertendo uma massa melódica de contornos épicos, que encerra e liberta-nos da hipnose. Rui Reininho protocolarmente: “É um prazer e uma honra; é muito bom estar em Cantanhede”. A terceira canção, “+ Vale Nunca”, tem uma melodia infantil, promovida pelo teclado de Miguel Amorim, que corresponde a bolas de sabão a inundarem o ar; a métrica que os GNR impõe, é a da Pop impregnada com corantes e conversantes, de tal forma é viciante. Os sopros da Guarda Nacional Republicana, dão continuidade à infantilidade do teclado, e expurgam uma saudade ingrata para com a infância, mas que é impossível de ignorar. A alegria do primeiro estágio de desenvolvimento é resumida alegremente por Rui Reininho: “Há um bicho novo para limpar, logo, logo ao nascer um grito mudo que tentam calar”. O refrão resume a incapacidade do ser humano em resistir ao desenvolvimento do seu organismo: “Mais vale nunca mais crescer”; e o conjunto de sopros, da Guarda Nacional Republicana, sublinha a doçura da melodia. E surgem as dores naturais do crescimento: “cérebro em fuga”; e os GNR reescrevem a Pop perfeita, que impõe a adolescência como patamar último da existência. “Mais vale nunca mais perceber”. “Mais vale nada”. “Mais vale nunca mais crescer”. Entre, as cordas e os sopros, da Guarda Nacional Republicana, há um despique ganho por estes últimos que conferem à melodia um dramatismo kitch. Sobre o ritmo Pop, os músicos da Guarda Nacional Republicana, batem palmas alimentado-a com uma inesperada festividade. Sobre o compasso espaçado o baixo eléctrico de Jorge Romão sola, e desloca-se sobre o palco marcando fisicamente o ritmo. A partir deste ponto, os GNR reintroduzem a melodia Pop; e Rui Reininho canta: “E vais ouvir e ver”. A pontuação dos sopros e das cordas, da Guarda Nacional Republicana, estão omnipresente, como uma alma feliz por ter encontrado um humano para encarnar. “Nada apetecer”. “Mais vale nunca mais crescer”. O andamento imposto pela banda da Guarda Nacional Republicana, entra em constante progressão com a massa rítmica e melódica dos GNR. “Ficas à aprender”. Jorge Romão responde a Rui Reininho: “Mais vale nada”. O aumento da altura e do ritmo consigna a “+ Vale Nunca” um poder que é de tal forma violento quanto inquisitório da vulgarmente denominada razão, que não se encontra ao alcance da menoridade, obtendo como resultado um perpétuo desejo de confiscar à realidade a sua verdade. Palmas. “Obrigado Senhores e meninas. A minha farda não é sexy”. Rui Reininho aponta com o braço para a parte de trás do palco, onde se encontra sentado a Guarda Nacional Republicana, com o respectivo maestro, e conclui: “A destes senhores é que é, trocamos camisolas no fim”. A quarta canção, “Pronúncia do Norte”, tem como princípio os sopros e as cordas da Guarda Nacional Republicana, que introduzem uma delicadeza desarmante; e as cordas naturalmente deambulam pela paisagem nocturna, e proporcionam uma brisa ondulante que induz à concentração. Miguel Amorim dedilha o teclado do piano, e por cada nota sucumbe o Outono ao advento do Inverno. E a voz de Rui Reininho é uma encíclica que pretende converter os ouvintes à autodeterminação: “Há um prenúncio de morte, lá do fundo donde eu venho”. Miguel Amorim mantém o fraseado invernoso, e por fim, Rui Reininho declara guerra à aculturação: “É a pronúncia do Norte, os tontos chamam-lhe torpe”. Quase diafanamente: “E o dia não esteja triste”. O acordeão de Tóli César Machado, lança um arfar abstracto, que ilumina a melodia de “A Pronúncia do Norte”; a bateria eclode, e com a cumplicidade do baixo eléctrico de Jorge Romão, elevam-na à condição de objecto artístico, preponderantemente Pop. A voz de Rui Reininho abandona a súplica e transmuta-se num dignatário orador: “Corre o rio para o mar, e há um prenúncio de morte”. A Guarda Nacional Republicana, relega-se para um apontamento, através dos sopros e das cordas, que pretendem sublinhar a correnteza inevitável do tempo na narrativa cinematográfica. Rui Reininho ironicamente e directamente: “Obrigado aos Mouros”. E o acordeão de Tóli César Machado assume-se como um dramático interlocutor, e a banda da Guarda Nacional Republicana propõe um andamento balanceado, digno de uma barca do inferno a flutuar no purgatório repleta de banqueiros do povo. Rui Reininho discursa: “Aparentemente, oficialmente já não somos lixo. Nunca lá estivemos, muito menos, os GNR”. A quinta canção, “Efectivamente”, tem como ponto de partida o piano de Miguel Amorim, as notas são dedilhadas saltitantemente, a bateria através da tarola impregna-a de um ritmo radioso, e o baixo de Jorge Romão reconfigura-a para uma métrica Pop, que as guitarras polvilham-na com polén, e o resultado é uma melodia que vicia porque jamais teve uma idade pré-definida. O narrador observa distanciadamente a realidade que o circunda, e que adora: “O riso das crianças dos outros, cágados de pernas para o ar”. Surgem poeticamente os sopros, da Guarda Nacional Republicana, mas são as cordas, através de um andamento inicialmente triste, que instauram progressivamente uma textura festiva, mimetizando os acordes do teclado de Miguel Amorim, transportam-na para uma aria em que o soprano é Rui Reininho: “Adoro esses ratos do esgoto, que disfarçam ao dealar, como se fossem mafiosos convictos, habituados a controlar”. Jorge Romão e Tóli César Machado: “Lálálá”. Rui Reininho: “Aparentemente”. Jorge Oliveira altera a frequência rítmica, alicerçada no bombo, para o predomínio dos pratos. “Efectivamente sem moralizar”. Rui Reininho bate palmas, e desperta a vegetação que o circunda, diluída numa composição naturalista do Banksy. Da conjugação, da Guarda Nacional Republicana e do Grupo Novo Rock, surge uma progressão hipnótica, um alçapão que seduz a consciência, e a sua voz canta alegremente: “Efectivamente sem moralizar”. Rui Reininho agradece, à Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana, “muito obrigado”. Rui Reininho sussurra o nome da sexta canção: “Bellevue”. Os sopros, da Guarda Nacional Republicana, derivam de uma alma penada; e as cordas adensam a melodia de “Bellevue”, e por fim, os trombones carregam-na com um festivo funeral. A valsa é imposta pelo compasso da bateria de Jorge Oliveira; e os GNR comungam em redor de uma melodia negra. Rui Reininho canta: “Leve, levemente como quem chama por mim”. Sob a negritude, a Guarda Nacional Republicana, sublinha a melodia, com uma presumível fatalidade. O Rui Reininho descreve: “Uma ideia brilhante cintila no escuro”. O narrador, é simultaneamente a personagem principal da narrativa, que descobre uma sinalética que o alerta: “cuidado com o cão”. A melancolia da valsa negra, encontra na voz de Rui Reininho, um timbre carregado de uma inebriante densidade dramática, como se não estivesse presente, apenas o seu espírito, feixe de luz, personagem que ninguém quer ouvir. A alma de Rui Reininho contínua o seu percurso num labirinto: “onde ponho o pé e subo a mão”. “Bellevue”, ganha uma consentânea tristeza, mas com tonalidades infantis, que fariam dançar um boneco de corda suicida, que a impregnam de uma beleza horribilis: “Sabem que me escondo na Bellevue”; “Ninguém aparece ao meu rendez-vous”. O local, onde se encontra a alma de Rui Reininho, é adensado pelos sopros versus as cordas-- da Guarda Nacional Republicana-- e esta conjugação infecta, “Bellevue”, com a presença da Morte, “sorriso cruel”. “Salto para a cama e experimento o colchão”. A relação, entre a banda da Guarda Nacional Republicana e o Grupo Novo Rock, é tétrica e progressiva, resulta na ondulação dos primeiros, que é ressalvada por uma contínua exorbitação, por parte dos últimos. A alma canta: “Sabem que me escondo na Bellevue”. “As minhas amiguinhas no fundo do jardim”. Os sopros, da Guarda Nacional Republicana, insurgem-se através de um ondular saltitante, como uma tempestade num corpo de água azul; e as cordas repercutem o dramatismo da melodia a sangrar, e erigem uma profundidade épica. Noutro tempo, “Bellevue”, seria a marcha fúnebre de D. Quixote, e a segui-lo, estaria a cabisbaixa e chorosa, mas magnânima Dulcineia del Toboso. A alma marca as vogais, e transmite uma dor que é uma hipnótica oração, clama para se ausentar da sua prisão: “Sabem que me escondo na Bellevue”. “Ninguém aparece ao meu rendez-vous”. O crescendo melódico entre as duas texturas, a acústica e a eléctrica, interage numa concertação que invoca a hipnose, que possui em simultâneo a consciência e a inconsciência, e renega o vazio, mesmo quando os sonhos estão crivados de pesadelos. “Os meus amigos, no fundo do jardim, agora mais ninguém confia em mim”. “Mais ninguém confia em mim”. A progressão, entre as duas entidades, é transcrita através de um crescendo épico, e a valsa cobre-se com um manto misterioso de tão tenebroso, um encantamento proporcionado pela leitura do D. Quixote de la Mancha. “Era só para brincar ao cinema negro”. “Os corpos no lago eram de gente no desemprego”. Palmas. Rui Reininho discursa para o seu reino: “Ao jazz, à música ligeira, e a traficar robalos”. Agradece ao vulgo: “ Muito obrigado, Cantanhede e arredores. Muito obrigado, por estes trinta e três anos da nossa vida”. A sétima canção, “Tirana”, é a primeira que é executada exclusivamente pelo Grupo Novo Rock. A frequência rítmica é espaçada, a partir deste ponto sobressai o baixo eléctrico de Jorge Romão, e as harmonias das guitarras progridem lentamente provocando uma serenidade ondulantemente Pop. “Tirana é um lugar quem sabe difícil de encontrar”. A progressão é dominada pelas guitarras de Tóli César Machado e de Andy Torrence que impregnam, “Tirana”, com uma cor de um topázio onírico. “Avançar e tirar…”; o Hammond de Miguel Amorim institui uma profunda e inebriante tristeza, “foi muito sedutora”. A delicadeza do canto de Rui Reininho é de uma sedução ultrajante, “atirar à sorte sem o intuito de acertar”. A bateria de Jorge Oliveira acelera pontualmente o ritmo; e quando “Tirana” aporta no refrão há uma alegria contida: “3-2-1 é só subtrair para poder reinar”. A flutuação onírica é contínua, o narrador é um eterno sedutor que descreve o objecto dos seus desejos através de um paradoxo: “foi ferida e unguento”. O seu auto-retrato: “Tirana é sincera mas só por um momento”; a beleza do canto de Rui Reininho é mais fundo, “se ela ainda te enganar”. Sobre a Pop ondulante, que expira uma toxicidade recreativa, a voz assume-se como um falsete de serpente hipnotizante: “Multiplicar somar espírito investir”. A aprendizagem de uma teoria composta por um desmando irracional: “Aprender a dividir para poder reinar”. Os GNR renegam parcialmente a correnteza Pop para se aproximarem de um blues discreto, sem abandonarem o crescendo hipnótico, quem se liberta deste jugo é o solo de Andy Torrence e o Hammond de Miguel Amorim. “É só subtrair para poder reinar”. “Carne para canhão”. Andy Torrence através de um solo magistral, percorre por dentro e por fora a melodia de “Tirana”. A bateria assinala o encurtar do ritmo: “3-2-1”. “3-2-6 para poder reinar”. “3-2-6 para poder ganhar”. E a hipnose é matéria que se dilui transcendentemente. Palmas. Rui Reininho apresenta o canadiano: “Andy Torrence on lead guitar”. “Odeio que digam teclas… Miguel Amorim”. Na bateria: “Jorge Oliveira”. A oitava canção, “Cais”, é a segunda que é executada exclusivamente pelo Grupo Novo Rock. Sonicamente está fundeada num ritmo adocicado, que é sublinhado pelo teclado de Miguel Amorim, mas quem lidera é Jorge Romão. Rui Reininho descreve uma embarcação inexistente: “Quando um barco tem pés para andar”. A Pop é congeminada através de uma leveza rítmica, mas a conjugação da guitarra eléctrica com a semi-acústica, impregnam, “Cais”, com rasgos de luz. O discurso poético é o de um oráculo preso num aquário: “só veem chatear”; “Quando a maré chegar”; “crude limpar”. A progressão instigada pelas guitarras que contaminam a consciência, na qual surgem como que por encantamento, ondas que espumam esperma: “sereias sensuais”; que se prostituem: “vendes o Cais”. A bateria e o baixo alteram a métrica e inscrevem uma chama agridoce, este facto reflecte-se na narrativa: “Se ainda se ama o mar salgado”. O convite é irrecusável: “Então é ver no cinema se ainda ´Há Lodo no Cais`”. Por entre o derramar de feixes de luzes em chamas, destaca-se a guitarra de Tóli César Machado oferecendo-lhe uma delicadeza desarmante. “Sereias sensuais vendes o Cais”. A intencionalidade da bateria de Jorge Oliveira é mais firme e consequentemente agressiva, a partir da qual os GNR reiteram uma intensidade sustenida que ilustram os acordes tórridos de “Cais”. A questão: “Se ainda se ama o mar salgado?”. A voz de Rui Reininho é um fluxo que apela para a proximidade de uma tragédia, um castigo inultrapassável: “Muito cuidado atina voltas ao Cais”. A guitarra de Andy Torrence rejeita uns acordes minimais- trémulos, nervosos e penetrantes. “Lá do fundo do mar imundo sais”. E irrompe deste universo intrauterino: “Sereias sensuais”. A melodia instituída pelos GNR é o chamamento por um astro marginal. “Se o pecado mora ao lado”. “Então é ver no cinema se ´Há Lodo no Cais`”. Com a frequência rítmica a decair lentamente, Rui Reininho declara: “Standard& Poor`s; aguenta voltas ao Cais”. Palmas. Rui Reininho não precisa de um miradouro para ver a multidão, que o observa no palco da Expofacic, e não lamenta: “Ai! Já fumega!”; “cheira bem, cheira a churrasco”. O interlúdio da nona canção, “Asas”, é praticado pela banda da Guarda Nacional Republicana, que deve ser adjectivado de delicado. A partir deste fluxo o Grupo Novo Rock introduz a sua electrizante Pop mas sonhadora melodia, “sonhar”, “mil casas no ar”. Rui Reininho é um narrador omnisciente: “as asas são para proteger”. A banda da Guarda Nacional Republicana repercute-se através de um adensar da secção das cordas, que sub-repticiamente se introduz no inconsciente. “No alto do ar”. Os sopros da Guarda Nacional Republicana respondem ostensivamente ao canto de Rui Reininho. A lenta profusão das harmonias impedem o público de acordar do sono denominado de R.E.M. “É um amor que vês nascer”. Quando sobressaem os sopros e as cordas em parelha e intercaladamente, mimetizam o som da intromissão da alma no corpo. “Asas” é agredida pelo solo Andy Torrence, que se intromete entre a Guarda Nacional Republicana e o Grupo Novo Rock. A voz é frágil: “mas só quando quiseres pousar”. Por entre a Pop, transparente de tão dedicada, há um brilhar de diamante lapidado com os rostos de Jorge Romão, Tóli César Machado e Sua Alteza Rei, Rui, declara: “Já não há leis para te prender, aconteça o que acontecer”. Rematada com um crescendo épico das cordas e sopros da Guarda Nacional Republicana. Rui Reininho não desabotoa o botão do blazer branco e afirma: “Não somos como aqueles que nos casamentos desabotoam o botão. Somos GNR”. A décima canção,“ Sexta-feira (um seu criado) ”, é introduzida pela banda da Guarda Nacional Republicana que desenha a melodia alegremente. Este rasto é amplificado pelos GNR que instauram uma concisão entre a Pop e o Rock. Rui Reininho decreta: “É Sexta-feira em Albufeira o Mundo esteve para acabar”. A progressão Pop sobrepõe-se ao acompanhamento da banda da Guarda Nacional Republicana. “Falta a tua confissão”. “Só sou eu no beija-mão?”. A Guarda Nacional Republicana emerge consentaneamente através de um timbre agudo, que sublinha a narrativa de Rui Reininho: “Já chegamos à Madeira”. “Ninguém vai levar a mal”. O pulsar da bateria é mais assertivo e coloca “Sexta-feira (um seu criado) ”, numa constante aproximação ao Rock, acrescido dos acordes épicos da banda da Guarda Nacional Republicana dos quais irrompe a Torre de Babel. Rui Reininho ataca o povo: “Falta a minha confissão e vocês no beija-mão”. “Já não dou nem para o Dj”. Os solos épicos-minimais de Andy Torrence, sobre a violência da métrica da bateria, intercalam com a crescente imposição da banda da Guarda Nacional Republicana. A voz continua a ditar as regras que ainda estão por cumprir: “Falta a tua confissão, faltei eu ao beija-mão”. O resultado final corresponde a um crescendo entre os GNR e a GNR que conjugam uma simbiose épica. Na décima primeira canção, “Sangue Oculto”, predomina o solo sustenido de Andy Torrence que é vilipendiado pela detonação da bateria de Jorge Oliveira, este encontra em Jorge Romão o operacional que acende o rastilho, que se encaminha para o barril de pólvora. A banda da Guarda Nacional Republicana replica em surdina os acordes do refrão: “Ao fugir de uma fronteira é como saltar uma fogueira”. A confissão de D. Sebastião: “Sangue latino que temos para dar”. As luzes do palco derramam um vermelho cor de sangue venenoso, que tolda o entendimento entre o bem e o mal. Quando o piano surge no firmamento é para sublinhar a decadência de um universo onde reina a lascívia luxuriante. A intromissão de Andy Torrence incapacita-a de negar a sua origem Rock and Roll, a banda da Guarda Nacional Republicana reflecte essa origem, e o condensado entre ambos é um fantástico aditivo denominado de épico. Palmas. Rui Reininho relembra aos espectadores que se encontram em Cantanhede: “Isto é melhor que Las Vegas”. A décima segunda canção, “Vídeo Maria”, é iniciada por sopros flutuantes que se entrelaçam com as cordas insistentemente delicadas da banda da Guarda Nacional Republicana, sob estes, o pendor rítmico, mas espaçado, da bateria de Jorge Oliveira. O baixo eléctrico de Jorge Romão imiscui-se nesta relação através de uma preponderância dançante, e os acordes do sintetizador dão-lhe uma volumetria kitsch. As cordas da Guarda Nacional Republicana iluminam uma entidade que é identificada pelo observador: “Como um círio cintilante”. Esta encontra-se num espaço sagrado, “em frente ao altar”. A melodia que transmitem é uma alegoria profusamente Pop, que transmite a imagem de uma mulher que tem suspensa na cabeça uma auréola de santidade. “A esfinge de um anjo fumegante”. Os sopros e as cordas da Guarda Nacional Republicana replicam os acordes do sintetizador de Miguel Amorim, aprofundando a perspectiva kitsch. A voz de Rui Reininho imiscui-se como se fosse o canto de um predador virgem: “Sinto um profano desejo a crescer”. O sacrifício que decorre de uma tragédia: “Sinto a língua morta, o latim vai mudar”. A união do Grupo Novo Rock com a Guarda Nacional Republicana incorre num encantamento delirante. “O que ela faz aqui sozinha? Estará a meditar?”. O narrador não controla os seus impulsos: “AIUi” (eco). A melodia de “Vídeo Maria” sublinha a percussão da alternidade entre a realidade e a ficção proficuamente Pop. Rui Reininho outorga-lhe uma urgência ilimitada: “Atirem-me água benta”. O seu demando continua: “Atirem-me água fria”. Quando o Rei baptiza a sua filha de “Maria”, evoca a virgem Maria, mãe de Jesus. Um punhado de membros da Guarda Nacional Republicana bate palmas ao ritmo da bateria de Jorge Oliveira e dão um encanto festivo a “Vídeo Maria”; mas os sopros e as cordas adensam esta beleza. A métrica encurta-se e a melodia Pop ganha uma intensidade que promove uma constante progressão, em que há um domínio óbvio por parte do Grupo Novo Rock. “Depende da nossa fantasia”. Rui Reininho dá os parabéns à Expofacic: “Transformaram uma feira industrial num maravilhoso festival”. A décima terceira canção, “Morte ao sol”, é apresentada pelos acordes do piano de Miguel Amorim. O orador ora pelo dia em que se verá inundado por um manto negro: “Felizmente a noite sai”; os sopros da Guarda Nacional Republicana expelem brumas que toldam a memória e a deixam refém do orador. O solo da guitarra eléctrica de Andy Torrence inscreve-se no limiar de lampejos de uma lua cheia inquietada por nuvens noctívagas. O orador solenemente declara: “Ainda bem que há nevoeiro por aí”; e compromete Cantanhede: “neste lugar”. E “se o amanhã perdido for?”. A bateria de Jorge Oliveira retira “Morte ao Sol” da sua candura testamentária para lhe incutir um ritmo allegro ma non tropo. Mas as cores que repelem os GNR versus a GNR corresponde a um minimalismo/barroco slow Pop. E as trevas “vão demorar?”, o orador reclama para sí o poder de subtrair ao tempo a sua lógica cronológica e como tal é um terrorista. O orador reza: “Estou contente se a luz se esvaí”. As cordas da Guarda Nacional Republicana replicam o respirar de um corpo em vias de estrebuchar, “rouca voz”, e os sopros expiram angustiadamente, “overdoses de pavor”. O Grupo Novo Rock e a banda da Guarda Nacional Republicana reafirmam o seu carácter litúrgico, e o orador decreta: “Eu declaro morte ao sol”; “Eu declaro morte ao sol”. A questão terrífica que anula a realidade: “onde vai a luz?”. Sobre o recrudescer dos sopros e das cordas da banda da Guarda Nacional Republicana, surge o solo épico de Andy Torrence. “Já sobre nós revela certa imagem atroz”. A proximidade da morte é prenunciada pelo esoterismo dos sopros da banda da Guarda Nacional Republicana pejando-a com um mandamento fúnebre: “Directa sim, eu declaro morte ao sol, e a quem o apoiar”. Rui Reininho abandona o palco da Expofacic; o ritmo de “Morte ao Sol” é substancialmente acelerado e as almas despertam do transe imposto pela vida. Rui Reininho regressa ao palco e agradece: “Muito obrigado ao maestro Afonso” e o batalhão da Guarda Nacional Republicana ergue-se das suas cadeiras e sujeita-se às palmas por parte do público. A décima quarta canção, “Sete Naves”, é a quarta executada exclusivamente pelo Grupo Novo Rock. A programação é o ponto de partida, para que gradualmente se introduza o baixo distorcido de Jorge Romão, que conspurca a canção com uma sujidade tétrica, que sub-repticiamente induz a hipnose, e a bateria maximiza a programação e consequentemente instalam um mecanismo de constante disruptiva sonora; o coração de “Sete Naves” está repleto de rodas dentadas impostas pela revolução industrial. Rui Reininho personifica o Cavaleiro da Lua Branca: “sinos, sinetas ao acordar”. E o teclado oferece-lhe uma profundidade emancipadora, através de laivos que mergulham no lado oculto da lua. O Cavaleiro da Lua Branca é constituído por uma substância perecível: “metálicos frios, vontade de enferrujar”. A melodia negra é tolhida pela constante progressão rítmica/arrítmica, que polariza o instalar da hipnose única fonte para a abstração. O Cavaleiro da Lua Branca canta: “Sinto estas veias estalando, artérias por soldar”. As luzes brancas acendem-se e apagam-se e revelam uma paisagem que perturba os sentidos, confiscando-lhe o poder de incutir sensações no consciente. “Diáfanos de envenenar”. A métrica progressiva é de uma máquina alicerçada num groove oleado com ácidos, que impede o consciente de ser dominante sobre o inconsciente. “Para de martelar”. Os GNR incorrem numa progressão que acentua a hipnose tétrica, e o Cavaleiro da Lua Branca, em vez de ser o libertador das consciências, institui uma lei ainda por ser cumprida: “As naves que eu construo não são feitas para navegar, aguentam a violência de um beijo, mas nunca a do mar”. “AAA”, o solo medonho de Miguel Amorim responde à demência do Cavaleiro da Lua Branca que dança enquanto recrudesce o ritmo da canção. E por segundos há um estilhaçar da hipnose, nomeadamente quando surge o solo de Andy Torrence uma granada a deflagrar com um temporizador sustenido. O Cavaleiro da Lua Branca, com o seu blazer branco a delinear-lhe a silhueta estreita, usa o microfone como se fosse a sua lança, e encanta: “voltam-se devagar”. A cadência que resulta da progressão groove/Pop é de estreita relação com a instituição de uma violência que nos mergulha numa maré de cornucópias. O Cavaleiro da Lua Branca canta: “LáLáBomBom”. O seu escudeiro, Romão, responde-lhe: “LáLáBomBom”. “LáLáBomBom”. “LáLáBomBom”. O Cavaleiro da Lua Branca: “nunca a do mar”. As naves que o Cavaleiro da Lua Branca constrói “fundem-se com o ar”. O Cavaleiro da Lua Branca marcha por entre os destroços que impôs à imaginação. Antes de “Ana Lee” a décima quinta canção, a quinta executada em exclusivo pela banda do norte. Rui Reininho declara: “Eu já tenho confiança suficiente… para fazer isto: Queria dedicar esta canção ao meu amigo Francisco Campos. Que adorava esta música”. Soa a guitarra de Andy Torrence a introduzir os acordes exóticos de “Ana Lee”. Rui Reininho desloca-se sobre o palco com o microfone entre as mãos e ganha força para agarrar o ritmo imposto por Andy, e declara: “E dizias”, e neste instante Rui Reininho encarna em Francisco Campos: “E bebi como uma pedra que mata”; “senti as nossas vidas separadas”. A guitarra de Andy Torrence tem predomínio na narrativa sonora, e Francisco Campos canta através de Rui Reininho: “Jaguar perfumado, tigre de papel”. Os acordes são de um profundo e libertador exorcismo imposto pela estéctica kitsch; Francisco Campos reza: “Ana Lee, Ana Lee, Lotus azul nada de novo?”. Francisco Campos introduz-se num “triângulo dourado” e acede ao céu, a partir do ribombar da bateria de Jorge Oliveira é acompanhamento pelos GNR cúmplices na exortação de cores rubras mas tépidas.“E ao vir-me, enfim, em verde tónico, no país onde fumam as cigarras”; “deixei-a a pensar em mim”. As tonalidades que emanam do palco pertencem a uma floresta onde pastam virgens desejosas por Francisco Campos, que se deleita a vê-las a bebericar numa fonte que saliva esperma, ele erige a sua bandeira que é um “tigre de papel” e olha para o céu onde não há “nada de novo”. Pausa. As virgens despem os vestidos diáfanos e revelam a nudez, é a primeira vez que estão a ser observadas por um homem, curiosamente correspondem à sua natureza e cobrem Francisco Campos enquanto Andy Torrence impõe um solo ié ié, algo que impregna “Ana Lee” com uma chama sónica poderosa. “Ana Lee, meu Lotus azul ópio do povo, tigre de papel”. O teclado impõe-se no colectivo, como se fosse uma deliberação festiva mas simultaneamente fúnebre, que emoldura um “poente queimado”. “São unhas que cravam na pele, em mim”. Palmas. Jorge Romão toma a iniciativa de perguntar à multidão que se encontra na Expofacic: “Não há palmas para o maestro?”, o público responde afirmativamente à determinação. A décima sexta canção, “Inferno”, original de Roberto Carlos, editada na década de sessenta do século XX, é acometida por uma violência rok and roleira doseada com um tropicalismo urbano, a banda da Guarda Nacional Republicana tonifica-a com um ar condicionado tórrido. Rui Reininho enfatiza teatralmente: “Só tenho você no meu pensamento”. A melodia é intensamente festiva, protótipo neo- kitsch, que emancipa adolescentes perante as obrigações do amor. “Eu quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo o mais vá prá o inferno”. O público réplica: “Prá o inferno”. Rui Reininho: “E a solidão me dói”. Há uma progressão que instala uma hipnose, provocada pela sublimação dos acordes do Grupo Novo Rock e da Guarda Nacional Republicana. Rui Reininho dança e canta displicentemente a falsidade de um verdadeiro fingidor, que é vítima da sua própria beleza: “Não interessa o que tudo mais existe”. O canto teatral: “Não aguento mais você longe de mim”. “Quero que você me aqueça neste inverno, e que tudo mais vá pro inferno”. “OOOO”. Ovação. Rui Reininho sublinha: “Hipnótico… Mas vai correr tudo bem! Obrigado Cantanhede e arredores!”. A décima sétima canção, “Sub 16”, tem uma métrica dominada pela potência rítmica dos GNR, que delineiam uma melodia Pop inevitavelmente cativante; as cordas da Guarda Nacional Republicana contagiam-na com um reverberar agudíssimo. A voz sublinha: “e sai e puxa”, o aumento da altura e da escala espelham a liberdade ansiada por parte dos adolescentes em relação ao jugo paternal, “até ao sol”. “E com os Djs já falta pouco para fazer 96”. As guitarras introduzem uma raiva contida, sobrepondo-se à turbulência Pop impondo um apontamento Rock. “Nuvem de cabelo em pó”. “E o rádio berra”, a banda Guarda Nacional Republicana réplica através de uma massa em que predominam os gritos de um adolescente a mudar a voz. “´Estou farto e farto de estar só”. A eloquência da Pop ganha contornos épicos, “e aos dezasseis só de uma vez vestes como os Djs”; a guitarra de Tóli César Machado e Andy Torrence elevam-na à condição incontornável de hino com uma bandeira repleta de acne. Jorge Romão e Tóli César Machado: “Papapapapa”. Pausa. A partir da qual, reviram “Sub 16” e a consubstanciam em pólvora molhada mas que queima a pele, “com dezasseis não se tem tempo para ler ´O Senhor dos Anéis`”. A banda da Guarda Nacional Republicana vem ao de cima ampliando uma dor oculta mas perseverante, incapaz de fazer parar a racionalidade do tempo, e sobre a métrica rock and pop, Andy Torrence desfere um solo agudo minimal. A décima oitava canção, “Dunas”, é inicialmente pejada por um andamento marcial imposto pela Guarda Nacional Republicana; a cadência da bateria de Jorge Oliveira e o baixo de Jorge Romão introduzem uma vertente Pop. As cordas da Guarda Nacional Republicana ondulam impondo uma temperatura quente e a voz de Rui Reininho descreve: “As dunas são como divãs, biombos indiscretos de alcatrão sujo”. A melodia está carregada de uma memória que em tempos foi vivenciada e consequente passa para o domínio da realidade: “pensamentos lavados”; “bebemos dos lábios refrescos gelados”. “Nas dunas”. O acordeão de Tóli César Machado retempera-a com uma dose de fulgor tórrido e a realidade ganha profundida de ficção: “Em câmara lenta como na TV”. A canção encontra no acordeão de Tóli César Machado a máquina que rasga o céu com feixes de luz. Rui Reininho: “Patichiwarrioooo”. “Patichiwarrioooo”. “Patichiwarrioooo”. A banda da Guarda Nacional Republicana ressurge e tenta equiparar-se ao fulgor de Tóli César Machado, o público responde a Rui Reininho: “Patichiwarrioooo”. Rui Reininho esclarece-os: “Em nome dos cento e vinte e tal membros da banda da GNR, força!”. Público: “Patichiwarrioooo”. A décima nona canção e a única do encore,“+ Vale Nunca”, tem um andamento allegro, polvilhado pelo teclado infantil de Miguel Amorim e sublinhado pela banda da Guarda Nacional Republicana. Rui Reininho olha para o berço da humanidade: “Há um bicho novo prá limpar, logo, logo ao nascer um grito mudo que tentam calar”. As orquestrações da Guarda Nacional Republicana com o reforço Pop do Grupo Novo Rock, reforçam a clarividência do refrão: “Mais vale nunca depender”. “Mais vale nunca mais crescer”. Há uma sobreposição por parte da Guarda Nacional Republicana, inculcando-a com um crescendo com uma ordem suprema: “Mais vale nada”. Sobre o qual a guitarra de Andy Torrence se ensimesma, a bateria de Jorge Oliveira ganha protagonismo e a partir da qual o baixo de Jorge Romão sola superiormente. Pausa. “Vais ouvir e ver, mais vale nunca, nunca mais crescer”. “Ficas a aprender”. “Mais vale nada, mais vale nunca mais crescer”. O fim é composto por uma união em que a massa é composta por uma textura aguda, que consentaneamente se aproxima de uma inalcançável presença do ser. “Agora é a doer”. Ovação. O Grupo Novo Rock aplaude a Guarda Nacional Republicana, e por fim Jorge Romão, Tóli César Machado, Rui Reininho e seus pares abraçam alegremente o maestro da Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana. Ovação.

GNR+ GNR, 29 de Julho, Expofacic @ Cantanhede

Em memoria de Francisco Campos.