segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

La Famille des Saltimbanques (Les Bateleurs)

O Salão Brazil na baixa de Coimbra está lotado para celebrar a vida e a obra de Victor Torpedo que no fim da década de oitenta se emancipou como músico, um dos poucos guitarristas portugueses senão o único, que usa uma técnica em que o riff domina as canções oferendo-lhe uma urgência e vibrações inigualáveis. Para além deste pormenor, Victor Torpedo é uma personagem “larger than life” porque está conscientemente desprovido de preconceitos a que o seu estatuto de guitar hero estaria sequestrado, recebe os seus conhecidos com um enorme sorriso e aos amigos com abraços e beijos de felicidade, a sua solidariedade para com os marginais é de tal forma desconcertante que por vezes é complicado associá-lo a um esteta Pop, se houvesse um trono do Rock em Coimbra decerto que a coroa seria para o Victor Torpedo. O cartaz que publicitou o evento denominado de Special Crimbo + Karaoke é exaustivo ao enunciar as bandas por onde passou ou ainda milita: Tédio Boys, Subway Riders, Planet Jacumba, Blood Safari, Tiguana Bibles, The Parkinsons, Psicotronics. Os convidados desta festa eram os seguintes: Pedro Xau, Carlos Mendes, Susana Jacumba, Toni Fortuna, Sérgio Cardoso, Tó Rui, João Rui, Jorri, Pedro Calhau, Pedro Serra, Augusto Cardoso, Tracy Vandal, Carlos Dias, Paula Nozzari, Marquis Cha Cha, Nakata, Samuel Silva, Miguel Padilha, António Olaio, MC Ruze, Jerónimo, Paulo Eno, Nito, Ricardo Seiça e Zappadada. Há uma surpresa de última hora, Miguel Duarte aluno das sessões de músico terapia administradas por Paula Nozzari, que o propôs para se sentar na bateria dos Subway Riders, é o seu primeiro concerto e a tarefa não é fácil, mas com a cumplicidade e o entendimento de todos os músicos a primeira canção ganha concisão estética. As duas canções que se seguem já contam com Pedro Xau na bateria, os Subway Riders apresentam-se na mais sólida esquizofrenia Pop, decompondo ou vingando estereótipos que se instalaram como géneros. De assinalar que também faltou no cartaz o nome do incontornável Kazuza, que desempenha o papel de apresentador dos convidados, que muitas das vezes ou mesmo quase sempre não conseguirá ler a respectiva cábula, mas não é o caso quando apela pelo “Toni Fortuna” que demora em se reunir a outros ex-Tédio Boys: Kalo, Sérgio Cardoso, que juntamente com Victor Torpedo reavivam a memória de uma banda rock and billy, que na década de noventa conquistou os palcos da América e que tem um culto generalizado em Portugal, que clama por uma reunião dos heróis de Coimbra. Na segunda canção junta-se o incomparável Xerife Nakata e o billy ganha consideravelmente ao hill, algo que provoca na parte fronteiriça do palco uma dança desordenada por parte dos mais acérrimos fãs. Na penúltima o funk com um groove disco sound é elevado ao patamar da perfeição com o solo do saxofone do Calhau. Na última canção sobe ao palco Tó Rui e as guitarras são labaredas de um auto de fé onde se sacrificam bruxas e bruxos, a onda repercute-se pelo público que dança e recebe de braços abertos o stage diving do Toni Fortuna. Surge “Paulo Eno” que enquanto o sampler debita a canção que é entre cortada pela guitarra eléctrica de Victor Torpedo, discursa alheio ao propósito para o qual foi convidado: dar voz às canções dos 77; “em 76 formei os Dada”; “em 77 formei os Curto Circuito”; “87 formei os Objectos Perdidos”, nos quais o cicerone da festa militou “com 14 ou 15 anos”; “em 96 formei os 77”; “acreditem no rock”; “hasta la victoria siempre”. O Paulo Eno voluntariamente ignora os acordes de Victor Torpedo, consequentemente a sua actuação é iníqua, “Viva o Partido Comunista Português”, ostensivamente bebe água e cospe para o público e não satisfeito com o seu acto ainda lhes despeja parte da garrafa, a canção ganha tonalidades reggae, “Álvaro Cunhal”. Na segunda canção dos 77, Paulo Eno canta um refrão poeticamente punk: “I love you, I fuck you, I kill you”, a melodia é de uma violência rocka billy desmesuradamente hipnótica. Para os Planet Jacumba Victor Torpedo é secundado por Kalo, Pedro Chau e Susana Jacumba, que é dona de uma voz portentosa e de um domínio do palco muito convincente, é uma excelente frontwoman. A primeira canção e a segunda canção versam o indie, a primeira domina a pop e na segunda o rock, mas os holofotes da nossa memória deverão iluminar o rosto e a posse e a voz desmedida da Susana Jacumba, “somebody help me their`s a rock at the road”. A quarta banda que faz parte da história de Victor Torpedo são os Parkinsons, sem o infatigável Afonso Pinto que reside no Reino Unido, onde fizeram sucesso e foram a primeira banda constituída maioritariamente por portugueses a actuar em Glastonbury. A imprensa inglesa apontou-os como a “next big thing”, as suas actuações foram descritas como “the dangerous band on earth”, com a presença regular de inúmeras estrelas Pop como o Brett Anderson. Talvez por estas razões irão executar quatro canções, a primeira é cantada por Victor Torpedo “just another new wave”, com direito a um solo épico tocado no meio do público delirante; a segunda, Victor Torpedo dá a mão a um membro do público, “Cunha, é bom de mais para estar em cartazes”, que segura o microfone: “Common baby you have nothing to lose”; a terceira é de novo cantada por Victor Torpedo, tal como as anteriores é profusamente punk, que dedica ao “Pedro Xau e ao Kalo”, pois estes, “foderam as suas vidas por minha causa”; a quarta canção é a “última dos Parkinsons e chama-se ´Runing`”, “é dedicada ao Afonso Pinto”, que é de um compósito explosivo, um manancial de histeria contra a utopia. A quinta banda a ser evocada são Blood Safari com Victor Torpedo (voz/guitarra eléctrica), Kalo (bateria); Pedro Xau (baixo eléctrico), a única canção que tocam corresponde a um dramatismo pop billy de contornos exóticos. Last but not the least the Tiguana Bibles a jóia da coroa que pertence a Victor Torpedo que chama ao palco, “Pedro Serra, Augusto Cardoso” e “a magnífica Tracy Vandal” e na bateria o Nito. As três canções que apresentam são de uma delicadeza desarmante, se fosse uma película esta remeteria para um deserto onde a fauna não é submissa aos ciclos da natureza, aceitando como determinação suprema uma imutabilidade imune às tempestades. O contra baixo de Pedro Serra e a voz de Tracy Vandal são dois eixos que perpetuam uma irremediável intemporalidade, com as guitarras eléctricas a salpicarem o plateau com cowboys que são meros espectros informes, que estão enclausurados numa dimensão de onde jamais serão resgatados. Após duas horas no palco do Salão Brazil, Victor Torpedo impõe um curto intervalo, quando regressa já é a figura de um astronauta que em Marte encontrou uma fonte de onde brotava um líquido vaporoso e com o qual matava a sede. “Karaoke” advém do seu primeiro álbum a solo denominado de “Raw” editado em Maio deste ano, consiste na anulação dos músicos substituindo-os por canções pré-gravadas predominantemente kitschs, durante as quais são pojectados vídeos com legendas para serem cantadas pelos convidados, e consequentemente dividirem o microfone com Victor Torpedo, que chama paulatinamente ao palco os músicos que já haviam participado na primeira parte do concerto denominado Special Crimbo: Kalo, Carlos Dias, Calhau, Padilha, João Rui, Tracy Vandal, Toni Fortuna, Paulo Eno, Calhau, Marquis Cha Cha; o actor Ricardo Seiça Salgado e o imprevisível MC Ruze ou o artista plástico/ex-Repórter Estrábico António Olaio.

Victor Torpedo, Special Crimbo + Karaoke, 26 de Dezembro, Salão Brazil @ Coimbra

domingo, 25 de outubro de 2015

Caixa Negra

Em Portugal haviam-se passado seis anos sobre o vinte e cinco de Abril de 1974, quando se dá a revolução Pop/rock que replicou culturalmente a do Reino Unido com vinte anos atraso, finalmente existiam adolescentes abertamente contrários aos pais salazarentos, há uma mudança de paradigma social, o povo já não saia à rua somente para trabalhar, a liberdade empurrou-os para os bares e discotecas. Os GNR fizeram parte da revolução denominada por rock português (o rock ou a música clássica não têm nacionalidade, são disciplinas que podem ser manipuladas com os mais diversos fins, somente assim é que devem ser perspectivadas), mas o que este título demonstrava é que existia o cuidado, pelos diversos agentes culturais, de usar a língua portuguesa como meio de comunicar com os portugueses, por clara oposição às bandas Ié-Ié que conquistaram Portugal na década de 60. Os GNR destacaram-se desde 1981 através destes três pontos deveras importantes: pautaram o seu percurso com constantes investidas em línguas estrangeiras, que por vezes misturavam com o português, nessa medida não fazem parte totalmente do rock português; uma lírica que é mais abstracta do que naturalista, por vezes estes dois conceitos artísticos encontravam-se discorridos numa mesma canção; a procura de uma fórmula da canção Pop perfeita, quando a almejavam propunham-se a subir a parada e consequentemente reinventavam-se. Os GNR eram uma ilha no quadro artístico Pop português, que sofreu diversas alterações na sua composição, que foram alvo de censura por uma rádio agregada à religião católica, e de chacota e discriminação por parte da imprensa pouco ou nada especializada, à qual não agradava que numa cidade distante e quase “medieval” existisse um foco de criatividade impregnado de originalidade. O vanguardismo Pop era, e ainda é dominado pelos GNR, as características congénitas mantêm-se inalteradas mesmo que tenham sido bafejados pelo sucesso, a sua relevância cultural é mais importante do que o número de cópias vendidas, por exemplo, pelo “Rock in Rio Douro” de 1992. Há uma fronteira entre o passado e o futuro na noite de 10 de Outubro de 1992, na qual os GNR encheram o Estádio de Alvalade, que até aí somente servia para que as estrelas Pop internacionais jogassem à bola, opera-se assim a ocupação de um “território estrangeiro”. Nessa noite, a utopia cedeu por força da imagética dos GNR, consequentemente criaram a sua própria revolução que transformou Portugal num país moderno e em que a geração que os aplaudia desejava ser um GNR. Eu fazia parte desse grupo que delirava com as suas canções, que se revia na mestria melódica que foram delineando ao longo dos anos e que hoje é dominada por Tóli César Machado, e se identificava com a poesia de Rui Reininho que transformava cada concerto na emulação do efémero. Apesar de escrever no pretérito passado, cada uma das palavras acima transcritas, têm o mesmo valor hoje, vinte e três de Outubro de dois mil quinze do século vinte e um, passaram trinta e quatro anos desde que se reuniram sob a designação de GNR, marcaram a convocatória para o Coliseu do Porto a pretexto da edição de “Caixa Negra”, onde me encontro ansiosamente à espera de Rui Reininho (voz), Tóli César Machado (guitarras, percussão, acordeão), Jorge Romão (baixo eléctrico), são recebidos de braços abertos pela multidão, acompanhados por Samuel Palitos (bateria), Paulo Borges (teclados) e Tiago Maia (guitarra eléctrica, harmónica). As duas primeiras canções, “Caixa Negra” e “Triste Titan”, revelam uma bipolaridade que sempre fez parte da consciência Pop dos GNR, a primeira é um portento que reinscreve continuamente a melodia, evitando qualquer princípio de tédio, antes incutindo um vício impossível de desintoxicar. “Triste Titan” é um excedente de beleza que hipnotiza através da sua extremada delicadeza, um malmequer que em vez de pétalas brancas tem raios da lua, que uma criança arranca enquanto ouve a ladainha: “E tu vais a banhos a milhares de anos”, as palmas do público retiraram-na pontualmente do seu universo tão belo quanto utópico. Rui Reininho lamenta o facto de o Coliseu do Porto não ter lotação esgotada, por escassos oitocentos lugares, “não temos uma casa cheia”, nem “gunas” à porta. Esta sua irreverência, despoletou continuamente uma linha de portugueses anti- Reininho, uma seita de moralistas que esgrimiam diversas considerações, através de diversos meios de comunicação; veja-se o exemplo do jornalista da Lusa que declarou publicamente, após o concerto dos GNR no Super Bock Super Rock de 1995, o fim da banda, “lá vai aço”. “Telefone Pecca” é apresentada num colorido rock mas que advém de uma linha melódica kitsch, Rui Reininho canta como se estivesse aparentemente a brincar ao telefone estragado, com uma violência contida segura de cada uma das palavras que descrevem “uma máquina que fala”, os coros: “pá, pá, pá”, respondem-lhe absurdamente, em cada acorde ganha actualidade, e devido à sua urgência surrealista jamais cristalizará. “Efectivamente” perdeu o início imposto pelo teclado, substituído pelas guitarras de Tóli César Machado e Tiago Maia, que em crescendo impõem aos restantes elementos os seus acordes alegres de tão saltitantes, o hino à liberdade de expressão ou à comunhão de opostos e dessa forma reafirmar através da fábula que a realidade é uma fantasia. Rui Reininho sentencia: “Espera-nos uma longa noite”; “quando estou com vocês é sempre Sábado”. “Homens Temporariamente Sós” é uma das canções dos GNR em que se evidencia a fragilidade dos homens, que não encontram no seu espelho um outro rosto que os acarinhe, uma lírica que impõe uma dor que marginaliza a razão e a agrega a uma solidão eterna. Dominada por um teclado noctívago, este centro impõe densidade cromática, quando embalada pelo baixo eléctrico de Jorge Romão e a bateria de Samuel Palitos a dor cresce, a guitarra eléctrica de Tiago Maia em regime de slide guitar, é o gemido de uma orca assassina por ter sido relegada ao ostracismo. Pausa. “Não há qualquer tragédia, mas um vinho a beber”. A sexta canção, “Pós-Modernos”, comporta um ritmo curto delineado pelo sintetizador que lhe apraz uma constante exaltação kitsch, a que se soma a uma poesia anti-consumista com direito a um refrão rap actualizado: “Ipod”, “Ipad”, “High Tech”. “+ Vale Nunca” combina uma música Pop alegre com ditames que afrontam o envelhecimento, há histeria na sala, as pessoas batem palmas e dançam como se tivessem dezasseis anos, e como Peter Pan personificam o eterno estágio do desenvolvimento em que impera a inocência. Rui Reininho apresenta Helton: “O melhor homem do mundo a seus postes, e compatriota de Roberto Carlos!”, que irá cantar com os GNR “Inferno”. O brasileiro discursa: “Muito obrigado pelo convite GNR, é a maior satisfação estar junto a vocês”, ele que toca bateria numa banda de inspiração cristã, não terá lido a lírica de “Vídeo Maria”? “Inferno” é explanada seguindo a melodia dengosa do rock tropical, a melodia não se encontra totalmente dominada pela guitarra eléctrica (como sucedia com a intervenção de Andy Torrence), ganhando uma amplitude estética mais actual, menos anos sessenta, quando era um dos porta-estandartes neo-decadentes de um Brasil dominado por uma elite urbana que festejava uma vida cheia de glamour, defendida pela ditadura militar. Tanto Rui Reininho quanto Helton complementam-se, o primeiro concentrado na dor vã de um garoto rico, o outro dá pulos como se tivesse snifado coca dos peitos de uma menina. Quando a canção ganha um andamento acelerado reverberando as cores de um palácio, que tem como pano de fundo cortinados cor de vinho, reina a diversão e a loucura por parte do público. Rui Reininho e Helton abraçam-se, este toma de novo a palavra: “Obrigado Coliseu! Obrigado GNR! Obrigado Porto!”, sai com um sorriso assoberbado. “Sub-16” é a canção dos GNR que os revela multiplamente: tem um corpo Pop que é vilipendiado pela guitarra eléctrica de Tiago Maia criando uma máscara rock, as variações rítmicas e pausas oferecem-lhe um elixir da eterna juventude; a lírica é o retrato de um adolescente que reage instintivamente ao mundo mutável à sua volta, “à volta do quarto, nuvem de cabelo em pé”. Para além de Rui Reininho conferir a Tolkien um pedestal Pop, não será o sonho de qualquer escritor? Antes da décima canção, “Popless”, Rui Reininho revela o seu carinho para com esta balada Pop luminosa: “A próxima música, nunca conseguimos abandonar, é como aquelas doenças de pele”; uma clara referência à vitiligo que pigmentou Michael Jackson de uma brancura marmórea? “Popless” é delineada lentamente e gradualmente e os GNR vão pincelando-a com uma densidade cromática que transcreve uma mulher sensual, “linda”, “bela”, e cada um pode ver no espelho a sua cara-metade. Para cantar, “Dançar SOS”, Rui Reininho convida a subir ao palco do Coliseu do Porto a “magnífica, portentosa, Rita Redshoes”, surge com um vestido preto. A canção é dotada de uma lógica negra marcada pelo teclado de Tóli César Machado e pelo baixo eléctrico de Jorge Romão; no dueto há uma clara troca de papéis Rui Reininho com um timbre quente e sofrido expressa uma dor contida, a sua corresponde tem uma voz seca ou mesmo fria, mas que paradoxalmente se complementam na contra cena, e quando se cruzam, “viver com mais gente”, parecem um casal de estranhos a compartilhar uma nesga do televisor ou da mesa ou da cama ou mesmo do caixão. A viagem por entre a história dos GNR prossegue com “Honolulu”, dominada por um teclado negro que nos remete para um universo pautado por figuras efémeras do Noronha da Costa, um feixe de luz vermelho rasga a tela negra ou ainda uma mulher dissolve-se sobre um rochedo onde se esmigalham ondas que nos salpicam com a eterna saudade, “quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”? “A chupar rebuçados”, o bombo em vez de a retirar do seu estado dilacerante impinge-lhe mais dor, “vai tu, vou eu”, aumentam uma oitava e a ferida abre-se numa queimadura de um cigarro tortuoso, “bye, bye”, “Honolulu”. Antes do clássico, “Vídeo Maria”, Rui Reininho homenageia Tóli César Machado e Jorge Romão, os seus companheiros de sempre, por lhe terem ofertado “esta vida maravilhosa”. “Vídeo Maria” é uma súmula Pop que fervilha num leito pecaminoso, o baixo eléctrico de Jorge Romão desenha toda uma cadência que remete para a dança, “entro numa igreja fria”, a guitarra Tóli César Machado apropria-se de tonalidades profundamente kitsch assim como os sintetizadores de Paulo Borges, as pessoas batem palmas e acompanham o ritmo com breaks de Samuel Palitos que institui cores brilhantes, “que é casta eu sei, virgem ou não…”. Rui Reininho não esquece o raper luso angolano que se encontrava em greve de fome, aliás numa maratona da greve de fome, “aos nossos colegas na prisão”, o público vibra com a menção, bate palmas e grita. “Las Vagas” polvilha o Coliseu do Porto com uma contenção incontida do Rock, com diversas e rápidas alterações rítmicas tudo devidamente encenado para que seja perfeita a hipnose que instituem a letrados psiconautas. Rui Reininho convida, “Tim… Timóteo”, que é nada mais nada menos que o homem forte dos seculares Xutos & Pontapés, onde milita como cantor e enverga normalmente um baixo eléctrico, porém surge com uma guitarra acústica, e é educado para com os portuenses: “Boa noite Rui, boa noite GNR, boa noite Porto”. Os GNR preparam-se para tocar “Quando eu Morrer”, que gravaram para um tributo aos Xutos & Pontapés denominado “XX Anos, XX Bandas” (1999). “Quando eu Morrer” é lentamente tocada com um crescendo que se vai adensando como se fosse um pó desértico que cobre um fragmento de pedra, a letra versa sobre a proibição de se oferecer “flores a quem morre de cancro”, que de facto é, se for, uma metáfora vazia de sentido. O dueto entre Rui Reininho e Tim decorre de uma relação de parcimónia, cada um ocupando o seu lugar na canção, isto, repercute-se nos restantes músicos. “Explosão nuclear”. A décima sexta canção é “Bellevue”, um torneado tão delicado quanto negro, música para o carrossel idealizado por Basky na edílica Dismaland, quem canta é Tim e o seu timbre é subtil como se tivesse medo de enunciar o percurso que toma a personagem principal da canção, distante do seu timbre grave e monocórdico que usa recorrentemente com os Xutos & Pontapés, “salto à janela com muita atenção”. Rui Reininho responde-lhe num canto de quem conhece o fim da narrativa, “um foco de luz no último estertor”, no qual descobre uma cama, “salto para cima experimento o colchão”, mas, mesmo que diariamente compareça no mesmo local à mesma hora: “Ninguém comparece ao meu rendez-vous”. A décima sétima canção é a suavizante e encantadora “Asas”, que liberta os presentes da angústia provocada pela “Bellevue”, um tónico perfumado com um éter dissolvido numa pipeta volumétrica. “MacABRO”, o nevoeiro que a circunda é como uma valsa composta para ser cantada no porão de um navio fantasma, há dois comandantes: Tóli César Machado ao piano que mente em cada nota enunciando uma nefasta festividade Pop e Rui Reininho a voz das almas penadas, “cá em casa é tudo feito à mão; que nos sirva de lição”, as palmas eclodem a festejar um milagre inexplicável, um coro de bêbados respondem-lhe: “Lalalala”, quando a maré ganha balanço julgam que estão a andar sobre água ao lado de Jesus Cristo. “Cá em casa é tudo feito à mão”. Dois desses coristas alcoolizados são uns “mariachis”, vestidos com fatos escuros com brilhantes e chapéus de dez galões sobre a cabeça, “que viva México”, que poderiam constar como figurantes numa película do Sergio Leone. Estes empunham trompetes e os restantes GNR iniciam “Nova Gente”, que tem uma métrica curta e repetitiva que lhe oferece uma dinâmica de baile Pop, na qual se tentam encaixar os metais e tal somente sucede quando o ângulo da melodia ganha elasticidade, elevando-a à condição de vanguardismo kitch; a perspectiva sobre Portugal encontra-se espelhada no verso: “Vivo numa ilha tropical”, é o elogio irónico a um país em que tudo se encontra ao contrário, e consequentemente põe em causa um Estado que naturalmente devora os seus filhos. Antes de “Pronúncia do Norte”, Rui Reininho comete uma “inconfidência, fui curado esta semana” da Hepatite C que o achacava há duas décadas, as pessoas aplaudem e gritam. O piano é dedilhado por Paulo Borges, “Pronúncia do Norte” é o hino não somente de uma região mas de um sentir, que é impossível de transcrever através das palavras, “é a pronúncia do norte os tontos chamam-lhe torpe”, o público entoa: “É a pronúncia do norte”, quando o bater do coração deste corpo abstracto emerge com a devida conivência dramática do acordeão de Tóli César Machado, relegam-na para o domínio do épico. Para, “Morte ao Sol”, os GNR convocam a gaita-de-foles de Gonçalo Marques, devidamente fardado de gaiteiro, que sopra o blowpipe que remete para uma terra remota que alberga uma caixa negra, desloca-se para a boca de cena, enquanto Tóli César Machado marca compassadamente o ritmo sobre uma precursão digital que se intromete na divagação esotérica do gaiteiro, associados no teclado de Paulo Borges. Rui Reininho: “Estou contente se a luz de esvai”, o baixo eléctrico de Jorge Romão dá continuidade ao festim negro, e é a vez de Rita Redshoes interferir na narrativa: “Metamorfoses de horror”; Rui Reininho: “vão demorar”-- se em “Dançar SOS” o dueto foi de facto equilibrado-- em “Morte ao Sol” a força que a desequilibra é a cantora lisboeta, a espaços encontra-se devidamente enquadrada com o ritmo; e não revela através do seu timbre feminino os versos, e a única forma de se livrar das fraquezas é elevar a voz antecedendo-se a Rui Reininho que outorga: “outra voz”. Quando, “Morte ao Sol”, ganha o seu pico dramático Rui Reininho agradece a presença da Rita Redshoes, que lhe responde: “É uma honra estar aqui com os GNR”. A vigésima segunda canção, “Sangue Oculto”, é uma soberba incandescente exultação de um rock latino, aprofundada pela inserção dos sopros dos mariachis alcoolizados, a lírica explora o paradoxo como fundamento estético. “Cadeira Eléctrica” revela-se através de um composto power Pop, dominada por um ritmo dengoso e curto, procurando dessa forma uma ambiguidade que se fosse uma textura seria a peruca do Andy Warhol, “há na China uma barragem suicida, para quem quer mudar de vida”. A primeira canção do encore, “Corpos”, tem uma estrutura Pop com diversas e alternadas variações rítmicas, a lírica é o espelho da dicotomia entre o corpo humano e a moda, que não é nada pacífica, “a moda é tão periférica”; “a moda é passageira”; “o corpo pega como um tractor”; “o corpo é porco porque quer”. A vigésima quinta canção, “Morrer em Português”, é apresentada numa vertente em que os decibéis são rejeitados das guitarras eléctricas são associados a um ritmo quase punk, a tomarem a dianteira desta ode à morte, decepando-a gradualmente da sua original efervescência Pop/Rock; Rui Reininho canta excluído desta inesperada agressividade, “tentaram-te engatar sabendo que és fria?”. A penúltima canção a ser tocada pelos GNR é “Ana Lee”, a guitarra acústica insere os acordes Pop exóticos, o público canta: “Ana Lee, Ana Lee”; Rui Reininho: “Ópio do povo”, quando o pêndulo de Foucault se movimenta, “e ao vir-me, enfim em verde tónico, no país onde reinam as cigarras”, o público bate palmas e canta o refrão, por fim Rui Reininho é peremptório sobre quem o está a amar, “são unhas que cravam na pele em mim”. Os portuenses quando ouvem o bombo do Samuel Palitos, batem palmas e entram numa histeria incontrolável, como se estivessem a ouvir pela primeira vez “Dunas”, ou, através desta reviverem momentos idílicos da sua vida sentimental, é arrebatador o poder desta canção, que inquestionavelmente criou nos portugueses a noção do que é o Verão. Rui Reininho nem precisa de cantar, é substituído pelas vozes dos presentes, Tóli César Machado tem ao peito o acordeão que está em suspenso e Jorge Romão recusa dar persecução a “Dunas”, quando tal sucede não encobrem o coro do povo, “dunas”. Surgem no palco os convidados que entoam o refrão, quando os GNR dão por encerrada a sua caixa negra, abraçam-se e vergam-se numa enorme vénia perante o público no Coliseu do Porto, que tal como eu, os venera.

“Caixa Negra”, GNR, 23 de Outubro, Coliseu do Porto.  

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

The Sound and the Fury

A Super Nova está à um dia de se revelar monstruosamente bela, prevê-se que seja uma bola de fogo que de tão morna ilumine o que resta do Planeta Terra. O ar transpira a um salitre húmido que tem um travo tóxico provindo de duas fábricas trituradoras dos assassinos eucaliptos que colonizaram Portugal, da mesma forma que o português no Brasil criou o mulato símbolo vivo da eloquência da alma que emancipou a saudade. As gaivotas planam eternamente insatisfeitas por a pesca da sardinha ter sido interdita aos pescadores, grasnam como se fossem espantalhos a apelar por misericórdia para com a escravidão a que a natureza lhes impôs. As ruas da Figueira da Foz estão numa sangria de figuras que passeiam o passeio de ontem e se hoje fosse ontem, que razão para existir valeria a pena, pergunto, se o passeio não fosse ontem o que seria de nós, que vazio nos alimentaria para dessa forma darmos sentido à vida, dá-me a tua mão e o teu beijo de madressilva patrocinado pelo Báton comprado no Rock and Vintage FleaMarket. Entramos atrasados numa garagem que não disfarça o infortúnio de ter sido pasto a carros durante diversas décadas, das suas veias ainda jorra o óleo que é acesso e propagado pelos demoníacos Parkinsons, força bruta de Brutus de guitarra dilacerantemente distorcida, o Minotauro tem o tronco esquálido nu, “caralho”, vocifera para o microfone ordens de combate contra os amores frustrados, mas sob uma perspectiva irónica de quem está habituado a ser um looser, à sua esquerda está um homem de bigode de chulo da revolução dos cravos que executa o baixo com uma pulsão rock, a sua companheira é Jackie la Feline que bate nos pratos e no bombo como se estivesse a impor o coma a um psiquiatra, por fim uma figura de óculos como lupas, barba, e mãos sensíveis que teclam poeticamente inscrevendo na barbárie uma harmonia negra, negra, negra. Os Parkinsons são um colectivo de psiconautas que escarram uma violência incomensuravelmente desmedida que durante uma hora impôs um estremecimento aos dias em que a rotina cega os corpos e lhes impõe uma insensibilidade para com o passeio para a morte, essa sombra que é o negativo da vida. A garagem fervilha de entusiasmo revelando rapazes gordos e magros depilados a dançarem no palco e atirando-se sobre o público; um dos quais mede forças com o Minotauro e esfregam os peitos suados e separam-se antes de se engalfinharem publicamente; o público recebe com redobrado entusiasmo as investidas do Minotauro que carinhosamente estende a mão a uma criança de vestido de noiva cor-de-rosa, assim como as deambulações épicas de Brutus com a sua guitarra que por vezes deflagra das chamas do Jimi Hendrix ou é snifada pela de Keith Richards. A apoteose é perfeita pois coloca os Parkinsons no pedestal dos hereges supremos veiculadores do punk. As pranchas de surf que me separaram do palco são as mesmas que me impedem de ver pormenorizadamente Los Black Jews, há uma belíssima long board de que são fãs os tubarões que têm como fetiche bocanhar umas pernas cobertas por fatos da Billabong, para matar a rotina de dias a sondar a presença de corpos e de preferência que seja o de um black jew, que beija com submissão a fotografia de Netanyahu. Este quinteto tem uma jovem na guitarra que “faz” coros, os restantes rapazes dividem-se por um teclado, bateria, guitarra eléctrica/voz e baixo, a música que promovem é quente e ritmadamente dolente, como se fossem raios de sol a incidir sobre a Califórnia da década sessenta do século XX em que a América transformou a praia e o surf numa indústria em que os jovens usavam melenas wax e elas defendiam a virgindade da investida das ondas que espargiam esperma. A maioria das canções são um tónico que nos remete constantemente para um universo sonoro ao qual não acrescentam soluções inolvidáveis, verdade, que quando impuseram um ritmo acelerado a uma das canções esta ganhou contornos psicadélicos deveras entusiasmante já que nesse instante conseguiram transformar o palco numa ilha do pacífico com um mar revolto em topázio sob um céu rupestre. As vozes que me acompanham dão as mãos para comunicar através da energia produzida pelo corpo humano, ditado pelo imortal coração que desconhece o véu que o impede de rever-se no seu espelho, Super Nova foi ontem e marcou o passeio do passado, como deves estar entendido através das notícias nos jornais, e é certo que as gaivotas são riscos brancos que riscam a noite como se fossem aviões à jacto, o cheiro a madressilva desapareceu e impera o odor fresco dos ciprestes que anunciam o fim do mês do Agosto quando somos invadidos por emigrantes. Se houvesse justiça no mundo a carta teria sido respondida selada com um beijo com Báton, mas ela jamais foi entregue pelo carteiro do Pablo Neruda. Hoje não há os mistérios extravagantes da lua nem tão pouco a sombra sobrevive, o silêncio não é mais do que a ausência de som, um é a solidão o outro a companhia. Sobre o palco encontra-se um marinheiro a ler uns nomes imperfectíveis, é uma figura que poderia figurar no elenco do “Love Boat”, estou certo que Michael Jackson o levaria para a sua “Never Land”, os D3Ö estão pacientemente à espera que o marinheiro cesse o seu discurso. A violência que implementam é contínua e constante num revirar de páginas de um diário escrito por uma mãe suicida, um bloco sonoro a espaços dilacerado pelas guitarras que são tão incandescentes quanto um tiro solar; quando sobe ao palco um homem que enverga um baixo eléctrico embrulhado no jornal “O Crime” as canções são salteadas numa visceralidade incorruptível; se por instantes surge um gigante dos teclados o compromisso é o da delicadeza e equilíbrio melódico; a harmónica imprime um blues que é gradualmente estilhaçado nas malhas distorcidas do rock, com direito a um spoken word demoníaco. Há invasões constantes do palco e o caos é gerido por uma caveira que é naturalmente demente e se deixa levar em braços por entre o público, uma óbvia encenação orientada por um Deus que não é imune ao Rock and Roll.

Gliding Barnacles, 27, 28, 29 de Agosto, Garagem Auto-Peninsular @ Figueira da Foz

sábado, 15 de agosto de 2015

On the Road

Há uma composição de igreja ateada por jovens do Ku Klux Klan que marca a entrada em palco dessa força armada denominada de GNR—Rui Reininho (voz); Jorge Romão (baixo eléctrico); Tóli César Machado (guitarras, teclado, acordeão) aos quais se juntam Samuel Palitos (bateria), Andy Torrence (guitarra eléctrica) e Paulo Borges (Hammond e afins). Para os mais distraídos-- e que são muitos neste este país onde graça o engano e a má língua-- os trinta e quatro anos percorridos pelos GNR, não foram em vão ou gratuitos; ou tendo como fim único o lucro; ou terem vivido de feitos históricos para todo o sempre: e por tudo isto e muito mais, o trio sediado na cidade do Porto, terão um lugar cativo num panteão Pop. Há uma alegria contida mas desmedida por parte dos GNR em apresentarem ao povo as canções do último albúm “Caixa Negra” com a excelente produção de Mário Barreiros. Mas antes, tocaram de forma irrepreensível: “Telephone Pecca”; “Popless”; “Vídeo Maria”; “Efectivamente”; “Tirana”; perderam o fôlego? Todas dignas de figurarem no manual escolar de como escrever canções Pop sublimes, para serem recordadas para todo o sempre; e se Deus fosse crente seria fã dos GNR mesmo que estes tenham pecado ao libertar a virgem Maria da sua virgindade-- como que um cinto de castidade orgânico imposto por anjos castrati. O tema que dá título ao décimo segundo álbum de originais “Caixa Negra” tem todas as qualidades melodicas para apresentar um passado revigorado e consequentemente é actualmente um composto Pop kitsch; liricamente está mergulhada numa ambiguidade desarmante que ao ouvinte ecoa como um jogo de espelhos onde se reflectem cegos. “Triste Titan” é uma bomba de inexcedível delicadeza sumptuosamente agridoce, se fosse um relógio seria de sol, se fosse amor seria uma eterna paixão; e se não tivesse sido composta pelo Tóli César Machado jamais alguém teria tal talento. Rui Reininho redigiu/canta um poema que é uma declaração de amor a Portugal, quem mais vai a “banhos, a milhares de anos”? Maravilhoso. A temperatura aumenta com “Cais” que é vilipendiada pela fúnebre “Morte ao Sol” e electrocutada por “Las Vagas” e por fim “Ana Lee” exorciza o seu exotismo erótico. “MacAbro” parece que foi composta por um músico no convés de um navio onde os ratos são pessoas, que oram para que a neblina fantasmagórica não seja do teor das suas almas; o coro composto por Jorge Romão e por duas silhuetas masculinas são iluminados por um sangue que pinga das luzes da ribalta, que identificam a incapacidade de nos libertar da fatalidade que a vida impõe. “LáLáLáLáLá”. “Asas”; “Pronúncia do Norte” e “Sete Naves” deveriam constar como estrelas num firmamento embriagado perseguido por um poeta em busca da sua musa para que lhe permita redigir uma ode à sua beleza. “Cadeira Eléctrica” é digna de uma beleza Pop acelerada para além dos limites que perpetuam uma redundância existencial, não há promessas na lírica do Rui Reininho, o paraíso é uma montanha de notas de crédito artificiais. “Sangue Oculto” é dominada por um Rock and Roll em duas vozes: uma castelhana a outra lusa, asseguradas exclusivamente por Rui Reininho. “Dunas” tem uma cadência da década de sessenta em que a ingenuidade foi anulada pela beat generation que transformou a América num lugar sombrio e marginal onde as flores são de alcatrão que rasgam os desertos e transportam os passageiros para estâncias alucinogénicas. Stop. “Sub 16” e “Mais vale Nunca”, a primeira é uma canção Pop que sentencia os “Djs” ao enforcamento, por instituírem o vazio e a futilidade como cultura dominante; a segunda é a canção preferida do Peter Pan nascido na Terra do Nunca vizinho dos GNR. Viva o “Inferno”, que se fosse o de Dante estaria em constante combustão, mas como é o do Roberto Carlos essa múmia residente do ié brasileiro, é violentada pelos GNR!

Caixa Negra, GNR, 14 de Agosto, Festival do Bacalhau @ Gafanha da Nazaré

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Pink Elephants

Surge Mick Harvey no palco do Centro Cultural de Ílhavo em redor do qual estão quatro músicos—teclado/guitarra, bateria, baixo electrico, teclado/Guitarra eléctrica, a que se somam duas jovens cantoras: uma é loura a outra morena; e um quarteto de violinos—homenageiam o génio tumultuoso de Serge Gainsbourg, e concomitantemente o espectáculo reporta aos álbuns “Intoxicated Man” e “Pink Elephants” do cantor australiano que se apresenta: “I`m Mick”. O que se poderá relatar sobre este concerto baptizado de "Intoxicated Man: Mick Harvey performs the Songs of Serge Gainsbourg”? Há duas componentes distintas mas que inevitavelmente se encontram intimamente ligadas: a banda revelou-se segura mas inconsistente; a segunda: a voz de Mick Harvey, que tal como a da sua companheira Xanthe Waite, ficaram consubstancialmente abaixo do exigido--inicialmente ainda se pode supor que o culpado é o técnico de som da mesa da frente-- mas este aspecto foi-se gradualmente agravando e inexplicavelmente deteriorando. A lírica de Serge Gainsbourg é em determinadas canções muito palavrosa, encontra-se inscrita numa versatilidade poética recheada de imagens tão sedutoras quanto decadentes; e este último ponto raramente foi aflorado em Ílhavo. Uma pena. Antes de iniciar a “The Barrel of Mine 45”, um elemento do público tenta desestabilizar Mick Harvey que é um ex-Bithday Party, ex-Boy Next Door, ex- Nick Cave and The Bad Seeds: “You are a bad seed”; o silêncio cavalheiresco de Mick Harvey foi por este quebrado: “Past or present?”, de seguida discursou dizendo que não se sentiu minimamente incomodado com o grito, e encetaram numa vertente blues com domínio do órgão e do baixo. A verdade é que os pormenores instituidos pela banda e pelo quarteto de violinos, raramente encontraram uma consistência que daí resulta-se em algo próximo das melodias escritas pelo chanteur francais da mítica década de sessenta do século XX. Em “Je T'aime... Moi Non Plus” aproximaram-se continuamente do original e com os violinos a canção fluiu maravilhosamente; o dueto entre Mick Harvey e Xanthe Waite quase se aproximou dos de Serge Gainsbourg e da Jane Birkin. Há que salientar que quando Mick Harvey tocava congas aproximava-se de Slim Gaillard descrito por Jack Kerouac em “On the Road”, sendo assim não se lhe pode imputar falta de concentração durante o espectáculo: "Intoxicated Man: Mick Harvey performs the Songs of Serge Gainsbourg”, pena que os excelentes músicos que o acompanharam tenham sido capazes de apenas as recriar, incapazes de lhes incutir uma alma nova.

Intoxicated Man: Mick Harvey performs the Songs of Serge Gainsbourg, Mick Harvey, 22 de Julho, Centro Cultural de Ílhavo @ Ílhavo

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Metamorphosis

A noite há muito que apagou as cores dolorosas do Verão e inevitavelmente a humidade impõe-se como denominador comum. A escuridão é parcialmente iluminada pela lua cheia que se ensimesma na freguesia de S. Silvestre e particularmente na mata do Camalhão, onde se realiza o Kamalhão Rock Fest. No palco principal encontra-se o power trio Cavemen, que apresentam um conjunto de canções em que vogam pelo funk, blues, rocka billy, reggae; e pelo rock, mas quando este é salpicado por variações rítmicas e consequentemente ganha a vertente trip, conseguem enfeitiçar o punhado de pessoas que os estão a observar. Persigo um perfume incaracterístico que flutua no ar e me orienta em direcção ao palco 2 onde se encontra o duo JAE Sessions a executar uma partitura free-pop de forma magistral. Se eventualmente me desloco na direcção do bar de madeira para encher de cerveja uma taça de metal, é porque a sede somente se mata momentaneamente; cruzo-me com figuras que envergam t-shirts com a inscrição do “Kamalhão” que se destina a uma imensa minoria habituada à urbe. Alguém observa que um satélite é iluminado por segundos pelo Sol, nesse instante somos testemunhas de um milagre com origem na tecnologia nipónica e na natureza divina. No palco principal estão os The Casket Kings, têm roupa aprumada e os penteados ostentam poupas com gel, estes são os elementos decorativos da estéctica rocka billy; musicalmente há uma guitarra eléctrica, um contra baixo sustentado pelo corpulento cantor e ainda uma bateria que se exibe arritmicamente, algo que o exaspera: “Dá licença?”; se não houvesse um conflito em palco não estaríamos perante uma banda rocka billy? Há espaços este vai-se diluindo no tempo e os The Casket Kings ganham uma fluidez compacta, manchada pela tarola a sobressair negativamente por questões técnicas. Há a realçar dois pontos: a guitarra eléctrica a inscrever-se continuamente entre o rock e Southern rock, e o canto do homem do contra baixo com forte pronuncia sulista que não destoaria numa igreja católica erguida pelo Ku Klux Klan. Oiço distantemente o palco 2 onde os JAE Sessions reverberam num reggae que é violentado ludicamente pelo funk. Algo se esfuma para o interior de um corpo, que atravessa o recinto em direcção ao palco principal para observar os impetuosos King Salami and The Curbaland 3. Liderados por um mulato que veste calças castanhas da década de 70 do século passado e uma boina digna de um boémio do Soho londrino, ele é quem domina as canções com um timbre tão lascivo quanto o do James Brown. O quarteto tem uma sintonia sónica irrepreensível, adicionada a coreografias absurdas que realçam uma ironia parodiada constantemente. As canções têm uma base predominantemente Rhythm & Blues ao qual injectam diversas estécticas, umas vezes o resultado é excelente, outras-- por óbvia oposição-- é redundante (o responsável é a secção rítmica). No balcão do bar de madeira surge um homem com vestes negras coberto por um casaco branco, e um outro com a mesma indumentária; ouve-se uma voz a dizer: “velha”; “sulfatar”; “HAHHA”; “milhafres”; “milhafres do Kamalhão”; “Lucifer”; “escritor”; “demónio”; e a ordem inesperada: “pega num gato e leva-o para o Kamalhão”. E “o espírito da velha tem que ser convocado”; “para quê fazer hierarquias?”; de forma infantil o narrador pronuncia-se: “Lálálálálá”; ameaçadoramente: “milhafres”; “merda”. Um dos actores atira-se para a terra batida e corre em direcção ao centro do recinto e leva nas mãos o sulfato do diabo que compartilha com um espelho multifacetado. “Kamalhão! Kamalhão! Kamalhão!”. O foco incide sobre o palco principal mas não surgem os músicos, o silêncio domina por longos instantes a natureza dormente; por fim surgem os quatro músicos: guitarra, guitarra e voz, bateria e contra baixo; este puxa as cordas mas não consegue ouvi-las do respectivo monitor e consequentemente recusa dar início à primeira canção. O cantor está desanimado e nervoso, veste fato escuro e camisa vermelha que sobressai na gola; pede desculpa pelo sucedido, não era assim que se encontrava no “teste de som”, abandona o palco. Chamam-se The Dixie Boys e vieram do Porto provar que o seu rocka billy é mais puro do que uma garrafa de Jack Daniels, e com mais personalidade do que um imitador de Elvis Presley em Las Vegas.

A lua encontra-se com um véu de sujidade ao seu redor e a luz que emana é tão pulverizada quanto uma obra de Noronha da Costa. No palco principal encontram-se dois performers; um discursa para o microfone de forma lasciva enquanto empunha as mãos com garras horrificas: “corrupção”; “descodificação dos mecanismos democráticos”; a guitarra versa o hard rock primata, hair metal piolhento, estes clichés detonam o texto do orador. “GAL- Para um País sem Lobbies” é um discurso crítico sobre Portugal, o Político usa o mecanismo da quebra da quarta parede-- pois discursa directamente para o público-- a sua contra cena é a guitarra eléctrica do adjunto. O Político lidera um partido utópico pois parte do princípio que da anulação do mal obteremos o bem e consequentemente seremos finalmente civilizados? Há uma arrogância neste político, que não está em campanha eleitoral para umas eleições imaginárias, mas que tem a pretensão de questionar os respectivos responsáveis pela prostituição de Portugal. Por ventura, creio que estou algures iluminado por uma luz intermitente que se acende no palco 2 onde os JAE Sessions apresentam uma latitude prog com laivos de flamenco, sintetizados numa vertente jazz que se prolonga temporalmente numa visceral jam. As árvores dançam os seus ramos em direcção às estrelas enevoadas, que fantasmagoricamente abrem os braços e com as mãos empurram os Destroyers of All para o palco principal. Correspondem a um quinteto de metaleiros que abanam violentamente a cabeça com largas cabeleiras enquanto tocam nos seus instrumentos distorcidos, revela que estamos perante uma trupe de viciados no speed metal, heavy metal; a voz gutural, do único membro que tem o cabelo à tropa, é de uma violência diabólica. Duvido que a paisagem naturalista esteja em consonância com as canções dos Destroyers Off All, habituada que está a metamorfosear-se poeticamente de estação em estação do ano, segundo o calendário ditado pelos romanos. As figuras que se entrecruzam comigo estão a acelerar o passo para ver no palco principal do Kamalhão Rock Fest, Tracy Vandal que veste mini-saia metalizada e t-shirt preta; acompanhada por dois músicos nos teclados/guitarra. As canções que apresenta são de uma visceralidade synth pop, que a levam a saltitar ou deitar-se no palco ou a sentar-se na sua borda; a performance de Tracy Vandal é tão intensa quanto uma criança a brincar às escondidas com o Bela Lugosi, seria pernicioso reduzir o seu concerto a uma figura de estilo que não seja uma hipérbole. É nula a distância que me separa do palco 2, os acordes dos JAE Sessions acendem uma fogueira onde emolam o jazz e o reggae, enquanto jovens se atiram de pranchas de surf sobre uma pista em declive com uma superfície de esferovite. Quando Jibóia introduz os primeiros beats da sua mesa analógica-- atrai para o palco principal os festivaleiros-- adiciona-lhe a guitarra eléctrica da qual executa solos agudos que introduz na mesa, mistura-os com o beat e rejeita um composto tão venenoso quanto tóxico. O músico é um rapaz magro e tímido que ostenta um bigode indie, que está tão comprometido com a sua actuação quanto uma Jibóia a deglutir uma vaca em formol do Damien Hirst. A Jibóia tem a particularidade de ser bicéfala, quando surge Sequin, uma jovem de jeans e blusa clara, que introduz através do seu canto de virgem indiana um exotismo inexcedível às canções; quando desaparece e aparece de mini-saia a temperatura ambiente é acicatada, pena que a sua expressão corporal fique contraída com alguma timidez, caso contrário o concerto teria sido tão-somente sublime. E agora? A encerrar o palco principal do Kamalhão Rock Fest encontra-se Victor Torpedo de fato escuro, que apresenta o one man show “Karaoke”. As canções que são debitadas por um computador versam a Pop lo-fi, às quais se acrescenta a sua voz ao vivo e as letras retratam um crooner looser dandy. A sua performance é alicerçada nestes três pontos aos quais devemos adicionar a auto-punição-- com o microfone a estoirar na testa como se daí eludisse o principio do absurdo. Victor Torpedo é provocador ao despir o fato e a vestir um fato de astronauta, pede ajuda a um membro do público para lhe fechar o fecho das costas, segura no que parece ser um guarda-chuva e nasce um heterónimo com origem em Fred Astaire e Charles Chaplin. Um punhado de jovens sobe ao palco e dançam constantemente, um destes ostenta uma bandeira com um pau desmedido, que é roubada por Victor Torpedo que a atira sobre a borda do palco e estoira como um Big Bang Pop, que coroa a sua performance com rasgos de inevitável genialidade.


Kamalhão Rock Fest, 3 e 4 de Julho, S. Silvestre--Camalhão @ Coimbra

terça-feira, 9 de junho de 2015

Primavera Sound

Noite quente na baixa de Coimbra e a esta temperatura não é alheio o Salão Brazil onde decorre o Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo. No palco encontra-se o curador Carlos Dias ou Carlos Subway quando assume a sua persona de músico nos Subway Riders; promete: “que vão ser dois dias de loucura absoluta”, mas o acaso subtraiu potências festivaleiros, tudo por culpa “do Primavera [Sound]”, que se encontrava em simultâneo a decorrer no Porto e das “marchas”; mas para gáudio dos presentes Carlos Subway acrescenta que há uma estrela contratada “à última da hora”, essa é nada mais nada menos que “kazuza”. Alexandre Valinho Gigas é poeta e diseur e fá-lo concentradamente sobre o loop, o poema versa sobre alguém que se encontra numa situação desesperada, causada por um acidente e que tem como companhia uma “garrafa de gin”, vê o “limite” onde passa o tempo a “olhar para ela”, “onde repousa inquieta”; sobre o loop, “liberdade”; “garganta”; “as palavras isoladas: pois”; “translúcido”; “tão só”; “o odor a fresco”; a voz de Alexandre Valinho Gigas aumenta o seu dramatismo, “outro lado”, “outro lado”, “outro lado”; “outro lado”. O primeiro músico a subir ao palco do Salão Brazil é o Marquis de Cha Cha que apresenta um conjunto de canções ecléticas, em que o pormenor gradualmente ganha domínio e se estabelece como denominador comum; a música concreta marca lugar através do uso de um objecto que arrebenta e que espalha cofetis coloridos pelo chão; o uso do megafone como se fosse uma voz estranha. Os universos sonoros por onde nos faz viajar é a feira com cavalos de pau saltitantes, a austeridade kitsch da música clássica, a paródia ao rock e ao rocka billy e à infância através do xilofone, tudo delineado com uma elegância irrepreensível. Carlos Subway que é o mestre de cerimónias do Mono/Stereo assume que: “Já a seguir mais uma estrela de Portalegre o Johnny Luv & os Hate Killers, mas antes mais umas palavras do Gigas”; que coloca a voz sublinhando os graves: “essa força”; “há uma força em mim maior que as intempéries”; “toda a gente vê casas coloridas”, dominadas por uma “impaciência frágil”; “na cave sombria” o nosso corpo é um “bunker certo, a recogitar”; “poema”; “sou um obelisco”; “estéctica”; “liberdade”. Surgem os Johnny Luv & os Hate Killers, que na verdade é a banda de um jovem magro e branco que se senta na cadeira e ergue a guitarra eléctrica e dirige-se directamente para o escasso público: “Boa noite pessoal!”. A relação voz + guitarra eléctrica + caixa de ritmos é de facto ainda muito imberbe, mas há algo de especial nas suas canções que é o absurdo das letras, repetitivas e primárias e consequentemente destituídas de lógica: a primeira versa a sua aversão ao “Sushi”, a segunda “Chic Guitar` vamos ver se corre bem”, a terceira inscreve estilisticamente o rocka billy; antes da quarta há um percalço: “Esqueci-me da letra!”; o público identificou as potencialidades Pop de “Sushi” e clama pela canção; o músico: “Ok! Sushi!”, despe a t-shirt e no peito tem uma cruz tatuada a preto e no pescoço um fio grosso, canta/fala repetitivamente sobre a guitarra não sincronizada com a caixa de ritmos: “Sushi up your ass”. Palmas. Carlos Subway é perentório: “Estamos com mais público”; conclui: “Estamos a roubar público ao Primavera [Sound] e às marchas!”. Reapresenta o “Gigas” que se dispõe a narrar mais um poema sobre o som arábico: “as trevas e a luz” são as sombras que “seguem a minha amante” e no silêncio “sem música silenciosa” surge “o céu azul de nada”; “outra vez”; “céu azul” em derrocada. Alexandre Valinho Gigas muda de poeta “e agora Heiner Müller”, a sua voz é frugalmente agressiva pois tem a língua ferida, “mostra” (agudo), o canibal: “ouvi estalar então os seus dedos”, o teclado emite sons densos e dilacerantes de tão introvertidos, a morte “inolvidável”, eu de “sorriso inolvidável”, ele “não sabe nada”, ignora “o terror” que é “carne quotidiana”, um escravo “da espécie” faz parte de “o terror o seu terror, o nosso terror”, “carne”, merda, “gordura quotidiana, grito da criação”, reflexo, “a indecência da espécie”. O terceiro convidado do Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo é o Bode que corrresponde a um indivíduo denominado de Bode Rice. Este utiliza programações maioritariamente etéreas beliscadas pela guitarra eléctrica, através desta relação constrói canções numa cadência progressiva com inúmeras texturas, tudo tão bem executado que os fiordes que erige estão constantemente banhados com sangue de baleias e orcas que se recusaram morrer às mãos dos arpões japónicos. Palmas. Alexandre Valinho Gigas descreve que “ele nunca viveu” e consentaneamente “morreu à procura da causa”; “morreu à procura da causa”; “morreu à procura da causa”; “a causa estava a morrer à procura dele”; um homem seco de esperança pois “nunca deu o seu coração aos seus irmãos” e em vão divaga “por toda a cidade à procura da causa”, a esquizofrenia é alimentada pela “overdose”; “alicerces”; sobre o seu caixão “bandeira para sempre”; “ele morreu à procura da causa”; “morreu a manhã”; o Alexandre Valinho Gigas num falsete que encanta: “morreu cego, surdo e mudo”; impositivamente: “nós aqui somos a causa”. Os quintos convidados são os Subway Riders, a banda do ausente Augusto Subway, Victor Subway e de Calhau Subway liderados pelo mítico Carlos Subway, que tem o dom da palavra: porque “não nos convidam a nós para organizar um Primavera [Sound]?”; ainda por cima: “roubou-nos público!”. Depois do acidente de Johnny Luv & os Hate Killers, os Subway Riders confrontam-se com dois problemas: “não temos teclista” , e “nem baterista, mas temos a Paulinha [Nozzari]”, que enverga um vestido de princesa num conto de fada em que o palácio é um labirinto entre a fantasia e a realidade e assim surge Jackie la Feline pintada por Tim Burton. As canções que apresentam são de uma visceralidade sónica que versa por vezes a cacofonia, ao segundo tema surge Chau Subway que se coloca ao lado de Jackie la Feline a acompanhar o seu ritmo catártico, “AUAUUAUA”. Carlos Subway agradece à “grande Paulinha Nozzari” ou Jackie la Feline (que abandona o palco do Salão Brazil), anuncia que “é a primeira vez que o Chau [Subway] vai tocar sentado” na bateria “num concerto dos Subway Riders”. Antes da quinta canção chama ao palco “o grande Kazuza”; “vai buscar o teu micro”; e é ouvi-los a debitar uma canção rock and billy-- mas desconstruída-- com o Kazuza a vociferar indiscriminadamente a sua voz de vento de Inverno, enquanto investe sobre a multidão numa salutar demência. A sexta canção cita os acordes do clássico “Satisfaction” dos Rolling Stones, Kazuza entoa a letra numa perspectiva de uma criança fechada numa cave onde é violada pelo padre católico. Palmas. Carlos Subway discursa sobre as características únicas do Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo: “Trinta e cinco minutos para cada banda”, com “só um palco, não têm que se perder de palco em palco e não vêem as bandas” todas, algo que sucede no Primavera Sound. Os Subway Riders tocam a última canção que versa um rock psicadélico com direito a solo da bateria de Chau Subway. Por fim, uma dupla denominada de JAE Sessions, constituída por Paulo Travassos na bateria e por Zé Djalo na guitarra eléctrica, a relação que estabelecem tem duas vertentes centrais: a dinâmica e a melodia, neste composto percorrem diversos géneros musicais, mas uns resultam simples e consequentemente previsíveis, outros complexos e por vezes imprevisíveis, executado segundo critérios que deveriam estar diluídos nas suas composições e dessa forma encontrariam a emancipação.
A tarde está abrasiva na baixa de Coimbra, no palco do Salão Brazil encontra-se o infatigável Carlos Subway, que expressa o seu descontentamento para com o escasso público no Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo: “Ontem fomos roubados pelo pessoal do Primavera [Sound]”; mas uma estrela, que se estivesse no céu seria gigantesca, salvou a noite de ontem: “O Kazuza esteve em grande”. Anuncia o poeta/diseur: “Gigas e eu vou manipular o piano” de cauda, a toada que implementa é da música contemporânea, Alexandre Valinho Gigas toma a palavra, quem “inventou a civilização”? “Foste a resposta, o equilíbrio entre as duas”, o Ícaro pegou numa “pedra e matou-o”, assim “tinha inventado uma arma”. O primeiro convidado da tarde é o Drunk Dancer que tem uma t-shirt psicadélica, que apresenta um conjunto de canções que têm por base um groove dançante, as melodias que reproduz são cativantes mas têm três problemas: não têm uma estrutura definida algo que inscreve alguma monotonia, são melodicamente muito similares umas às outras e esta homogeneidade é de facto redundante; para além das vocalizações em inglês serem de tal forma desgarradas que não acrescentam qualidade Pop às canções. Segundo Carlos Subway: “foi o mítico Drunk Dancer” e “agora são “os Vaginas Convulsivas”; “antes de mais, anda para aí um boato que os Vaginas Convulsivas andam a roubar as músicas aos Subway Riders, é verdade”, faz eco da sua contínua ironia: “Os Subway Riders têm que roubar as músicas aos Vaginas Convulsivas”. Mas antes, é a vez de Alexandre Valinho Gigas: perturba-o “isto de facalhões e palavras”, assim como “o inominável”; e as “cores salientes”; “de todas as cores”; ah “isto da solidão acompanhada” é uma merda, “a ironia da história” advém da “impermeabilidade ao toque”. Icáro pretende alcançar “o sol dos dias da minha aventura”. Carlos Subway toma o seu lugar no centro do palco ao lado de Calhau Subway e Chau Subway, diz que a primeira música é um: “original que os Subway Riders nos roubaram”; é o espelho de todas as que irão tocar: uma excelente decomposição de géneros adjacentes ao rock e nessa medida fazem parte da new wave nova iorquina da década de setenta do século passado, devidamente representadas por letras absurdas. Entra em cena Alexandre Valinho Gigas: vamos “alucinar com o Rimbaud”: “a virgem doida”; “que vida”; “neste momento”; “delírios nem torturas”; “sofro grito” como um golfinho que vem à superfície respirar, “tudo é permitido”; e a frustração perante a chegada da velhice: “desperdicei corações”. A voz de Alexandre Valinho Gigas é a de um torturador a impedir a sua vítima de adormecer dia após dia, eu sou “aquele que perdeu as virgens doidas” numa madrugada de céu turbulento sobre um mar encapelado, fundem-se raios selvagens que acendem uma vela minúscula no horizonte encoberta pelas nuvens cinzentas. “Um pouco de ar” para que o corpo inconsciente se sinta vivo pela última vez, “misteriosas”, surge a voz de uma “querida” que é o representante do “demónio” que determina: “Anda cortar-me o pescoço”. Empunha a espada e reflecte sobre a mortalidade: “todas estas coisas por onde tens passado”; “olhos”; “anda para bem longe” onde “o mar está por inventar”; a declaração que ele é o Diabo em carne e osso: “sou de raça remota”, a voz ganha uma violência desmedida: “ferveram as costelas, bebi o próprio sangue”; “vereis que morri”? Carlos Subway constata: “Está calor!”; apresenta: “G.G Ramone do Porto”. O seu espectáculo tem por base canções pré-gravadas dos originais dos Ramones mas executadas por três dos seus membros, já que G.G Ramone mimetiza (ao vivo) na perfeição a guitarra eléctrica semi-distorcida de Johnny Ramone, numa análise racional parece uma proposta absurda, mas a sua postura séria e concentrada obriga a fixar o olhar sobre este homem com um boné azul com a inscrição N.Y a esconder a falta de cabelo, se não fosse a barba esbranquiçada julgaríamos que estaríamos perante um adolescente egocêntrico. Os três Ramones poderiam surgir consubstanciados em hologramas e estaríamos perante um espectáculo arrebatador. Se estivesse ao meu lado Andy Warhol diria que se poderia “equivaler a um ready made sonoro”, que estaria na disposição de filmar G.G Ramone na Factory e dessa forma “elevá-lo à obra de arte”. A poesia ouve-se da voz do incansável Alexandre Valinho Gigas: “vou ser apedrejado pelos mares”; “vou ser um asteróide”; “ó noite”; há vazio no “espaço”; “ligeiro e impalpável”; “majestática dignidade do silêncio”; “dos seres que se devoram”; inevitavelmente ocupado por “criaturas que rastejam” na noite, “ó noite”, “tudo constróis”; naturalmente: “em seu abandono”, com ondas de “sangue derramado sobre o mundo”; “ó noite”; “via láctea” que nos ensombra, “sombra”; “grande noite” denso arvoredo de almas a flutuar “outra vez”; “nunca houve noite”; “definitivamente aliás”. Carlos Subway sublinha que foi: “mais uma fantástica apresentação do Gigas!”, anuncia que os “Subway Riders decidiram ligar a um promotora e criar um festival”, que se supõe que será a segunda edição do Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo: “Para o ano há quatro dias de festival” com “bandas mais fora”; “pessoas amigas” e por fim remata: “Divirtam-se com os Mokes”; um quarteto composto por uma guitarra eléctrica, uma segunda guitarra e voz, baixo eléctrico e bateria. As canções que apresentam têm uma base predominante Pop, algumas das quais pecam por apresentarem soluções que redundam em clichés, mas o interessante é a distorção que contra balança positivamente e lhes oferece uma textura rock que controlam profissionalmente. Carlos Subway assume pela última vez o papel de representante do festival: “A última banda são os Carne Pa Canhão” para “o ano cá vos espero se não forem ao Primavera [Sound]!”. Os Carne Pa Canhão são um quarteto: guitarra e baixo, voz e bateria e as suas canções versam o punk, com uma dose de distorção elevada e as dinâmicas que implementam são vibrantes e deveras agressivas sem que resvalem na redundância. Os quatro músicos estão pintados e vestidos de guerreiros Apocalipse, usam um adereço que é uma caixa/TV atrás da qual canta o Comando, a sua voz deflagra em ordens diversas, a principal é que os alienados e os funcionais são todos: “Carne para canhão”.

Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo, 6 e 7 de Junho, Salão Brazil @ Coimbra

domingo, 7 de junho de 2015

Just Kids

O Parque da cidade do Porto acolhe a quarta edição do festival NOS Primavera Sound em que se inclui Patti Smith a musa de Robert Marplethorpe, testemunha ocular de uma Nova Iorque da década de 60 do século XX que fervilhava em criatividade e em luxuria. A poetisa americana surge da esquerda do palco acompanhada por quatro músicos: o homem da guitarra eléctrica de cabeleira comprida e esbranquiçada tal como a da Patti Smith, um outro ostenta o baixo eléctrico e outros dois que sentam-se respectivamente nos bancos do teclado e da bateria. O sol ilumina gloriosamente o palco e o vento expira a maresia de um mar que não se encontra encarapelado, Patti Smith coloca no seu rosto ossudo uns óculos escuros para se proteger da luminosidade primaveril; a banda prepara-se para dar início a “Gloria: In Excelsis Deo”, o primeiro tema do álbum “Horses” (1975) que vêm ao Porto apresentar na íntegra. Patti Smith cumprimenta alegremente a multidão: “Hello everybody!”; “olá!”. Sobre o piano lento de “Gloria: In Excelsis Deo”, Patti Smith canta como se estivesse a incendiar uma floresta de enganos: “Jesus died for somebody's sins but not mine”, o piano continua a impor a melodia amordaçada pela alegria, “They belong to me, me”, o compasso do bombo encaixa-se no piano e sublinha: “me”; “I walk in a room, you know I look so proud”; aparentemente Patti Smith não vê o seu reflexo no espelho do quarto de banho do Chelsea Hotel: “She looks so fine”; o ritmo acelera-se e a canção ganha densidade emocional, ferida aberta pela voz angustiante de Patti Smith: “Walking down the street”; “here she comes”; coro: “OOOO”. “She looks so fine”. Há um recrudescer do ritmo e consequentemente as cores rubras dos acordes de “Gloria: In Excelsis Deo” ganham um dramatismo Pop que é sublinhado pelo coro: “OOOO”, resposta da diva, “I'm gonna make her mine”, repete angustiantemente: “She told me her name”; “AIAIAI”. Patti Smith dança enquanto os músicos transcrevem a Pop para a transgressão Rock, antes do fim do verso: “And her name is, and her name is, and her name is, and her name is G-L-O-R-I-A”, o público grita libertariamente: “Glória”; e os dois cantos imiscuem-se livremente: “G-L-O-R-I-A”; público: “Gloria”; Patti Smith: “G-L-O-R-I-A”; coro: “Gloria”; Patti Smith: “G-L-O-R-I-A”. Patti Smith junta os braços ao seu tronco, que veste um blazer preto, a agradecer ao: “Porto”. Antes da segunda canção da tarde, "Redondo Beach", gera-se a primeira ovação da tarde; a toada espaçada do piano e da guitarra eléctrica revelam um ritmo reggae, o groove Pop é fornecido pela bateria acompanhado por um baixo eléctrico encorpado. “Late afternoon, dreaming hotel”; e sobre os acordes alegres canta: “I was looking for you, are you gone gone?”; o break da bateria não retira “Redondo Beach” do seu ritmo lento, “Well, you never returned, oh you know what I mean”; a bateria sublinha a Pop e a guitarra domina a toada reggae e sobre este composto dança a poesia de Patti Smith: “On Redondo Beach and everyone is so sad”. A guitarra eléctrica suporta melodicamente o verso entre da angustia relacionada com a rotina: “are you gone gone?”; “gone, gone”. “preaty litle girl”; “she was the victim of sweet suicide”. O ritmo Pop joga às escondidas com o reggae como se fossem duas máscaras sobrepostas que aparecem e desaparecem intercaladamente--- “you”, coro: “UUUU”; “I was looking for you”; e eventualmente: “Desk Clerk told me girl was washed up”, “are you gone, gone”?; coro: “UUUU”-- que oferece à canção um estado de espírito arrepiante; “Went to my room, started to cry”, “for you”, e sobre a melodia Pop reggae: “Gone gone, gone gone, good-bye”. Ouvem-se gritos e os braços ao alto da multidão que agradecem à cantora norte americana a bênção da sua presença alegre e comunicativa. Antes da terceira canção, Patti Smith mune-se de uma folha de papel branca onde consta a letra de “Birdland”; o piano insere umas notas corridas mas lentas, a sua voz canta/fala e narra: “His father died and left him a little farm in New England”; do piano surgem notas que são tocadas de forma decrescente/inversa aos tocados inicialmente criando um dramatismo pejado de suspense, “because when he looked up they started to slip”; o baixo, a guitarra eléctrica e com a anuência da bateria revelam uma consistência Pop mas mantém-se subjugados sentimentalmente à dor preguiçosa do piano, “because he was not human, he was not human”; num sponken word frio e dilacerante observa: “And then the little boy's face lit up with such naked joy”; insurge-se um crescendo que gradualmente transcreve na melodia Pop melancólica, “No, daddy, don't leave me here alone”, e o prog-rock é inscrito e dessa forma acrescenta uma agressividade que se imiscui inscientemente no consciente, “Pushing it all out like latex cartoon, am I all alone in this generation?”; uma perspectiva sobre a alienação que domina a população globalizada: “We'll just be dreaming of animation night and day”. “Birdland” continua dominada pelo rock com laivos incisivos de prog, “The son, the sign, the cross”, a canção ganha uma suavidade Pop que acompanha a repetição do termo: “up, up, up, up, up, up”, Patti Smith levanta o braço direito e com o indicador aponta para: “up”. Por fim, o quarteto de instrumentistas revelam um blues/lento mas estranho por ter origem na miscigenação entre a Pop e o Rock (prog), “And where there were eyes were just two white opals, two white opals”, coloca as mãos sobre os olhos como se desconhece-se a sua própria narrativa, “Up up up up up up”, o público acompanha a sua gestualidade e entoa a letra que é rap, “Sha da do wop, da shaman do way, sha da do wop, da shaman do way”, “birdland”. Em “Free Money” é inicialmente o piano que intervém lentamente como se estivesse a retirar pétalas de um girassol: “Every night before I go to sleep”; “Find a ticket, win a lottery”, a lullaby encantada é levemente imposta pelas notas doces do piano, após o canto de sereia acutilante sustenido: “Cash them in and buy you all the things you need”, a bateria com a sua cadência bombeada pelos bombos substitui as tonalidades doces e a espaços agrestes do piano e com conivência estilística do baixo e da guitarra eléctrica assumem tonalidades Pop/Rock: Pop porque incorporam dinamicamente os acordes do piano, Rock porque instituem uma agressividade melodia de salutar. “I know they're stolen, but I don't feel bad”. “Oh, baby, it would mean so much to me/ Oh, baby, to buy you all the things you need for free”. Em regime de spoken word Patti Smith refere: “I'll buy you a jet plane, baby”. “And we'll roll, dream, roll, dream, roll, roll, dream, dream”, o coro responde-lhe: “Dreaming”. É a guitarra numa frequência agressiva que domina o composto sónico: “Find a ticket, win a lottery”; o fluxo dominado pela guitarra eléctrica é de uma aspereza dilacerante, coro: “dreaming”. Patti Smith num timbre diáfano do qual desconhecemos o seu género sexual: “Let's dream it, we'll dream it for free, free money/Free money, free money, free money, Free money, free money, free money, free”-- canto de uma ideologia utopica inscrita numa poetica Rock and Roll. Ovação. A quinta canção “Kimberly”, consta segundo Patti Smith no “Side B” do álbum “Horses”; quem sobressai do quarteto de músicos é a bateria num ritmo dois por dois, mas é o piano e a guitarra quem desenham a melodia Pop com alguns laivos perenes de reggae, “the sky will split/And the planets will shift”, o break da bateria encaixa-se na melodia Pop-- “the sky is falling, I don't mind, I don't mind”, “OOOO”-- que é hiperbolizada pela guitarra eléctrica, “Oh baby, I remember when you were born/ It was dawn and the storm settled in my belly”; “And I lit a match and the void went flash”; “Balls of jade dropped and existence stopped, stopped, stop, stop”. A bateria executa novamente um break que apenas serve para incutir a “Kimberly” um repente que a faz baloiçar numa ténue represa Pop, “I was going crazy, so crazy I knew I could break through with you”, sublinhada pelo trinar eléctrico da guitarra eléctrica: “fire on a mental plane”; a represa liberta a contenção rítmica e o rock domina, “The palm trees fall into the sea”; “As long as you're safe, Kimberly”; “OOO”. Patti Smith dança e empunha o microfone para os seus lábios húmidos: “Kimberly”, “OOOO”. Quanto a “Break it Up” Patti Smith é taxativa: “This song was written in loving memory of Jim Morrison”. O piano assume uma cadência lenta, “Car stopped in a clearing”, a bateria introduz um ritmo dormente, “I saw the boy break out of his skin”. Coro: “Break it”; as harmonias da guitarra eléctrica enunciam uma primavera tingida de cores outonais, “Break it up, don't talk to me that way”, o seu solo agudo é descrito como se fosse um raio resultante da reunião de duas nuvens antagónicas, “I could hear the angel calling”; após a repetida intromissão da guitarra eléctrica sobre o baixo e a bateria que suportam o coro: “Break it up”, Patti Smith relata suavemente: “Break it up, oh, I want to feel you”. A tragédia surge aos nossos olhos secos de esperança: “The boy disappeared”, a guitarra eléctrica revela-se como se fosse uma alma incandescente a aceder a um céu que nunca se realizou em qualquer pôr-do-sol-- a cadência mantém-se funebremente Pop-- Patti Smith clama: “I cried, ´Take me please!`". Coro: “Breaking up”; a guitarra eléctrica realiza um solo épico que congrega uma dor tão excessiva quanto real. Palmas. A penúltima canção que consta em “Horses” é "Land: Horses / Land of a Thousand Dances / La Mer(de)". O primeiro momento é dominado pela guitarra eléctrica que discorre através de uma semi-distorção em delay: “The boy was in the hallway drinking a glass of tea/From the other end of the hallway a rhythm was generating”, “coming”. Patti discursa assertivamente que somos vítimas de “governments! Corporations!”; “Corruption in the world”, o público pronuncia-se em uníssono e responder-lhe como se Patti Smith fosse a líder de um partido constituído por activistas do Rock and Roll. A guitarra continua a dominar, mas num ritmo crispado, “Johnny”; “The boy disappeared, Johnny fell on his knees”, palmas, a solidão é-lhe delirante de tão doentia: “started crashing his head against the locker”. Quando Patti Smith canta, “horses”, há a marcação do bombo que é o alicerce a partir do qual o piano, guitarra e o baixo eléctrico descrevem um conjunto de acordes puramente rock e este é revertido para uma cadência mais lenta, violentada pela frequência agonizantemente da guitarra eléctrica (wah wah com delay), “Roll down on her back, got to lose control, got to lose control”, ovação, a canção ganha uma embriaguez imposta pela bicefalia Pop/Rock, “fucking games”; “Life is filled with holes, Johnny's laying there, his sperm coffin”; quando informa que Johnny está “dancing in Porto”, recebe um sonoro e pronunciado espanto, estupefactos por fazerem parte da narrativa trágica sobre Johnny. O piano reincide os acordes Pop de “Gloria: In Excelsis Deo”, a multidão delira e canta: “Gloria”. Patti Smith pronuncia-se tragicamente livre: “Jesus died for somebody's sins but not mine”, as palmas estalam como o chicote aplicado sobre o dorso branco de Jesus da Nazaré, o público delira, “glória”, hipnotizados por uma estranha beleza épica Pop, “G-l-or-i-a”. “G-l-o-r-i-a”, palmas e por fim uma violenta ovação: “Thank you!”. "Elegie" é a “last song from ´Horses`” e descreve-a como: “is a little song”, dedica-a: “in loving memory of Jimi Hendrix”; “and to all the people I love”, “to all of them”. O músico da bateria passa a ostentar uma guitarra eléctrica que se soma à pré-existente e ao baixo eléctrico. O piano introduz uma melodia de uma valsa tão suave quanto esotérica, com a pontuação de uma das guitarras que a sublinha delicadamente e o baixo confere-lhe um andamento longitudinal, a sua voz é um canto profundamente expressivo, “I just don't know what to do tonight”, as guitarras revelam-se poeticamente como se fossem violinos introvertidos. “There must be something I can dream tonight”; “All the fire is frozen yet still I have the will”, “UUUU”, uma das guitarras sobressai num crivo Blues mas sem redundar no cliché, Patti Smith em regime de spoken word: “Trumpets, violins”; “but I think it's sad, it's much too bad/That our friends can't be with us today”. Enumera diversas figuras míticas da cultura Rock and Roll: “Lou Reed”, palmas, “Joe Strummer”, palmas, “Sid Vicious”, palmas, “Fred Sonic Smith”, palmas; novamente lamenta: “That our friends can't be with us today”. Patti Smith e a sua banda dão por encerrado o capítulo das canções que compõe “Horses”. “Because the Night” é o primeiro bónus da tarde e tem um inicio dominado pelo piano, “Take me now baby here as I am”; “Desire is hunger is the fire I breathe”; a angustia melancólica trasveste-se de uma alegria Pop imposta pelo break da bateria com devida parcimónia dos restantes instrumentistas, “Come on now try and understand”; “Take my hand come undercover”; numa festividade Pop que encontra reflexo numa multidão enfeitiçada por Patti Smith, quando canta o refrão: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to lust/ Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”; coro: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”, deflagra uma histeria generalizada que a acompanha irrepreensivelmente; sobrevém o piano e o baixo resumindo pacientemente os seus acordes, “Love is a ring, the telefone”; “Here in our bed until the morning comes”. Patti Smith canta em unisso com o público: “The way I feel under your command”; o recrudescer do ritmo impregna-a de uma urgência inesperada: “feel”; “take my hands”; “Can't touch you now, can't touch you now”; empunha o microfone ao público: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”. Ovação. “People Have The Power” é dotada de uma melodia Pop com as guitarras eléctricas a revelarem-se rock, Patti Smith dança sobre a sua cadência alegre, “I was dreaming in my dreaming”, ganha uma progressão que mistura a pop com o rock, “And I awakened to the cry”, emancipam-se epicamente quando Patti Smith canta: “And the people have the power”, que é gritado em uníssono pela multidão; o baixo eléctrico ganha supremacia sobre os outros instrumentos que expectantes se secundarizam, “Vengeful aspects became suspect”, o baixo impõe-se como denominador comum imolando os acordes festivos, “And they laid among the stars”; “dust”, ouve-se o solo do baixo a acompanhado por palmas ritmicamente sintonizadas, “cry”. A banda redesenha a melodia pop/rock que extravasa com o refrão cantado pelo coro: “People have the power/People have the power”; “to dream”; a banda encara o público saltitante e encetam um contínuo assalto bíblico à democracia: “People have the power”. Patti Smith não poderia ser mais explícita: “Don`t forget it!”. A última ovação da tarde despede os quatro músicos, Patti Smith junta e ergue as mãos simbolicamente numa exortação de sincera e profunda gratitude.

“Horses”, Patti Smith and Band, NOS Primavera Sound Porto, 5 de Junho@ Porto

domingo, 24 de maio de 2015

Psycho

Noite tépida no Salão Brazil onde se encontram três bandas que fazem parte da festa de apresentação do festival Kamalhão que se realiza em Julho em S. Silvestre: The Jack Shits, PSICOTRONICS e os Gost Hunt. The Jack Shits estão a debitar a sua agressividade garage ao ritmo de Jackie la Feline que é a baterista mais ecléctica de Coimbra a Capital do Rock, a sua rapidez assertiva faz esquecer Nick Shit. “Olá boa noite, somos os Jack Shits”, é a voz do franzino de tronco nu Diogo Shit na guitarra semi-distorcida que aliada à de Samuel Shit, perfazem um composto tóxico de tão abrasivo; “Bem-vindos ao warm up do Kamalhão”. A canção nova que apresentam é uma união entre um vampiro e uma prostituta de apartamentos nos subúrbios de Coimbra onde se satisfazem inglórios pénis.
Os PSICOTRONICS são uma referência para moda a indie, atentem à roupa de Marquis de Cha Cha: no rosto tem uns óculos escuros redondos sobredimensionados para o seu rosto moreno surgindo um ser descrito por Kafka, na cabeça uma cartola digna de um finalista ébrio nas noites da Queima das Fitas de Coimbra, enverga uma jaqueta de smoking que cai até aos joelhos nus em pernas depiladas, a pélvis é coberta por um body de cetim vermelho, é este o clown indie criado para afastar os maus espíritas. A relação entre as programações, a guitarra eléctrica de Victor Torpedo, a voz do Marquis de Cha Cha e o baixo de Pedro Calhau, sobrevém um groove por vezes tecno outras psico-tecno ou psico-rock-tecno, que exalam uma alegria contagiante que convida o parceiro ou a parceira a dançar sem preconceitos.
Por fim os Ghost Hunt-- dupla constituída por Pedro Chau e Pedro Oliveira este último está rodeado por teclados analógicos e o segundo toca baixo eléctrico-- que se apresentam pela segunda vez ao público. O domínio estilístico pertence aos teclados que inserem diversas camadas de som tecnológico que circularmente dominam a consciência do ouvinte, e que sub-repticiamente é profundamente alucinogénio e obviamente psicadélico; quando Pedro Oliveira adiciona a guitarra eléctrica aguda, substituiria facilmente os violinos de Bernard Herrman na cena do chuveiro em “Psycho” de Alfred Hitchcock. Perante este vulcão sónico não é de estranhar que o palco tenha sido invadido por diversos rockers que dançaram e entoaram cantares de amigo. Se se cruzarem com os Ghost Hunt não se dêem ao trabalho de colocar a alma no seguro, porque essa ficará definitivamente confiscada à realidade.

Warm up do Festival kamalhão com The Jack Shits, PSICOTRONICS, Ghost Hunt, 23 de Maio, Salão Brazil @ Coimbra

domingo, 17 de maio de 2015

Death of a Salesmen

A discoteca States em Coimbra tem como cartaz da noite: “Victor Torpedo” e o seu espectáculo “Karaoke”, que celebra a edição do duplo “Raw”, primeiro trabalho a solo de Victor Torpedo. O músico de Coimbra passeia-se entre os presentes como se fosse mais um conviva, para quem tem no currículo bandas como os Parkinsons ou Tiguana Bibles seria perfeitamente normal que estivesse no camarim a concentrar-se para enfrentar o palco, isto revela uma atitude profundamente punk. Victor Torpedo vai “tocar” dezasseis canções, o “tocar” não é ingénuo pois na verdade as canções serão debitadas de um computador directamente para as colunas da States. O primeiro tema é um instrumental denominado “Congo”, corresponde a uma melodia exótica vinda de África, “stereo”, enquanto Victor Torpedo dança fora do palco. “So dead” abre a porta a uma melodia que advém da cidade de Manchester mas quando na década de noventa foi invadida pelos Stone Roses ou Happy Mondays. A Pop com contornos clássicos melancólicos são devidamente delineados em “Ways to Go”, que encontra Victor Torpedo a cirandar pelo público a cantar: “Sick of myself”; senta-se no palco: “I`m sick of the world”. Antes da quarta canção “About Life”, Victor Torpedo faz a declaração da noite sobre um dos seus heróis de infância: “O B.B King morreu e eu não posso fazer nada”. O que emitem as colunas é uma canção Pop que é preponderantemente low fi, isto oferece-lhe um carácter efectivamente kitcth, os versos versam “pictures of you”; no ecrã passeiam-se descapotáveis em L.A, “you can dream”, ouve-se o feedback do microfone, este som é provocado pela agressão do Victor Torpedo, “like you and me”, retira do bolso do casaco um pente e penteia a poupa Elvis Presley. Antes de “By Me”, Victor Torpedo revela algum desconforto: “Daniel isto está estranho; tá tudo bem por aí?”; o baixo eléctrico é de uma relevância constante, doseado numa frequência próxima à dos Joy Division, no ecrã surge uma manifestação gay com as suas bandeiras coloridas. Victor Torpedo canta: “They are calling for us”; “tonight”; “ride”, finaliza a canção fixando-se no palco como uma estátua que se sente tolhida pela realidade. A sexta canção é “Control”, remete melodicamente para a Pop em que as guitarras dengosas ressoam sobre o baixo grave e assertivo, uma celebração negra que instaura gradualmente uma alegria insuspeita, “take me to a place that I know”; no ecrã surge um rapaz tímido e solitário, “you control me”; “show”; “you control me”. Victor Torpedo agride o microfone que projecta um estardalhaço. O psicadelismo Pop domina “Confessions”, disso são exemplo as guitarras progressivas sobre um ritmo repetitivo, “cry”, algo que obriga à dança, “I`m sick of the world”; “life of lust”. Sobre o seu currículo de galã rockabilly Victor Torpedo é assertivo: “Nos anos oitenta eu e o Pedro papávamos tudo; era diferente nos anos oitenta!”. Na oitava canção “Out of Fasion”, o ritmo dançável mistura-se com um baixo corpulento, “or take your style”, Victor Torpedo encontra-se no meio do público a incitá-lo para que cante, há uma jovem que arrisca: “Fohografa”; Victor Torpedo: “Their`s time”. A nona canção “Beautiful Violence” é dominada por guitarras semi-distorcidas mas remetidas para uma produção low fi: “I`m never alone”; “sad”; “you and me”; “scream”; “love and hate”. A décima canção da madrugada é “I Agree”, que prolonga a vertente low fi decadente da anterior, com as guitarras a pronunciarem-se na vertente Pop.“Only Ghosts” tem um groove repetitivo que se instala em loop. “Meet my Tribe” é alicerçada num beat africano, “tribe”, que tem uma progressão Talking Head, “meet my tribe”; Victor Torpedo encontra-se próximo de uma jovem empunha-lhe o microfone e esta uiva: “AAAAA”. Antes da décima terceira canção “Oh ah Yoush”, Victor Torpedo questiona o público: “Querem mais? Eu toco mais quatro ou cinco, estou-me a cagar!”. A melodia Pop é imposta pelas guitarras eléctricas que se impõem como denominador comum e sobre as quais Victor Torpedo repete: “Oh ah youh”, num dueto absurdo divide o microfone com uma loura que enverga um vestido negro que não lhe encobre o colo bronzeado. Victor Torpedo faz vibrar o público com a sua determinação: “Tenho que cantar mais cinco!”. “Common” é dominada por um twist kitsch, Victor Torpedo empunha o microfone a Carlos Subway que grita: “AUIUI”. Victor Torpedo coloca o micro na boca e exercita o corpo através de flexões ao ritmo do twist, o dueto improvável mantém as suas coordenadas no grito latino: “UUU”; Victor Torpedo: “Common”; Carlos Subway: “AIAU”. Victor Torpedo repentinamente despe a camisa, “uuu”, atira-se novamente ao chão para completar as flexões; Carlos Subway: “AIAI”. Victor Torpedo em pé coloca o microfone sobre o coração como se estivesse perante um pelotão de fuzilamento. Antes da penúltima canção “Dawn of the Day”, Victor Torpedo veste o blazer escuro sobre o tronco nu, a Pop é orientada pelo baixo eléctrico a partir do qual flui a melodia low fi, no ecrã surgem militares a marchar, a bandeira dos Estados Unidos dança ao sabor do vento quente. “Bring your poison”. Por fim Victor Torpedo comunica: “Toco mais quatro?”; dedica, “Il est dejá Trop Tard” ao “B.B King que morreu hoje”. Composta por um ritmo dançável a partir do qual emerge o blues com origem nas alucinações de Tom Waits. Victor Torpedo de tronco nu: “Il est dejá trop tard”, é correspondido pela loura de decote que o perseguiu durante a apresentação de “Raw” na States. Victor Torpedo é taxativo quanto aos seus intentos de incansável crooner: “Vou tocar mais quatro, e vocês vão para o caralho!”. Repete: “So dead”. E finalmente assume: “Não sei se está é a última” e “queria dedicar esta canção ao Pedro Antunes e ao Chau e ao Carlos Dias [Subway]”.

Victor Torpedo, “Raw”, 15 de Maio, States @ Coimbra

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Englar alheimsins

Está calor no interior da discoteca Beat Club em Leiria que pontualmente convoca para o seu palco bandas diversas, esta noite tem como convidados os Jack Shits e os Parkinsons. Os primeiros encontram-se a debitar “Toni Lee” que tem uma melodia rock-mecânica-repetitiva suficientemente violenta para alastrar como se fosse lava expungida por um vulcão adormecido desde o paleolítico. Diogo Shit grita para o microfone a mudez da natureza que é aniquilada pelo manto incandescente negro e vermelho; o mecanismo assenta na distorção das guitarras associadas à violência dos pratos de Nick Shit e que dada a sua minimalidade é uma substância subliminarmente tóxica por extorquir a raiva contida em corpos frustrados com a vida-- ecoam as palmas do público que lota o Beat Club. “Bring it Home” tem como premissa as guitarras a deflagrarem acordes profusamente garage, o rock advém da bateria de Nick Shit, “I don`t know”, os Jack Shits aceleram o ritmo e após a pausa, Diogo Shit grita para o microfone: “AAAUUU”. Pausa. “Bring our love”, a detonação é contínua “AAAUUU”, e depois do solo da guitarra de um dos músicos há uma progressão com raízes num bullyng garage imposto a um idoso surdo. Palmas. Os Jack Shits apresentam-se: “Olá, boa noite! Somos os Parkinsons!”. “I Don't Want To Be Real” é de um curto espaçado com as guitarras eléctricas semi-distorcidas a ramificarem-se como espinhas num rosto de um adolescente vítima da mãe natureza, sobe ao palco um homem magro com uma cabeleira loura atraído pelos troncos nus dos Jack Shits, mas não perturba a dor na voz agressiva de Diogo Shit: “I don`t want to be real”, “real”. O bombo outonal de Nick Shit é crispado por um solo violento de umas das guitarras électricas semi-distorcidas, a loura e o Diogo Shit dividem o microfone como se este fosse um desejo Pop, há um suspense rítmico que lhe oferece uma expectativa inusitada, a loura beberica uma bebida branca, e as guitarras revelam-se num repuxo provocado pela respiração de uma orca assassina. Na quarta canção “Godmamn” impõem-se as guitarras eléctricas semi-distorcidas, uma das quais representa um solo violento e quando são injectadas pela detonação da bateria de Nick Shit a explosão projecta estilhaços para o olhar dos presentes, Diogo Shit berra: “to see”. Pausa. Os Jack Shits abandonam dinamicamente a frequência acelerada para se alicerçarem num rock crispado, “got the”, a melodia é confiada a uma dinamitação de minas pisadas por militares africanos e que corou o estropio como memória da guerra nas ex-colónias. Em “Sex Beat” dominam as guitarras em regime de semi-distorção com a bateria de Nick Shit a compensar com uma vertente contida e continua, “move”, pausa; um homem sobe ao palco e dança ao lado de Diogo Shit, entusiasmado por reconhecer a quinta canção como pertencente aos Gun Club, “move”, canta enquanto dança: “Sex beat”. A sexta canção “Wanna Make You My Baby” é iniciada por um feedback de uma das guitarras, que instauram uma frequência agreste como se fosse uma ventania promovida por arame farpado a cravarem as suas garras em bonzais que meditam sobre o sentido da vida, a bateria de Nick Shit é uma cúmplice providencial que determina o saque às mentes alienadas, Diogo Shit grita: “I” (grito), há um ritmo sustenido na massa das guitarras semi-distorcidas rejeitada pelos irmãos Shit, e perante o aceleramento rítmico, “I” (grito), há um solo angular que a penetra para jamais erradicar a maldade. A antepenúltima canção da noite é “You Don't Learn”, conjugam-se alternadamente as guitarras semi-distorcidas de Diogo Shit e de Samuel Shit com a distinção hiperbolizada da bateria de Nick Shit, pausa, os Jack Shits visceralmente reflectem-se num torpor criminoso; o bombo é um ponto de onde discorrem as guitarras, “just like” (grito); o trio ilumina um rastilho de um fogo preso acendido por um guru esquizofrénico. Às palmas, Diogo Shit apresenta novamente os Jack Shits: “Nós somos os Parkinsons”; “eu sou o Chau”, chama por “Kazuza”, figura incontornável da noite de Coimbra; ouve-se o bombo que marca o início de “Let`s Go”, “Kazuza prepara-te que entras a seguir!”, a premissa da canção deriva para um encadeamento intercalado entre as guitarras de Diogo Shit e Samuel Shit com um ritmo sincopado (Pop) desferido por Nick Shit, “AUAUAU” (grito), sobre o qual há uma interferência egocêntrica de uma das guitarras num solo angular semi-distorcido; o público rodeia o cantor de tronco nu franzino e gera-se uma apoteose, entre os quais se encontra o Kazuza que foi esculpido por Botero num dia em que a inspiração o agraciou para a inalcançável perfeição. Alguém canta para o microfone: “Au baby”; “yesterday”; os Jack Shits relegam-na para um fim épico, não sem antes citarem os Bon Jovi: “You give love a bad name”. Para “Gloria” da autoria de Patti Smith, Diogo Shit chama educadamente por “Victor [Torpedo] anda cá caralho!”, quando o Rei do Rock de Coimbra comparece enverga uma guitarra eléctrica, e é apresentado devidamente pelo cantor de tronco nu: “Victor Torpedo dos Parkinsons”, finalmente apresenta a banda que lidera: “Nós somos os Jack Shits”. As duas guitarras inserem os acordes Pop mas numa vertente de corrosividade suprema ao rasgarem via distorção a sua beleza melódica, “III”, o coro é de Pedro Chau: “Gloria”, a rapidez que encetam impõe a extrema decomposição dos acordes que simbolicamente a representam. Pedro Chau: “Gloria”; Diogo Shit: “AAA” (grito), a marca de água de Victor Torpedo corresponde ao dedilhar da guitarra como se esta fosse um músculo do qual exprime o blues, “allright”, “I”, Pedro Chau: “Gloria”; solo de Victor Torpedo. O ritmo decresce e agrega-se à Pop, os corpos dos músicos estão suados, Diogo Shit: “Gloria”, público: “Gloria”; Diogo Shit: “Gloria”, público: “Gloria”. Diogo Shit: “Gloria”, Pedro Chau: “Gloria”; Diogo Shit: “Gloria”, Pedro Chau: “Gloria”. Ovação.
Os Parkinsons são recebidos com uma loucura contida e sem que lhes dê tempo para explodir o quarteto de Coimbra, que foi a primeira banda portuguesa a tocar no festival de Glastonbury, acende o rastilho de “Primitive” que tem uma vibração apoiada na guitarra eléctrica de Victor Torpedo e no ritmo acelerado imposto por Paula Nozzari, “I want to wake up”, o composto químico é proporcionado por um punk incisivo e a agressividade oral é assertiva, “long way to get me”, “race”, pausa, Victor Torpedo dedilha a sua guitarra eléctrica como se fosse uma harpa de cordas escaldantes, consentaneamente alicerçada na métrica de Paula Nozzari e pelo baixo eléctrico de Pedro Chau, há angustia no canto de Afonso Pinto: “I want to wake up!”. A segunda canção “Too Many Shut Ups” é perentoriamente mais acelerada que a anterior, e em termos melódicos é um estilhaço que dilacera os órgãos sumariamente e é compulsivamente dedicada a despertar os alienados da sua constante contemplação das sombras da alma. Victor Torpedo enquanto rejeita um solo épico atira-se da coluna para o fosso junto ao público, um demónio que apenas tem como objectivo personificar um guitarrista em transe por entre uma floresta de troncos nus tatuados. A parceria de Paula Nozzari e de Pedro Chau é uma barreira intransponível de fogo onde é incinerado um xamã, “I”, enquanto o solo da guitarra de Victor Torpedo se faz e desfaz num torpor inconcebível o microfone de Afonso Pinto é apontado para as bocas dos presentes que vociferam. Palmas. Afonso Pinto toma a palavra: “Obrigado! Somos os Parkinsons”, ironicamente corrige: “Somos os Jack Shits”, “muito obrigado aos Jack Shits! Muito obrigado ao Carlos Matos por arriscar trazer-nos aqui”. “Angel in the Dark” tem um dois por dois imposto por Paula Nozari mas é tão acelerado que parece exorcizado por uma máquina de costura que perfura os tímpanos com o apoio da sobriedade inevitavelmente estranha do baixo de Pedro Chau; e se Victor Torpedo enquanto sola não estivesse a investir dramaticamente sobre o público, não estaríamos perante o maior guitarrista da Península Ibérica, que transforma cada riff num punhado de ácidos ávidos por corromper o sol. Afonso Pinto grita: “reality”. A quarta canção “Body and Soul” é de uma reverb grotesca de tão suicidária, ou um complexo de barbitúricos num copo de cocktail manuseado por dedos finos de unhas pintadas de vermelho. “My life”; “many”; salpicada pelos solos dementes de Victor Torpedo, “in my heart”, o bombo revela-se num pulsar activo, a voz de Afonso Pinto é o rasgar dilacerante prolongado pelo solo electrocutado da guitarra eléctrica de Victor Torpedo, “it`s just body and soul, a variação para um meio tempo exonera-lhe a vertente punk e insere-a num falso Pop-- e se a isto juntarem a inoperância de Victor Torpedo que vê a sua guitarra perder uma corda, socorre-se de uma outra mas o jack não coincide com a reentrância da guitarra, pede ajuda e surge o Samuel Shit mas que não consegue resolver o problema— e quem sobressai é o baixo de Pedro Chau com a devida complacência da bateria de Paula Nozzari, Afonso Pinto continua a cantar: “Common baby you have nothing o loose”, “my baby”. A nova guitarra de Victor Torpedo faz-se ouvir através de uma cadência rock, ressoa o baixo de Pedro Chau, “my baby”; Victor Torpedo ocupa o espaço vago através de um solo discreto, “where`s my baby?”; “right next to me”; “where is my lady?”, um espectador divide o microfone com Afonso Pinto: “UUU”. Segundo Afonso Pinto a “Body and Soul” resultou numa “versão acústica.” A quinta canção “Nothing to Lose” é apresentada por Afonso Pinto da seguinte forma “esta é nova!”. Dotada de uma demência melódica em que impera a guitarra eléctrica semi-distorcida de Victor Torpedo e voz é um rasgo na pele de um mamífero indefeso, “Can go”, “in the back seat” , a distorção e rapidez rítmica consolidam um punk com uma coerência assassina. “Streets of London” tem um domínio rock mas a progressão atenua a sua agressividade, “paradise”, “away”, coro: “away”, “common”, um espectador sobe ao palco e automaticamente atira-se sobre a multidão e Victor Torpedo movimenta-se na linha da frente como se estivesse a digladiar-se com dragões alados, “Rock and Roll”, “away”, nunca a violência foi de tal forma vilipendiada. Victor Torpedo é poeticamente perentório: “Os Jack Shits foderam o material todo! Partiram-me as duas cordas!”. Os Parkinsons iniciam “New Nave” que é sodomizada pelo riff vibrante, milimetricamente ora ascendente ou descendente, da guitarra eléctrica semi-distorcida de Victor Torpedo. Afonso Pinto tem um timbre de rebelde sem causas e como tal um delinquente expulso de um orfanato com adolescentes drogados, “station”, “I can`t see you”, o desferir dos pratos da incansável Paula Nozzari coincidem com as notas curtas da guitarra de Victor Torpedo e a sua constante repetição injectam-lhe doses impuras do mais sublime punk. Antes de “Runing” Afonso Pinto de tronco nu e com a tatuagem de uma ave ao peito da qual gotejam bombas nazis faz a seguinte declaração: “Deixem-me apresentar a nossa nova baterista, que faz muita inveja a muito homem, é a Paula” Nozzari ou Jackie la Feline quando destrói uma bateria. A relação que se estabelece entre os Parkinsons tem como centro o ritmo dois por dois da bateria e o baixo eléctrico de Pedro Chau é assertivo e quem instala a melodia é a guitarra de Victor Torpedo. O acelerar do ritmo retira-a da melancolia e instala-a num divã em que o psicanalisado consumiu cocaína, “1-2-3-4”, o crescendo impõe a visceralidade ou a alucinação de um pedrado, “never”, instala-se o caos no público que se revê no Rock and Roll travestido de punk. Após “Runing” Afonso Pinto encarna o político com uma medida contra a natalidade: “Somos filhos de putas!”, censura-se: “ Não há necessidade!”, contorce sensualmente o tronco nu como se estivesse a demandar por clemência ao público pela violação dos valores da Igreja Católica. A oitava canção da noite é “Wee Hours”, o bombo e o break da bateria de Jackie la Feline irrompem num crescendo, “you are happy?”, quando se estabelece numa rapidez sufocante é perseguida pela deflagrante guitarra eléctrica de Victor Torpedo, que se atira sobre o público para o intimidar, “rocking”, os breaks de Jackie la Feline promovem uma festa onde dançam esqueletos a snifar as cinzas dos humanos, a condensação da melodia é fixada no punk. Afonso Pinto declara: “A próxima música é dedicada a mim mesmo”, haverá algo mais punk do que o egocentrismo? “Litle Toys” dominada pelo riff de Victor Torpedo, “just rock and roll”, a eloquência siamesa entre a bateria de Jackie la Feline e o baixo elétcrico de Pedro Chau são uma rede que erige uma sustentabilidade insuspeita, solo minimal da guitarra eléctrica semi-distorcida de Victor Torpedo, progridem dramaticamente para o fim. A décima primeira canção “Girl From Another” é um carburante curto mas agressivo dada a violência contida com que Jackie la Feline desfere sobre o bombo, a simetria melódica é imposta pelo baixo de Pedro Chau a impor uma melancolia inesperada, pausa, “walk away”-- sobe ao palco um tipo louro que tenta dividir o canto com o indescritível Afonso Pinto-- pausa, o groove punk instala-se e faz dançar Kazuza a exibir a sua barriga prominente que parece um covil onde pernoitam filhos do Conde Drácula, “for you”, ao qual se deve adicionar um solo épico da guitarra eléctrica semi-distorcida de Victor Torpedo. Palmas. Afonso Pinto agradece a “Kazuza! És o maior! E obrigado a todos! Kazuza onde estás?”. “Good Reality” é apresentada através de um convívio saturante entre a Pop e o punk, “I`m dead”, “reality”, “in this wasteland”, “people are people”, “the reality”, os Parkinsons expulsam a Pop e instauram a violência à punk, “in this wasteland”. Kazuza há muito que se encontra a dançar e a cantar para um microfone desligado, os seus suspensórios balançam perigosamente, enquanto Afonso Pinto contorce o tronco como uma cobra camaleónica. O público entoa em coro: “Kazuza! Kazuza! Kazuza!”, que não abandona o palco enquanto os Parkinsons executam “Bad Girl”, despe o polo claro e exibe o seu peito ligeiramente invadido por um capim selvagem; o ritmo é dois por dois continuo revelando-se uma força Pop, os pratos marcam o canto potente de Afonso Pinto: “She`s a bad girl”, o cantor é raptado por membros do público e transportam-no como se fosse um andor com a Nossa Senhora banhada a ouro, Afonso Pinto tenta cantar mas ri perante a sua incapacidade, a guitarra semi-distorcida de Victor Torpedo é de um âmbito mecânico punk and billy, sobre a sofreguidão contida de Jackie la Feline e de Pedro Chau, “She`s a bad girl! She`s a bad girl”. “One-two-three-four”. A penúltima canção “City of Nothing” tem um ritmo acelerado que é o detonador de um extintor que ejecta o pó branco sobre a multidão que o inspira, a inefável guitarra eléctrica semi-distorcida de Victor Torpedo percorre a escala transigentemente, “where did”, há uma contenção rítmica imposta pelo baixo sóbrio de Pedro Chau, “When I give up?”, o aceleramento rítmico repele-a para um campo de concentração onde é utilizada para torturar membros do Estado Islâmico, “I walk through the door”… Por fim, “So Lonely” antecedida pela dedicatória de Afonso Pinto: “Esta é a última e é dedicada ao homem da noite, uma salva de palmas para o Carlos Matos, que nos vai enforcar não tarda nada!”. A interacção entre a guitarra eléctrica de Victor Torpedo e os breaks na bateria de Jackie la Feline é intensa, “world”, mas quando surge o refrão: “I`m so lonely, I`m so happy now”, os Parkinsons revelam-se melodicamente através de uma alegria que clama paradoxalmente pela solidão como seu último reduto, se é punk ou Pop ou rock ou apenas e só um hino para os que encontram o seu reflexo no fim do futuro.

The Jack Shits + The Parkinsons, 2 de Maio, Beat Club @ Leiria