segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

The Wind from Nowhere

O centro do Salão Brazil encontra-se ocupado pelo backeline dos peixe: avião composto: por teclados, guitarras eléctricas, baixo e bateria, rodeados por lâmpadas fluorescentes. As luzes do sala apagam-se enquanto das colunas ouve-se um motor de um objecto voador não tripulado a aterrar, as lâmpadas fluorescentes acendem-se e projectam uma luz vermelha; surgem cinco figuras: José Figueiredo (baixo eléctrico e teclados); Luís Fernandes (guitarra e teclados); Rolando Fonseca (voz e teclado); André Covas (guitarra e teclados); Pedro Oliveira (bateria). “Fénix” é o ponto de partida para um concerto em que os peixe: avião apresentam canções estruturadas em sintetizadores que projectam texturas que convocam um universo austero que se propaga numa geometria abstracta, que aparentemente se sobrepõem ou se conjugam paradoxalmente, quando associam as duas guitarras e baixo devidamente processados constroem um jogo que emana uma violência contida que em vez de atrair o ouvinte o rejeita, e nem a voz é utilizada de forma convencional sendo um canto etéreo que narra um vazio inexpugnável. Sendo assim é errado denomina-las de canções talvez uma suite que desdenha a pop, pois reproduzem domínios em que não existe um princípio, meio ou fim ou tão pouco qualquer refrão, assim cativam um universo visceralmente fascista porque discriminam a natureza humana e consequentemente valorizam as máquinas (computadores) como centro de uma sociedade em que dominam os robots que segregam e hostilizam os humanos. Pode-se associar peixe: avião a um futurismo sci-fi mas para tal é obrigatória a leitura de clássicos da literatura como por exemplo: “The Wind from Nowhere” (1961) de J. G. Ballard; ou, o visionamento de “2001: A Space Odyssey” (1968) do Stanley Kubrik e a audição de “Low” (1977), "Heroes" (1977) e “Lodger” (1979) do David Bowie, para que as “canções” façam sentido ao ouvinte e que este possa apoiar-se nestas referências para suportar a experiência sónica moldada para irradiar um quadro que é por natureza opaco; e eventualmente perspectivar uma profecia que nunca se irá cumprir, como se a narrativa dos peixe: avião fosse constituída por normas utópicas que recriam uma atmosfera em que o ar é substituído por uma substancia tóxica que metamorfoseia os corpos e por essa via a sua consciência. O círculo que os peixe: avião ocupam é iluminado por uma luz vermelha representativa de um núcleo, que tal como olho do furacão irradia para o exterior numa onda informe, e que tem a pretensão de incutir uma experiência a nómadas que almejam conquistar o espaço sideral, há que ter coragem e saltar para o vácuo para comungar com um sepulcro tão sedutor quanto mortífero. “Peso Morto” é a penúltima “canção” que propõe ao ser humano abandonar o seu corpo sem que lhe seja necessário recorrer aos sonhos ou aos pesadelos ou às drogas, a sua virtualidade é o único garante de uma satisfação imagética, mas que simultaneamente lhes obliteram os sentidos e os vergam perante a sua mortalidade. Esta lava sonora que circula num sentido que não tem a lógica do tempo real, associa-se a uma esfera que é o ponto de partida para libertação da consciência a favor de algo desconhecido, e que para uns representa um passo no desconhecido para outros uma viagem aos confins de uma caverna hight tech que simboliza a separação do indivíduo da sociedade consignando-mo a uma solidão que lhe alimenta o ego e o satisfaz. “Prismas” é um jogo que texturas que matematicamente se encaixam e gradualmente formam uma fortaleza sonora sobre a qual é vertido um óleo fervente que se instala e que gradualmente anula quem esteja em seu redor, e nesse instante os cinco músicos transformam-se em chamas que se condensam em figuras de seres vivos que se projectam num cosmos que virtualmente é concebível à razão.

“Fénix Tour”, peixe: avião, 09 de Dezembro @ Salão Brazil



segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Ficar na Cama e Outros Ensaios

Aveiro parece uma cidade sitiada por uma tempestade que lhe oblitera a sua beleza, nas ruas as pessoas abrigam-se nas paragens de autocarro e a polícia orienta o trânsito para longe dos canais; desligo o auto-rádio que emite cançonetas inócuas que são as mesmas de estação em estação; e milagrosamente estou parado à porta do GrETUA (Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro), que tem uma tenda branca arábica que dá acesso a um bar com sofá e a um Dj. com um capacete que lhe tapa a cara como uma máscara futurista. Na sala Caixa encontra-se o dueto Motel 808 composto por Raul Mendiratta nos sintetizadores e Tiago Cardoso na bateria, a lógica que instituem é devedora da música electrónica-- em que os sintetizadores predominam e a bateria complementa-a dando-lhe uma textura mais orgânica--; as canções cumprem as regras instituídas a meio da década de noventa do século passado no Reino Unido e são de tal forma vinculativas que não há nada de relevante para descrever. No palco do bar estão a tocar os Sax on the Road que correspondem ao Torré (saxofone), ao António Pinto (trompete) e ao Jorge Nunes (percussões). As canções que apresentam revelam-se deveras interessantes, seja pelo uso dos metais que é variável de tema para tema, seja pela precursão variada (ferrinhos, xilofones, tamboretes), que procuram enquadrar nos samplers que em loop criam diversos universos sonoros. A viagem sónica percorre diversas geografias, mas concentrada na Europa e em África; talvez as mais pungentes sejam as que transpõe samplers das recolhas do Michel Giacometti, e as que evocam as bandas de metais que saem às ruas em Espanha durante a semana santa a acompanharem os andores. No meio da sala Caixa está instalado um palco sobre o qual se encontra uma jovem que tem à sua frente um computador e uns pratos-- isto do que é perceptível para quem está sentado no escuro a observá-la. Eosin apresenta uma suite de inigualável equilíbrio tendo por base a música concreta: seja o canto de uma tribo africana; sons abstractos; etéreos; os sons da natureza e de instrumentos acústicos; o órgão de igreja; motor de um avião, etc.); numa lógica repetitiva em que um destes elementos é o ponto de fuga à abstracção, mas estas premissas encontram-se meramente segmentadas, ou, em oposição como sucede por exemplo na relação: vozes africanas versus som digital (o primitivo versus o contemporâneo). Eosin assemelha-se a uma ditadora que se limita a enumerar diferentes e diversos universos sonoros, mas a forma é puramente académica, ignora-- talvez por preconceito ou por inoperância-- que ao misturar os distintos elementos poderia criar um quadro abstracto. No palco Caixa encontram-se os Ghost Hunt: Pedro Oliveira (sintetizadores, guitarra eléctrica) e Pedro Chau (baixo eléctrico e voz). As suas canções têm por princípio a música electrónica, que desenvolvem fluxos que se repercutem repetitivamente, ou, sobrepõem-se gradualmente como se fossem anémonas a libertar electricidade no fundo de um aquário; instituem um psicadelismo synth modelado em elipses antagónicas que criam um circuito sonoro que induz a uma paz tóxica. O palco do bar é tomado pelos PSICOTRONICS compostos por Pedro Antunes (guitarra e baixo eléctrico); Victor Torpedo (guitarra eléctrica) e o Marquis de Cha Cha (voz). As suas canções têm uma estrutura synth kitsch (os loops têm origem num computador), onde a guitarra eléctrica de Victor Torpedo inscreve riffs que as tornam épicas. Os três apresentam uma performance absurda pois ignoram o palco e misturam-se com o público que preenche a sala exígua; a voz do Marquis Cha Cha é a de um crooner demoníaco que contrasta com a sua lingerie preta, boina e óculos redondos castanhos.

Aveiroshima2027, 03 de Dezembro, GrETUA

sábado, 26 de novembro de 2016

Born to Run

As luzes vermelhas sobre o palco do Salão Brazil incidem em três pontos: no centro encontra-se um kit de bateria atrás do qual se posiciona em pé o Carlos Mendes; à esquerda consta Sérgio Cardoso com um baixo eléctrico e no lado oposto a guitarra eléctrica do Samuel Silva, atrás dos quais se encontra uma tela negra com a inscrição: The Twist Connection. A primeira canção da noite denomina-se, “Cruising for a Bad Time”, e tem um ritmo rock mas com uma métrica repetitiva rápida e incisiva que é distorcida pelo baixo eléctrico do Sérgio Cardoso; Carlos Mendes canta: “Alone”; sobre os quais a guitarra eléctrica do Samuel Silva sola minimalmente; instauram um ritmo mais acelerado, “don`t you kown”; finalizam-na num repetente tão violento quanto ensurdecedor. Na seguinte, “Sweet Stranger”, Carlos Mendes introduz um ritmo que gradualmente se torna mais agressivo; que encontra nos solos angulares do Samuel Silva uma angústia dilacerante, “time”, que se prolongam minimalmente e a bateria Carlos Mendes e o baixo eléctrico do Sérgio Cardoso mantêm-se omnipresentes, “auau”, que se comprometem com um rock and roll hipnotizante; “behind”; “shadow”; e durante os breaks da bateria do Carlos Mendes contorcem-se os solos do Samuel Silva; “I want to see the blue skies”. Palmas. Carlos Mendes dirige-se educadamente ao público: “Obrigado, meus caros. Três coisas muito rápidas: obrigado por tudo, meus caros. Segundo: estou a estrear esta camisa. Terceiro: esta música chama-se ´Night Shift`” e o seu vídeo “foi filmado aqui”, no Salão Brazil. À bateria mecânica-marcial do Carlos Mendes associa-se o baixo eléctrico do Sérgio Cardoso denso e inscrevem um pendor de marcha para um precipício, que com a guitarra eléctrica do Samuel Silva instauram uma queda livre em direcção ao rock and roll conspurcado pelo blues, “last night”; “you where the one”; “remember this”. Samuel Silva executa solos tão precisos quanto perfeitos na sua dimensão sónica; pausa; reinscrevem a marcha mecânica e que é sintetizada em rapidez e substância num bloco de pedra flutuante. “Night shift”; “the best is yet to come”; e os solos do Samuel Silva destacam-se como se fossem lâminas de barbear usadas para cortar os pulsos. A quarta canção é “It`s not Working Out”; Carlos Mendes domina com a sua bateria sincopada que é acompanhada pelo baixo eléctrico do Sérgio Cardoso; a guitarra semi-distorcida do Samuel Silva mimetiza a cadência rock e pespega-a a um fundo rock minimal; este canta/grita algo imperceptível para o seu microfone e que é correspondido pelo Carlos Mendes; e sobre a métrica rock Samuel Silva reintroduz os solos mas mais rápidos e incisivos que são parte da equação e simultaneamente o seu oposto, que alternam entre as vozes do Carlos Mendes e do Samuel Silva. “Away”. O rock and roll que os The Twist Connection instituem tem uma matriz que é violentada pela guitarra eléctrica do Samuel Silva; há uma alternância das vozes de Samuel Silva e do Carlos Mendes; e aumentam a altura e o ritmo e sobressai o baixo agreste do Sérgio Cardoso e a guitarra do Samuel Silva é tão vital quanto tresloucada. Carlos Mendes assegura que “a próxima música chama-se ´Long Drive`”; a guitarra do Samuel Silva inscreve uns acordes semi-distorcidos que são acomodados pelo baixo do Sérgio Cardoso em consonância com a bateria do Carlos Mendes que canta: “So long”; “long drive”; o rock tem uma infusão de uma densidade dramática transcrita pela guitarra eléctrica do Samuel Silva em solos de uma agudeza perturbante; os três vértices produzem uma melodia preponderantemente rock que encontra o seu ponto de clivagem na guitarra eléctrica do Samuel Silva, que epicamente sola e a transforma num rock and roll viciante e vicioso. A próxima canção é “Move Over”; a bateria do Carlos Mendes marca um compasso que é prolongado pelo baixo eléctrico do Sérgio Cardoso, entrecortado por um solo disruptivo da guitarra do Samuel Silva; misturam-se num aglomerado em que impera uma decomposição que se transforma numa composição carregada de dor; retomam a cadência inicial e a voz do Carlos Mendes canta: “I don`t known where I have being”; solo da guitarra de Samuel Silva num timbre angustiante; e o trio em bloco repercute-se num convite ao abismo; “my face”; Carlos Mendes e Samuel Siva: “Good days”; estendem o negrume rock and roll numa rapidez visceral, que encontra no solo semi-distorcido da guitarra do Samuel Silva um reflexo num espelho côncavo, dilui-se num replicar espaçado por parte da bateria do Carlos Mendes com parcimónia do baixo eléctrico do Sérgio Cardoso; o solo da guitarra do Samuel Silva é prenúncio de que se transmutam numa violência destorcida; “have being”; “outside”; a canção é assoberbada num tumulto rock and roll que transmite a castração do medo. A sétima canção, “Breath In”, tem um ritmo compassado da bateria do Carlos Mendes que é preenchido pelo baixo eléctrico do Sérgio Cardoso sobre os quais deflagra a guitarra eléctrica do Samuel Silva em solos milimétricos-- Carlos Mendes: “All the way”; “worry”— que consistentemente revelam-se tão eficazes quanto hipnóticos no seu minimalismo agnóstico. “I don`t care”; “real, real”; The Twist Connection em crescendo instauram sobre a métrica rock and roll uma violência incontinente; “out”; pausa; “1-2-3-4” e relançam-se num torpor rock and roll conspurcado pelos solos da guitarra do Samuel Silva. Durante a pausa Carlos Mendes agradece aos presentes a sua presença e atira as baquetas violentamente sobre o palco que saltam num ricochete absurdo; reinvestem num rock and roll tão rápido quanto um último esgar. Antes da oitava canção, “I´m watching You” da autoria de Jay Reatard, Carlos Mendes convida os Birds are Indie para subirem ao palco do Salão Brazil. O ritmo lento que implementa Carlos Mendes é delicado mas não deixa de ser incisivo e associado à lenta pandeireta da Joana Corker emanam uma alegria que é uma vã esperança; Ricardo Jerónimo com a sua guitarra acústica polvilha-a com cores veraneantes; Henrique Toscano dedilha a sua guitarra eléctrica de forma a se contrapor à do Samuel Silva. Os seis músicos sintetizam uma composição indie-pop; mas Samuel Silva retira-a desse reduto e coloca-a num indie-rock que lhe desgarra as cores POPism; a voz de Carlos Mendes projecta um canto delicado de amante que ficou enclausurado numa jaula de lençóis: “I want you…”; e sobre a melodia tristonha ouve-se a confissão do cantor/baterista: “And all the things you do to me… you see?”. O infatigável e extravagante Carlos Dias dedica, “They are Coming” ao “Bruno Pires”, fotógrafo e realizador dos vídeos das canções que decorreram de “Stranded Downtown”, o primeiro álbum da banda conimbricense. O ritmo implementado por Carlos Dias é um dois por dois que é secundarizado pelo baixo do Sérgio Cardoso, vilipendiado pelos solos pirómanos da guitarra eléctrica do Samuel Silva; o trio é acompanhado pelos Birds are Indie que desfiam uma malha puramente expectante: “They are coming”; o coro pop intervém: “They are coming”. Samuel Silva reinscreve os seus solos hipnóticos de tão minimais; os The Twist Connection e os Birds are Indie misturam-se e a melodia é pop-indie-rock, mas que transformam numa vivificação violenta. Carlos Dias agradece ao contributo dos Birds are Indie, que abandonam o palco sob palmas. A décima canção, “Stranded Downtown” , tem um ritmo curto sincopado da responsabilidade do Carlos Dias, que é dilacerado pelo solo do Samuel Silva; pausa; “gone”; “stranded downtown”; o break da bateria é acompanhado pelo baixo do Sérgio Cardoso, por entre o torpor rock a guitarra do Samuel Silva é western. Antes da penúltima canção Carlos Dias despede-se do público: “Obrigado e até à próxima, meus caros”. “Turn of the Radio” tem um ritmo mecânico nos quais se intrometem os solos repetitivos do Samuel Silva; “talking”; “the boggie man”; “turn of the radio”; pausa; Carlos Mendes e Samuel Silva: “Turn of the radio”; Samuel Silva repete os solos; “every single night”; “smile”; “I can´t stop”; “turn of the radio”; e o rock and roll que comungam é prolongado pela guitarra solo do Samuel Silva que é de um machismo minimal; “people go”; “alone”; os solos desbundam milimetricamente intercalando no ritmo rock agressivo e viril; “talking”; “turn of the radio, turn of the radio”; “I can`t stop”; os The Twist Connection sustêm as notas rock e Carlos Dias discursa enquanto toca bateria: “Obrigado foi um prazer meus caros…”. As palmas demandam que os músicos regressem ao palco e estes aparecem para tocar, “I Can`t Stay”, que tem um ritmo sincopado de rock incisivo e sujo que Samuel Silva se compromete aprofundar com solos épicos; “I don`t want”; “I can`t wait”; “to walk away”; o ritmo perde a sujidade e ganha uma leveza quase pop; “I can`t say”; reacende-se a síncope e a violência; “remember”; “take a walk”; após o break da bateria do Carlos Mendes destaca-se o baixo semi-distorcido do Sérgio Cardoso e Samuel Silva retira a máscara rock dos seus solos e surge o blues como uma doença infecto-contagiosa; “I can`t say”; “walk away”; Carlos Mendes instaura um ritmo que se mistura com a guitarra solo do Samuel Silva representantes de etnias rivais; pausa; o ritmo é uma sincope que derrama sangue por entre os pratos bateria e gradualmente repetem o negrume rock numa brutalidade rock.

“Stranded Downtown”, The Twist Connection, 25 de Novembro @ Salão Brazil

terça-feira, 15 de novembro de 2016

GNR-- Onde Nem a Beladona Cresce

A rádio transmite canções de um passado distante e recente que se repercutem pelo Campo Pequeno, preenchido por figuras sentadas nas bancadas e na arena, parcialmente ocupada por um enorme palco atrás do qual se encontram três ecrãs, no central constam três consoantes: “GNR”, o Grupo Novo Rock festeja esta noite em Lisboa trinta e cinco anos devotos à música Pop-- devidamente retratados na biografia oficial: “GNR—Onde Nem a Beladona Cresce”, da autoria de Hugo Torres, que foi lançada em Setembro na Casa da Música com a presença da elite portuense. No Campo Pequeno o vulgo assobia quando as luzes se apagam e o palco é inundado pelo roxo e um som contínuo ondulante acompanha inúmeras imagens nos ecrãs dos GNR, surgem os músicos que os acompanham na estrada: Samuel Palitos na bateria; Tiago Maia nas guitarras, harmónica, voz; Paulo Borges nos teclados, voz, que desenham a melodia da canção: “Bem-vindo ao passado”. Os ecrãs retratam notícias sobre os GNR, um cabeçalho caracteriza-os como: “Os Três Mosqueteiros”, o primeiro a surgir em cena é o Tóli César Machado que tem uma guitarra eléctrica a tiracolo; o Jorge Romão atravessa a boca de cena e bate palmas e é correspondido pela multidão, apropria-se do baixo eléctrico; quando se ouve o fraseado do sintetizador do Paulo Borges sobre a cadência delicada e por natureza pop, surge da direita alta o Rui Reininho-- que agradece a ovação que se sobrepõe ao PA-- e canta sedutoramente: “Já senti a morte certa/ Viajei de caixa aberta, a dor”, e os GNR dão continuidade às harmonias tépidas e lentamente progridem, “já desci ao limbo, eu sei e é no purgatório e a dor”, as guitarras de Tiago Maia e Tóli César Machado são parcimoniosas na luminosidade que emanam, “queimado fundido passado”, e a melodia é acrescida de uma gramática levemente psicadélica, “até subi ao fim do vento/ No meio do purgatório e vou/ Desci lá em baixo ao fundo/ Até falei com o outro mundo” , o ritmo lento é gradualmente substituído por uma graduação mais rápida, “zangado bem-vindo ao passado/ Pecado fundido queimado”, a bateria do Samuel Palitos altera a sua métrica para uma batida pop durante a qual se destaca o solo do Tiago Maia a repetir os acordes que perfazem a melodia de lusco-fusco, e é seguido pela do Tóli César Machado a adjectiva-la com o pedal wha wha, “pecado fundido queimado”, e há uma persecução de uma imagética abstracta, “zangado bem-vindo ao passado”, mas que se mantém presa ao seu desígnio pop, “pecado fundido queimado”, e o cantor faz a síntese do âmago que nos une: “Zangado, bem-vindos ao vosso passado”, e sobre o ritmo lânguido doseado pelo baixo eléctrico do Jorge Romão, insurge-se a repetição dos sintetizadores do Paulo Borges, e por entre destes três pontos encontram-se as guitarras eléctricas do Tiago Maia e do Tóli César Machado que incorrem num centro tão belo quanto psicadélico, “obrigado”, e as palmas eclodem. A segunda, “Vídeo Maria”, tem uma dinâmica pop em crescendo da qual se destaca a guitarra wha wha do Tóli César Machado, há uma alteração no ritmo e induzem-na à dança (as palmas acompanham-nos), Rui Reininho narra: “Tarde de chuva, é península inteira a chorar/ Entro numa igreja fria, sou um círio cintilante/ Sentada, sozinha, fumando em frente ao altar/ A silhueta o esboço, a esfinge de um anjo fumegante”, a melodia ganha uma perspectiva lúdica repetitiva e as guitarras do Tiago Maia e do Tóli César Machado e o baixo eléctrico do Jorge Romão conferem-lhe uma contemporaneidade pop somados ao sintetizador kitsch do Paulo Borges, “há em mim um profano desejo a crescer/ Sinto a língua morta sei que o latim vai mudar/ Os santos do altar que devem tentar compreender/ O que ela faz aqui fumando/ Estará a meditar?”, e pautam-na de um crescendo que encontra o ponto central no baixo eléctrico do Jorge Romão que é vincado pelos sintetizadores do Paulo Borges de órgão de igreja com hóstias alucinogénias para os fiéis, “ai, ui, atirem-me água benta/ Por ela assalto a caixa de esmolas/ Atirem-me água fria/ Com ela eu desço ao inferno de Dante/ Atirem-me água benta”; “Atirem-me água bem fria”, e sobre o a pop festiva o Tiago Maia sola numa contenção rock, e há uma síncope pop da qual sobressaem as guitarras wha wha do Tiago Maia e do Tóli César Machado, pausa e palmas do público, e retomam a pop em crescendo sob as palmas efusivas dos fãs: “Ai, ui, atirem-me água benta/ Por ela assalto a caixa de esmolas”; “por parecer latina suponho que o nome dela é Maria/ Sexy eu sei, se é virgem ou não? Depende de muita fantasia”, e a pop ganha uma caracterização épica por ser tão bela, e finalizam-na num crescendo rápido: “Lálálá”, e o Campo Pequeno estala numa ovação agradecida por Rui Reininho: “Obrigado”. Antes da terceira canção, o extravagante Rui Reininho confidência: “O tio Leonard coitado dele…”, e faz de conta que tira o seu chapéu invisível ao recentemente desaparecido Leonard Cohen: “I`m your fan”, e as palmas associam-se à sua teatral homenagem. “Efectivamente” tem um andamento pop alegre (acompanhado por palmas do público), a melodia provém do teclado do Paulo Borges e da guitarra semi-acústica do Tóli César Machado, evocam uma paisagem naturalista que é descrita por Rui Reininho: “Adoro o campo as árvores e as flores/ Jarros e perpétuos amores/ Que fiquem perto da esplanada de um bar/ Pássaros estúpidos a esvoaçar”, aumentam a cadência da melodia com subtilezas advindas do piano do Paulo Borges, “adoro as pulgas dos cães/ Todos os bichos do mato/ O riso das crianças dos outros/ Cágados de pernas para o ar”, diluem-se em tonalidades pop primaveris, “efectivamente aqui é diferente”, o Jorge Romão e o Tóli César Machado respondem-lhe: “Lálálá”, e o Rui Reininho é taxativo: “Efectivamente sem moralizar”, sobre a subtileza pop o cantor prossegue a narrativa: “Adoro as pegas e os panascas que passam/ Finjo nem reparar/ Na atitude tão clara e óbvia/ De quem anda a engatar/ Adoro esses ratos de esgoto/ Que disfarçam ao dealar/ Como se fossem mafiosos convictos/ Habituados a controlar”, e os GNR determinam um novo cânone pop: “Efectivamente escuto as conversas”, coro: “lálálá”, “aparentemente ambíguas”, coro: “lálálá”, “efectivamente sem moralizar”, a bateria do Samuel Palitos reluz os seus pratos e a guitarra eléctrica do Tiago Maia sola repetidamente e a acústica do Tóli César Machado é inscrita ritmicamente, e as palmas do público acompanha-nos festivamente, a bateria delega um ritmo mais presente que a estrutura numa contagiante pop e o coro: “lálálá”, Rui Reininho: “Efectivamente gosto é desta gente”, coro: “lálálá”, “aparentemente sem moralizar”, coro: “lálálá”, “aparentemente eu escuto as conversas”, coro: “Lálálá”, “aparentemente sem moralizar”, coro: “lálálá”, “efectivamente sem moralizar”, coro: “Lálálá”, “efectivamente sem moralizar”, e o teclado do Paulo Borges encontra-se com a cadência do bombo do Samuel Palitos e finalizam-na sobre uma estrondosa ovação. A quarta, “Triste Titan”, é dominada pelo teclado luminoso e decorativo do Paulo Borges acompanhado pela bateria do Samuel Palitos adicionados ao baixo eléctrico do Jorge Romão, implementam uma leveza pop que encontra na voz do Rui Reininho uma confissão desarmante: “Se o mar te dá um chocho/ Desejamos a espuma do mar”; “hesitamos”; “a sereia no topo do bolo até caiu”, e o teclado repetitivo do Paulo Borges instiga uma subtil tensão, “não falamos”, há um crescendo que a retira da sua tepidez que a coroa com uma beleza desarmante, “Titan de Leça vais à praia/ E vais a banhos/ Vens de lá vais a Gibraltar combater nuestros hermanos”, e há uma reintrodução do fraseado luminati do Paulo Borges, “a sereia no topo do bolo até caiu/ Nada melhor do que a trivela dos ciganos”, e a progressão que estabelecem é do tempo imaginário de um dia de Verão, “vais à Nazaré e vais a banhos/ Vens de lá vais a Gibraltar chatear nuestros hermanos/ Segue a dieta mediterrânea ou nós enjoamos”, e os raios de sol provêem do teclado do Paulo Borges que encontra no do Tóli César Machado o seu duplo, e a bateria do Samuel Palitos e a delicadeza do Jorge Romão instituem o seu perfil pop elegante, “Leça vais à praia/ Vais a banhos/ Vens de lá vais a Gibraltar combater nuestros hermanos”; “segue a dieta mediterrânea ou nós enjoamos/ E tu vais a banhos e nós enjoamos/ Vais a banhos a milhares de anos”, e é finalizada como um relicário de luz. A quinta, “Caixa Negra”, tem uma programação rítmica em crescendo marcada por um timbre grave do teclado do Tóli César Machado, e a bateria do Samuel Palitos introduz um ritmo rápido e os sintetizadores do Paulo Borges dão-lhe uma crescente tonalidade kitsch, e este dedilha um fraseado a partir do qual o Rui Reininho canta: “Caixa negra tem”, e a guitarra eléctrica do Tiago Maia destaca-se numa vertente funky, “há coisas que não revelam a ninguém”, prosseguem o desfiar da melodia entroncada na (pop) new wave, “nem lembra ao Diabo também/ Caixa negra vem/ Da altura que não convém mesmo a ninguém / Afectam e assustam alguém”, e a guitarra eléctrica do Tiago Maia insurge-se repetidamente e gravemente, “há quem lhe chame preta/ Sem poemas na gaveta/ Mais uns sons tipo trombeta”, que se mistura com as notas graves sustenidas dos teclados e com baixo eléctrico do Jorge Romão, “há sempre uma bicicleta com motor é uma lambreta/ Uma bala na caneta”, e o fraseado do piano do Paulo Borges é o ponto de partida para o Rui Reininho clamar: “Caixa negra vem”, e reincide a guitarra funky do Tiago Maia, “tem cores que se distinguem muito bem”; “Caixa negra trás trás trás/ Recordações do além/ Vai e vem/ Vai e vem”, o acréscimo de ritmo peja-a de uma urgência pop, “quem levanta uma suspeita/ Uma perna perfeita/ Atmosfera rarefeita/ Há sempre uma bicicleta com motor é uma lambreta/ Uma bala na caneta”, e o mecanismo que instituem ganha um dramatismo psicadélico (soam sinos de igreja pardacenta), “lá vem essa bicicleta com motor é uma lambreta/ Uma bala na caneta/ Essa suspeita/ Essa perna imperfeita/ Atmosfera rarefeita”, que se estabelece como denominador comum, “lá vem essa bicicleta com motor é uma lambreta/ Uma bala na corneta/ Caixa negra vem/ Caixa negra vem”. A sexta, “Cadeira Eléctrica”, encontra na bateria do Samuel Palitos uma propulsão rock adjunta às guitarras eléctricas semi-distorcidas do Tiago Maia e do Tóli César Machado sobre os quais paira o piano do Paulo Borges, há uma variação rítmica e a guitarra do Tóli César Machado repete uns acordes como se f”eu”ossem uma ladainha new wave, e o Rui Reininho tem um discurso surrealista: “Há no céu-da-boca/ Um sabor a mel fel/ Da beleza é pouca/ Ninguém manda no bordel”, soa a guitarra eléctrica do Tiago Maia num solo agudo e contínuo que percorre os versos: “Há na China uma barragem suicida/ Para quem quer mudar de vida/ O chamado investimento”, as guitarras do Tiago Maia e do Tóli César Machado reavivam o seu carácter rock mas imiscuída num psicadelismo com fragmentos do piano do Paulo Borges, “apaga as luzes já é de manhã/Aproveita o vento/ Finge um sentimento”, regressa a cadência repetitiva dos acordes da guitarra do Tóli César Machado, “alteração no tempo”, e o solo agudo do Tiago Maia é reanimado, “quando muda a hora lá vem o sofrimento”, aumentam o ritmo e quem o emoldura é o sintetizador kitsch do Paulo Borges, “liga a cadeira eléctrica/ Sente a energia/ Funciona sempre por magia/ Liga a cadeira eléctrica/ Corta a corrente/ Funciona é sempre tão diferente”, eclodem as palmas do público quando se destacam as guitarras e o baixo eléctrico do Jorge Romão e o solo do piano do Paulo Borges, este ganha uma textura de sintetizador que se sobrepõe ao power pop psicadélico que progride gradativamente, “apaga as luzes já é de manhã/ Aproveita o tempo/ Finge um sentimento/ Liga a cadeira eléctrica sente a energia/ Funciona sempre é magia/ Liga a cadeira eléctrica sente a energia/ Funciona sempre é só magia”, e o psicadelismo é o dominador comum, “Liga a cadeira eléctrica/ Corta a corrente/ Funciona sempre é diferente”, o piano do Paulo Borges sentenceia o fim. A sétima, “Ana Lee”, tem como princípio a guitarra eléctrica do Tiago Maia que insere uns acordes que gradualmente se aproximam do exotismo pop, e a narrativa do Rui Reininho é consentânea: “Eu bebi, sem cerimónia o chá/ À sombra uma banheira decorada/ Num lago é só champô”, as palmas compassadas do público acompanha-nos, “e dormi, como uma pedra que mata/ Senti as nossas vidas separadas/ Aquário de ostras cru”, e o público canta com Rui Reininho: “Ana Lee, Ana Lee/ Meu lótus azul/ Ópio do povo/ Jaguar perfumado/ Tigre de papel/ Ana Lee, Ana Lee no lótus azul/ Nada de novo/ Poente queimado/ Triângulo dourado”, a bateria do Samuel Palitos transpõe-na para um universo pop com a anuência dos restantes músicos que perseguem esse ceptro e eclodem as palmas dos fãs, “se ela se põe de vestidinha/ Parece logo sempre uma princesinha num trono de jasmim/ E ao vir-me, embora em verde tónico/ No país onde fumam as cigarras/ Deixei-a a sonhar por mim”, e a melodia é de uma festividade pop que a transforma numa canção atípica de amor, “Ana Lee, Ana Lee/ Meu lótus azul/ Ópio do povo/ Jaguar perfumado/ Tigre de papel/ Ana Lee, Ana Lee no lótus azul/ Nada de novo/ Poente queimado/ Triângulo molhado”, e o piano do Paulo Borges oferece-lhe um solo blues assombroso que é desconstruído pela guitarra eléctrica semi-distorcida do Tiago Maia sobre o crescendo da bateria do Samuel Palitos, “Ana Lee, Ana Lee/ Meu lótus azul/ Nada de novo/ Jaguar perfumado/ Tigre de papel/ Ana Lee, Ana Lee no lótus azul/ Nada de novo/ Poente queimado/ Triângulo dourado”, a pausa é marcada pelo dedilhar do piano do Paulo Borges e há um recrudescer do ritmo onde se destacam as guitarras do Tiago Maia e do Tóli César Machado, “São unhas que cravam/ Na pele em mim/Ana Lee/ São mãos que plantam arroz Xau Xau”. Antes da oitava, “Homens Temporariamente Sós”, Rui Reininho abandona o palco e surge de vestido de lantejoulas preto Rita Redshoes; o sintetizador do Paulo Borges transmite um crescendo lento e tépido e a bateria do Samuel Palitos tem um compasso de coração sonolento, e o baixo eléctrico do Jorge Romão posiciona-se entre estes e sobrevém a guitarra eléctrica do Tiago Maia num slide incisivo de tão dilacerante, e a Rita Redshoes canta imiscuindo-se nos versos escritos por Rui Reininho: “Prometo não falar de amor de gostar e sentir/ Portanto não vou rimar com dor e mentir”, a cadência delicada é pontuada pela guitarra slide do Tiago Maia, “joga-se pelo prazer de jogar e até perder”, e que se delineia sobre o crescendo que transpõe uma tragédia a ocorrer, “invadem-se espaços trocam-se beijos sem escolher/ Homens temporariamente sós, que cabeças no ar”, após a pausa regressam as harmonias dóceis, “até são retratos de solidão interior/ Não há qualquer tragédia / Mas um vinho a beber/”, e a guitarra do Tiago Maia em slide sola indolentemente sobre um dramatismo poeticamente épico, “partidas regressos conquistas por fazer/ Tudo anotado numa memória que quer esquecer/ Homens sempre sós são bolas de ténis no ar/ Muito batidos saltam e acabam por enganar/ Homens temporariamente sós ai que cabeças/ Homens sempre sós nunca sabem o que é ganhar”. Aplausos do público, e na presença do Rui Reininho a Rita Redshoes discursa: “Boa noite. Obrigada. É uma honra e um prazer imenso festejar os 35 anos dos GNR que são aliás os meus anos de vida, como podem calcular desde menina que os oiço e é para mim uma enorme honra estar aqui”, e quando faz uma vénia aos aniversariantes conclui: “Muito obrigada senhores”, Rui Reininho elogia-a: “Lovely Rita”. A nona canção, “Dançar SOS”, encontra nos teclados do Paulo Borges e do Tóli César Machado uma lentidão melancólica e dolente associados ao ritmo slow do Jorge Romão e do Samuel Palitos, e é a guitarra eléctrica de Tiago Maia que lhe oferece uma cor quase blues, Rui Reininho é metafórico: “Abraçar um balde água fria e morrer sem companhia”, mantêm a cadência slow-- Rita Redshoes: “Enganar-me na casa de banho, perguntar as horas a um estranho”, Rui Reininho: “E o medo de ficar para tia”-- que slow ganha um balanço que convida à dança, Rui Reininho e Rita Redshoes: “Habitualmente dança-se sós, como viver como morrer, viver com mais gente”, o teclado do Tóli César Machado reintroduz os acordes melancólicos, Rita Redshoes: “Ao som da chuva moderada”, a guitarra do Tiago Maia inscreve uma redutora esperança, Rui Reininho: “Dançar com a minha namorada”, Rita Redshoes: “Enquanto eu vou fugir para a estrada”, Rui Reininho: “Ficar a ouvir a trovoada”, Rita Reshoes: “Sem companhia”, Rui Reininho: “O medo de ficar para tia”, prosseguem o desfiar dos acordes melódicos tristonhos, Rita Redshoes: “O medo de perder um amigo”, Rui Reininho: “ Saber se ligo ou não ligo”, Rita Redshoes e Rui Reininho: “Habitualmente dançamos sós, e vive-se e fica-se só, frequentemente vivemos tão sós”, Rui Reininho: “Habitualmente”, e sobe o crescendo dos teclados do Paulo Borges e do Tóli César Machado, a guitarra do Tiago Maia sola num timbre blues, Rui Reininho e Rita Redshoes: “Habitualmente dança-se só”, os GNR acrescentam um dramatismo eloquente, “vive-se e fica-se se só”; “frequentemente vivemos tão sós”; “dança-se e não só”; “dançamos nós”, e a guitarra eléctrica do Tiago Maia não acompanha o desacelerar do ritmo que encerra a canção. Nos ecrãs surge uma imagem flutuante acompanhada por uma nota sustenida que dada a sua repetição é abstracta, ao cessar as palmas do público eclodem e uma luz incide sobre Tóli César Machado sentado num piano de cauda preto, que toca os acordes que resultam na melodia da canção, “Asas”, que são complementados pelo sintetizador do Paulo Borges que lhes confere leveza e dramatismo pop, Rui Reininho apresenta o pianista: “Tóli César Machado”, e as palmas ressurgem e os dois teclados progridem e a voz de Rui Reininho insurge-se: “As assas são para voar, para pousar e para sonhar”; “espreitar mil casas no ar”, o dramatismo pop prossegue, “asas servem para proteger, tentar não te esquecer”; “do alto do ar”, e quando canta: “E só quando quiseres pousar na paixão que te roer”, o Samuel Palitos faz tremer um prato que subtilmente pontua-a com uma ligeira tensão, “já não há leis para te prender aconteça o que”, o público completa-a, “acontecer”, e Rui Reininho responde-lhes: “Acontecer”, e o Samuel Palitos retira-a do seu reduto slow pop e o baixo do Jorge Romão tece no mesmo sentido; dos teclados destaca-se o do Paulo Borges que sola sintetizando a melodia numa agudeza western-pop; “há um novo amor que vês crescer sem prazo e idade para acabar”; “aconteça o que acontecer”; e sobre a melodia pop o Paulo Borges sola mas numa outra dimensão que comparada com o anterior é menos angustiada. Ovação. “Obrigado”. A décima primeira canção, “Bellevue”, é iniciada pela bateria sustenida do Samuel Palitos e pelo teclado repetitivo do Paulo Borges; o lugar do Tiago Maia, que saíra do palco antes da música anterior, é ocupado por uma violinista apresentada por Rui Reinino: “Ianina”, que recebe efusivas palmas por parte do vulgo, que se transferem para acompanhar o ritmo sustenido do Samuel Palitos que ao introduzir o binário Rui Reininho canta: “Leve levemente como quem chama por mim/ Perdido na bruma nevoeiro sem fim/ Uma ideia brilhante cintila no escuro um odor, a tensão do medo puro/ Salto o muro ´Cuidado com o Cão`”, sobre o crescente dramático da valsa pop surge o violino da Ianina Khmelik Pacheco que contorna melodiosamente a canção, “vejo onde ponho o pé e subo a mão”, a valsa progride como se estivesse a instituir um quadro sónico em que o violino liberta e inscreve uma tensão que institui o suspense de um film noir, “encosto ao vidro um anel de brilhantes/ Sei é fancaria a fingir diamantes/ Salto à janela com muita atenção/ Ponho-me à escuta ai o meu coração/ Sabem que escondo na Bellevue”, o teclado do Paulo Borges insere umas notas psicadélicas-pop, “ninguém comparece ao meu rendes-vouz”; “pelo corredor um foco de luz no último estertor/ No espelho um esgar um sorriso cruel/ Por trás da última porta cama de dossel/ Salto-lhe para cima experimento o colchão”, reacende-se o violino de Ianina Khmelik Pacheco num aprofundar da perspectiva sobre a melodia, “onde era sangue era só solidão”, a voz do Rui Reininho é irrepreensível na forma como canta/narra: “sabem que escondo na Bellevue/ Ninguém comparece ao meu rendez-vous/ Os pobres dos bichinchos sangrando no jardim”, sobre a valsa pop sobrevém o teclado pop psicadélico do Paulo Borges, e o público acompanha o canto do Rui Reininho, “e agora mais ninguém confia em mim”, durante a pausa as palmas eclodem, e é o piano de cauda do Tóli César Marchado que sola e reintroduz as notas poéticas de “Bellevue”, é acompanhado numa lamuria pelo violino da Ianina Khmelik Pacheco, ouvem-se passarinhos a chilrear, e o crescendo é imposto pela bateria do Samuel Palitos, destaca-se o violino da Ianina Khmelik Pacheco que introduz campos de fuga épicos e os GNR instituem a pop, “as minhas amiguinhas no fundo do jardim, por isso mais ninguém confia em mois/ Era só para brincar ao cinema negro/ Corpos no lago jovens no desemprego”. Na décima segunda, “Vocês”, Tóli César Machado dedilha no piano de cauda notas lentas e Rui Reininho dedica-a ao público: “Esta é para voceses”, e as palmas destes agradecem a atenção, e canta: “Todos me tratam por você/ Menos tu não sei porquê/ Estou marado e o Mundo vê”, a tristeza do piano do Tóli César Machado é transversalmente transcrita pelo violino da Ianina Khmelik Pacheco, “se fiquei se voltei ou se gostei onde parei”, a bateria de Samuel Palitos acrescenta à introspectiva melodia laivos de ténue vivacidade, “eu inventei o verbo amar/ Eu menti sem hesitar/ Esqueci o calor do lar”, o crescendo melódico é dominado pelo violino da Ianina Khmelik Pacheco que pontua a poesia do Rui Reininho que dá uma entoação brasileira ao verso: “Eu que gosto de você”, delegando um universo predominantemente tropical, “não vou partir nem vou ficar”, o piano do Tóli César Machado introduz os acordes primevos da canção e Rui Reininho retoma o seu jogo de espelhos: “Todos me tratam por você menos tu não sei porquê”, e o violino de Ianina Khmelik Pacheco dá continuidade à melodia como se fosse um interlocutor do cantor, “não sei onde sai se cheguei ou nem voltei”, sola contidamente e os GNR seguem-lhe o crescendo introvertido, “eu menti sem hesitar”, ressoa o violino agudamente sobre o slow, “eu que gosto de vocês, só menti sem hesitar, só queria mesmo ficar”, o solo do piano do Tóli César Machado aprofunda a perspectiva sobre a bossa nova, e obtém uma resposta por parte de Ianina Khmelik Pacheco e as cores da melodia são vivaças ma non troppo, “não parti e não vou ficar”, o crescendo prevalece como se os GNR estivessem a rebelar-se perante a incapacidade de comunicar de Rui Reininho: “Eu vocês”, assobia as notas de bossa nova implementadas por Tóli César Machado, “eu você”… A décima terceira canção é apresentada por Rui Reininho: “A Valsa dos Detectives”, e é o violino da Ianina Khmelik Pacheco que se eleva gradualmente, enquanto ecoam as palmas, tem como contra-ponto o teclado infantil do Paulo Borges, a melodia ganha uma nuvem de desamparo que é tão bela quanto perscrutaste, e no ecrã um carrossel parisiense roda à cadência da valsa, as palmas cessam e Tóli César Machado no piano preto introduz as notas da melodia, e Rui Reininho descreve uma alma: “Tem medo do escuro tal criança sem futuro”; “fraco e velhaco covarde armado em duro”, e quando canta: “Vem pelo mundo guiado pela mão”, sobrevém a bateria do Samuel Palitos que a agracia com um ritmo pop e o violino e os teclados asseguram um uma valsa dramática, “até depois de morto mais uma volta no caixão”, o piano do Tóli César Machado acompanha a tristeza melódica do violino Ianina Khmelik Pacheco, há um solo fantasmagórico do teclado do Paulo Borges que lhe proporciona uma profundidade enigmática, “nem na cama está seguro”; “tem medo que alguém lhe chame género sofre do medo puro”, a canção é assoberbada por uma melancolia vivaça que a torna por natureza cinética porque é associada a imagens que confiscaram em tempos a ingenuidade, “tem medo do olhar dos mortais que os rodeiam” e diminui-se “a mentiras pequeninas que serpenteiam”; “e vai pelo Mundo guiado pela mão”, o andamento da valsa pop é em crescendo com a prevalência do violino da Ianina Khmelik Pacheco, “até depois de morto mais uma volta no caixão/ É só paranóia mania da perseguição”; “e vai pelo mundo”, surge um ritmo de marcha fúnebre e Jorge Romão bate palmas na boca de cena, e é retribuído efusivamente pelo público que canta “depois de morto”; a canção ganha um ritmo cada vez mais curto e o violino da Ianina Khmelik Pacheco é de uma leveza épica e simultaneamente teatral, as palmas ecoam e o violino cala-se num grito agudo como um prego a perfurar um caixão de chumbo. Épico. Na décima quarta, “Sete Naves”, o piano de Tóli César Machado é repetitivo assim como o teclado do Paulo Borges embora mais agudo, a bateria do Samuel Palitos é o vértice onde aporta a melodia, as castanholas do Rui Reininho oferecem-lhe uma adjectivação kitsch e canta: “Vejo um rio vejo destroços de metal a flutuar/ Vejo um rio provavelmente o Tejo/ Desejo de me afundar”, o órgão do Paulo Borges ganha predominância e apresenta uma textura que providencia uma desordem na narrativa, “sinos sinetas ao acordar”; “paro de martelar”, e sobre a progressão em síncope sobrevém o violino da Ianina Khmelik Pacheco num solo épico que pára quando Rui Reininho intervém: “Vejo estes dedos são metálicos frios”; “sei que há nuvens ricas de carbono ahaha diáfanas de envenenar”; “paro de me enganar”, não iludem a pop antes sintetizam-na, “as vagas que eu construo não são feitas para navegar/ Aguentam a violência de um beijo nunca a do mar”, e o violino sublinha os versos: “As vagas em que elas vogam fundem-se com o ar e elas vêm, voltam-se devagar”, e os teclados repetitivos associados ao violino e a cadência da bateria e do baixo eléctrico do Jorge Romão condicionam-na ao psicadelismo, ouvem-se as castanholas do Rui Reininho, a progressão é vilipendiada pelo violino da Ianina Khmelik Pacheco que a peja de diversas amplitudes sónicas, pausa e as palmas eclodem, “as naves que eu construo não são feitas para navegar/ Aguentam a violência de um beijo nunca a do mar/ As vagas onde elas vogam fundem-se com o ar”, o violino da Ianina Khmelik Pacheco recorta a frequência repetitiva que domina a progressão, “aguentam a violência de um beijo”; “elas vêm se se voltam devagar”; e Rui Reininho e Jorge Romão repetem: “Iala bom bom, Iala bom bom, Iala bom bom”, e os GNR emitem um contínuo que se replica num psicadelismo pop, que quando se silencia parece que eclode o silêncio. Perante a ovação Rui Reininho agradece: “GNR os primeiros trinta e cinco anos”. A violinista abandona o palco-- do qual retiram o piano de cauda-- e entra Tiago Maia que ostenta uma guitarra semi-acústica, o Samuel Palitos introduz através da tarola o ritmo repetitivo/rock de “Impressões Digitais”, adicionado à pandeireta de Rui Reininho e são acompanhados pelas palmas do público, o hammond do Paulo Borges introduz o fraseado que lhe confere a melodia e simultaneamente um groove retro kitsch, e a guitarra do Tiago Maia mimetiza os acordes do teclado mas numa versatilidade pop, e o fraseado do Paulo Borges sintetiza-se e Rui Reininho canta: “Faz-me impressão trabalho”, público: “OOO”, “que se tem de ser superficial/ Faz-me impressão e baralho”, público: “OOO”, “o vulgar e o intelectual”, solo do hammond do Paulo Borges sobre a batida rock, “sinto uma pressão tão forte”, público: “OO”, “perco tempo essencial sofro uma pressão enorme”, público: “OOO”, “para gostar de quem é normal”; “não sou analógico sou criatura digital”; transcrevem continuamente um rock and roll com um groove retro adjunto a uma festividade desarmante de tão urgentemente conivente com a pop, “não sou patológico como papel vegetal”, coro: “papel vegetal, papel vegetal”; solo do hammond do Paulo Borges que se encaixa no retro-groove-rock naturalmente seguido de um solo da guitarra eléctrica do Tóli César Machado, e Paulo Borges através do sintetizador sublinha as notas do refrão através do kitsch; “faz-me impressão ser seguido”, público: “OOO”, “imitado por gente banal/ Faz-me um favor estou perdido”, público: “OOO”, “indica-me algo de fundamental/ Acho o que gosto em mim o que motiva é uma preguiça transcendental/ O que me torna assim o que me cativa esse sorriso vertical/ Acho o que gosto em mim o que me motiva é uma preguiça transcendental/ O que me torna assim o que me cativa esse sorriso vertical/ Sorriso vertical como uma impressão digital”, sobre as harmonias kitsch emerge o solo da guitarra de Tiago Maia e recrudesce o ritmo e a altura da canção e Rui Reininho declara: “Sinto-me uma fotocópia prefiro o original/ Edição revista e aumentada cordão umbilical/ Exclusivo a morder a página em papel jornal”, os GNR transcrevem uma celebração pop/rock intemporal, “faz-me impressão trabalho a inércia faz-me mal”, “faz-me impressão trabalho a inércia faz-me mal”, “faz-me impressão trabalho a inércia faz-me mal”, “faz-me impressão trabalho a inércia faz-me mal”, “faz-me impressão trabalho a inércia faz-me mal”, Rui Reininho e Tiago Maia e Paulo Borges: “OOO”, Jorge Romão e Tóli César Machado: “Yéyé”; Rui Reininho e Tiago Maia e Paulo Borges: “OOO”, Jorge Romão e Tóli César Machado: “Yéyé”; Rui Reininho e Tiago Maia e Paulo Borges: “OOO”, Jorge Romão e Tóli César Machado: “Yéyé”, Rui Reininho e Tiago Maia e Paulo Borges: “OOO”, Jorge Romão e Tóli César Machado: “Yéyé”, Rui Reininho e Tiago Maia e Paulo Borges: “OOO”. Na décima sexta, “Sangue Oculto”, a bateria do Samuel Palitos coincide com a métrica do solo em delay da guitarra eléctrica do Tiago Maia, “oh yeah”, e que é devidamente acrescida pelos GNR de uma repetição dos acordes rock-- surge Xavier Andreu de óculos escuros-- e Rui Reininho canta: “Ardem chamas só de dois sóis/ A luta na arena artificial corre o sangue/ Mato-me primeiro e a ti depois”, e quando Xavier Andreu canta os GNR progridem ritmicamente e as palmas efusivas do público seguem-nos: “a huir de una investida es como saltar una hoguera/ La barrera de fuego una frontera”, e continuam a provir o rock e é a vez de Rui Reininho: “Ao fugir da própria vida sem correr e sem saltar/ Oculto sangue que temos para dar”, o solo do Tiago Maia é marcado por uma cadência rítmica compassada, e Xavier Andreu acrescenta: “No és como la sangre que correran entre mis venas/ Ardem como el deseo tu prison e mis cadenas”, sobre a cadência rápida do rock responde-lhe Rui Reininho: “Ao fugir de uma investida é como saltar a fogueira, hombre! Hombre”, e aponta para o Xavier Andreu que: “La barrera de fuego una frontera”, “OOO”, e Rui Reininho canta sobre a festividade kitsch rock, “ao fugir da própria vida”, Xavier Andreu, “Sin volver la pista atrás”, Rui Reininho: “Oculto sangue latino que temos para dar”, a guitarra eléctrica do Tiago Maia deflagra num solo épico, pausa e palmas, e os GNR retomam-na ao exorbitar a sua verve puramente rock and roll, “a huir de una investida”, “é como saltar a fogueira”, “la barrera de fuego una frontera” , “OOOO”, “ao fugira da própria vida”, “sin volver la pista atrás”, “oculto sangue que temos para dar”. “OOO” e o solo de piano do Paulo Borges verte uma urgência western, Rui Reininho e Xavier Andreu: “Oculto sangue que temos para dar”. Rui Reininho despede-se do Xavier Andreu: “Muchas gracias”. A décima sétima, “Las Vagas”, é iniciada através de um som aquático (repetitivo) e a bateria do Samuel Palitos e as guitarras semi-distorcidas em paralelo do Tiago Maia e do Tóli César Machado incitam um princípio psicadélico, Rui Reininho descreve: “É tão grande é uma macro onda vista dali da marina”; “cheira tudo a ambição/ A inundar de ouro a mina”, solo do Tiago Maia em suspenso é seguido pelo teclado ondulante do Paulo Borges sobre a verve rock, “roleta russa aceitas as apostas”; “os fiéis das balanças”; “tudo são manigâncias”, “perdes tudo e todos e gostas”, e a guitarra do Tiago Maia sublinha uma sub-reptícia densidade cromática, sedutoramente: “gostas”, “gostas”; “eu sereia a gorda serás a magra/ E tu a cabra cega serás quem paga vaca louca”; “não havia vaga”; a progressão dos GNR é uma contida transgressão de rock psicadélico, “sou uma cobra dentro de água”, e o Tiago Maia sola numa vertente rock and roll que se espelha numa excelsa progressão dos GNR, “eu sereia a gorda serás a magra”; “não havia vaga”; “sou um peixe fora de água”, e a pausa é marcada por palmas do público que acompanha o ribombar da bateria do Samuel Palitos, destaca-se a guitarra eléctrica wha wha do Tóli César Machado a instituir um psicadelismo pop, e é a guitarra do Tiago Maia em dealy sola sobre a coerência rock dos GNR que quando a finalizam num coitus interruptus psicadélico, Jorge Romão retira o baixo eléctrico do seu tronco e atira-o acima da sua cabeça e quando o sustém quase que se desfaz no chão. A décima oitava, “MacAbro”, tem um piano forte introduzido por Tóli César Machado e as palmas do público marcam o seu compasso de cântico de guerra, Rui Reininho revela: “Sabes como é que eu sou cá em casa é tudo feito à mão”; “com um arpão/ Confundido sempre com o meu irmão esse grandalhão que lhe sirva de lição”, a marcação do teclado numa nota sustenida verte um sublime detalhe de filme mudo, “mudando de assunto”, o fraseado forte é cada vez mais curto, “cá em casa é tudo feito à mão”; “aproximo-me do meu irmão”; “com um grande facão”, a bateria do Samuel Palito através do bombo relega-a para um universo em que as personagens são marinheiros ébrios no encalço de um horizonte que naturalmente nunca é alcançável (que é acrescido pela métrica teatral dos teclados), e o coro personifica-os: “Lálálálá”; e Rui Reininho é a voz destas consciências turvas: “Mudando de assunto”, “lálálá”, “cá em casa é tudo feito à mão”, “lálálá”, “é então que eu peço atenção”, “lálálá”. Antes da décima oitava, “Santa Combinha”, Rui Reininho abandona o palco e o teclado de Tóli César Machado é grave e repetitivo sobre o qual o do Paulo Borges se consubstancia numa outra repetição aguda e por isso libertaria da esperança, a bateria do Samuel Palitos é conivente com o negrume imposto por Tóli César Machad, surge-- sob as palmas do público, devidamente trajada com o seu fato do Grupo Cantares e Trajes de Manhouce-- a Isabel Silvestre e a guitarra eléctrica do Tiago Maia reinscreve os acordes melodiosos do teclado do Paulo Borges, sobre a melodia a espaços luminosa canta a voz de uma população rural: “Senhora santa Combinha senhora santa Combinha inda vais tu à lareira inda vens tu à lareira inda vens tu à lareiroo”, o violino da Ianina Khmelik Pacheco sobrepõe-se à melodia fúnebre como se fosse a voz de uma alma aparentemente presente, “vinde buscar a mortalha vinde buscar a mortalha/ Vinde buscar a mortalha”; “pulseiroOOO”, e o violino da Ianina Khmelik Pacheco sublinha agudamente a origem da fatalidade, “senhora santa Combinha senhora santa Combinha”; “Chegueiroo”, que insta um apontamento que se estende sobre o negrume dos acordes luminosos dos teclados, “passar ooo”, e o violino transcreve um solo que corta com a melodia que nos encaminha para as trevas e a luz que daí advém é o fim. As palmas não param enquanto Isabel Silvestre discursa: “Boa noite Campo Pequeno hoje não tem tamanho!”; Rui Reininho agradece: “Obrigado minha fada!”, dão as mãos e a cantora exige: “Uma grande salva de palmas para este grupo!”, e decorre uma ovação. A vigésima, “Pronúncia do Norte”, é iniciada pelo teclado do Paulo Borges que dedilha notas lentas e de matiz trágica, Rui Reininho canta: “Há um prenúncio de morte, lá do fundo de onde eu venho/ Os antigos chamam-lhe relho novos riscos são má sorte/ É a pronúncia do norte os trolhas chamam-lhe torpe”, o fraseado do teclado do Paulo Borges sintetiza as notas melodiosas, “hemisfério traga outro forte/ E não estejas triste a bússola eu sei que existe/ E aponta sempre para norte/ Nem guerra nem bairro nem corte/ Canta a pronúncia do norte/ Se há um prenúncio de morte corre o rio para o mar”, as palmas acompanham a entrada em cena do Tóli César Machado que com o seu acordeão simula as ondas do mar e o baixo eléctrico do Jorge Romão confere-lhe um balançar ténue que é manchado pela bateria do Samuel Palitos num ribombar que é um sentido perpétuo das correntes marítimas, e é a vez da Isabel Silvestre cantar: “Não tenho barqueiro nem hei-de remar/ Procuro caminhos novos para andar”; “da geada às pérolas as fontes secaram”, Rui Reininho e Isabel Silvestre: “Corre o rio para o mar e há um prenúncio de morte”, sobrevém o teclado e o acordeão e a bateria marca um compasso crescente, “e as teias que vibram nas janelas esperam um barco parecido com elas”; “e é a pronúncia do norte corre o rio para o mar”, e o fraseado do teclado do Paulo Borges é repetido em crescendo pelos GNR, Rui Reininho e Isabel Silvestre complementam-se: “E as teias que vibram nas janelas esperam um barco parecido com elas/ Não tenho barqueiro nem hei-de remar procuro caminhos novos para andar / È a pronúncia do norte corre o rio para o mar”, e eclode uma ovação quase interminável—os cantores abandonam o palco—e os GNR dão continuidade à canção encerrando-a epicamente com laivos dos blues. Antes da vigésima primeira, “Nova Gente”, Rui Reininho agradece: “À M80 e à RTP que nos ajudou a encher esta casa! Sim senhor! Muito obrigado!”; o ritmo providenciado pelo Samuel Palitos e por Jorge Romão é de baile e o sintetizador acompanha-nos mas numa vertente ainda mais kitsch, a melodia é reminiscente de um universo pop mas afincadamente popular, a guitarra do Tiago Maia sola como se fosse de alguém com limitações técnicas e Rui Reininho movimenta alegremente as suas maracas e canta: “Vivo numa ilha sem sabor tropical/ A fauna é variada a democracia acidental/ Não é de origem elevada difícil de recensear/ É mais que uma ilha é quase continental/ Não está cercada por água mas não faz mal/ Quem a rodeia por vezes é a força policial”, sobre a melodia de baile o sintetizador do Paulo Borges é um fraseado repetitivo que pretende mimetizar as sirenes dos carros da polícia de crianças a brincar na província, “Baby Doc ou Papa Doc nunca vi/ Ou qualquer ditador da América central/ Cá não há candidato à autarquia local/ Só orgulho analfabeto mas com cultural geral/ É tudo a mesma fruta a mesma caldeirada/ Essa gente educada anarquia total/ É tudo a mesma fruta a mesma caldeirada/ É só gente educada Portugal (eleva a voz)”, e os GNR implementam um jogo pop kitsch em que asseguram um quadro de relevante transgressão estética, “vivo numa ilha sem sabor tropical/ Não é de origem vulcânica mas tem lama no Natal/ É mais que uma ilha quase continental/ Não está cercada por água Porrtugal”, e o solo do Paulo Borges remete-a para um universo latino, “compañero”, que se espraia sobre a verve kitsch, e a guitarra eléctrica do Tóli César Machado evidencia-se através do wha wha e o órgão do Paulo Borges remata-a num apontamento blues. A vigésima segunda, “Morte ao Sol”, é iniciada pelo solo da guitarra eléctrica do Tiago Maia fluxo seguido pelo piano do Paulo Borges numa cadência lenta em que as cores que ressaltam são as iluminadas pela lua, “felizmente a noite sai”, responde-lhe o solo curto do Tiago Maia e o piano do Paulo Borges instaura um suspense comensurável, “ainda bem que há névoa por aí”, o fraseado do piano do Paulo Borges sublinha a melodia num intuito dramático, “estou contente se a luz se esvai/ E uma sombra invade este lugar”; “se o amanhã perdido for metamorfose de horror”, e os GNR acrescem à melodia uma contida alegria que prenuncia uma alegoria pop, “as trevas vão demorar, bem contente se a luz se esvai/ E o céu não fecha sobre nós revela ciesta rouca voz/ Se o amanhã perdido for overdoses baby de horror”, enunciam um universo pop em que domina a tragédia imposta pela mortalidade do “eu” que não se eterniza na paisagem erosiva pelo tempo, “directa sim eu declaro morte ao sol”; “directa sim eu declaro morte ao sool”; “ooo”; “lá vem a luz”, que é mimetizada pelo solo épico semi-distorcido do Tiago Maia sobre a cadência do slow-pop dominada pelo piano do Paulo Borges, “se o céu não fecha já sobre nós/ Revela ciesta imagem atroz/ Directa sim eu declaro morte ao sol/ Directa não e a quem o apoiar/ Directa sim eu declaro morte ao sol/ Directa não e a quem o apoiar”, público: “OOOO”, Rui Reininho: “Obrigado capital do império”, e os GNR implementam uma sequência em que domina uma festividade pop, e o cantor abandona o palco a trote num cavalo imaginário. A primeira canção do encore. “Coimbra B”, surgem Tóli César Machado e Tiago Maia, o primeiro senta-se num teclado e as notas são graves e repetitivas e a guitarra eléctrica do segundo é numa agudeza contida, emanam uma frieza outonal, o teclado representa-se numa vertente melodiosa mas introvertida e a guitarra reinscreve a agudeza—no ecrã surgem imagens do mítico concerto dos GNR no Estádio de Alvalade em 1992 onde tocaram para uma multidão composta por quarenta mil pessoas--; Tiago Maia sola sobre a repetição dos acordes do teclado do Tóli César Machado e desfazem-se num clímax virtuoso de tão delicado quanto belo. A vigésima quarta, “Dunas”; o ritmo compassado da bateria do Samuel Palitos traz consigo as palmas da multidão, e a guitarra eléctrica do Tiago Maia sola repetidamente, e o acordeão do Tóli César Machado inscreve uma crescente luminosidade, e Rui Reininho é sedutor ao cantar: “As dunas são como divãs/ Biombos indiscretos de alcatrão sujo/ Rasgados por cactos e hortelãs/ Deitados nas dunas alheios a tudo/ Olhos penetrantes/ E pensamentos lavados”, a melodia é um sortilégio de timbres que se combinam harmoniosamente, “bebemos dos lábios refrescos gelados/ Selamos segredos/ Saltamos rochedos/ Em câmara lenta como na TV/ Palavras a mais na idade dos ´porquê`”, e a luminosidade pop é sinónima de leveza e felicidade, “dunas, como que são divãs/ Quem nos visse deitados cabelos molhados bastante enrolados/ Sacos camas salgados; onde?”, público: “Nas Dunas”, Rui Reininho: “AAh mas roendo maçãs/ A ver garrafas de óleo boiando vazias nas ondas da manhã”, e inscrevem uma textura solar que simultaneamente é lúdica, “bebemos dos lábios, refrescos gelados, onde?”, público: “Nas dunas”, Rui Reinho: “Em câmara lenta como na TV; mas onde?”, público: “Nas dunas”, Rui Reininho agradece a presença o público: “Nas dunas”, e durante o solo do acordeão do Tóli César Machado as palmas eclodem, “patchywari ooo”, e o público à capela: “patchywari ooo”, e os GNR finalizam-na festivamente. A vigésima quinta, “Telephone Pecca”, é iniciada pela guitarra eléctrica do Tóli César Machado, tem um ritmo cadenciado e simultaneamente seco providenciado pelo Samuel Palitos que quando acelera são polvilhados pelo piano do Paulo Borges, e Rui Reininho traduz os seus pensamentos dada: “A sua violeta violenta/ Quando o perigo aumenta/ Se esta voz não cala/ Máquina que...”, conferem-lhe um crescendo festivo que se revela virtualmente trágico, “rasga a garganta sai um insulto imaginário/ Aponta a língua manda um beijo incendiário”, a tensão pop é instituída pela guitarra eléctrica do Tiago Maia intercalada com o solo do piano do Paulo Borges, “nua traiçoeira e impura/ Sempre que fica dura/ Se o medo estala/ Máquina que...”, e o público responde-lhe: “Papappapa”, Rui Reininho: “Quando o telephone pecca”, público: “Papapapa”, Rui Reininho: “Se este telephone toca”; “rasga a garganta sai um insulto imaginário/ Aponta a língua num beijo incendiário”, o crescendo liberta e controla uma agressividade pop, “essa palavra maldita”, e há um tempo sustenido que quase a oblitera da tensão acumulada, “medo voz aflita/ Quando o mundo estala/ Máquina que…”, e na pausa enunciada pelos GNR ressalva a guitarra eléctrica do Tóli César Machado a repetir os acordes da canção numa eloquência pop, reacende-se a bateria do Samuel Palitos associado ao baixo eléctrico do Jorge Romão, e a melodia transporta-se da pop para um crescendo que a catapulta para o psicadelismo. A vigésima sexta é a versão do Roberto Carlos, “Quero que vá tudo pró inferno” (1965), surge o Xavier Andreu para cantar com o Rui Reininho; e são as guitarras do Tiago Maia e do Tóli César Machado que impõem os acordes da canção numa vertente festiva que é corroborada por todos os músicos, Rui Reininho canta: “Do que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar/ Se você não vem e eu estou a disparar/ Só tenho você no meu pensamento/ E a sua ausência, é todo meu tormento/ Quero que você me aqueça nesse inverno/ E que tudo mais vá pró inferno”, e a harmónica do Xavier Andreu sublinha o rock kitsch, “de que vale mi vida loca de playboy/ Si me meto em mi coche e me voy”, Rui Reininho: “Eu não aguento mais você longe de mim/ Prefiro até morrer do que viver assim”, o público entoa e Rui Reininho e Xavier Andreu cantam: “Eu quero que você me aqueça neste Inverno/ E que tudo o mais vá pró Inferno”, o público acompanha os GNR que exorbitam a melodia e acentuando-lhe o seu carácter kitsch, ouve-se um solo magistral da harmónica do Xavier Andreu secundado pelo da guitarra eléctrica do Tiago Maia, Rui Reininho prossegue: “Eu não posso mais, você longe de mim/ Prefiro falecer do que viver assim”, “quero que você me aqueça neste inverno/ E que tudo mais vá pró inferno”, “OOO”; e o rock and roll que inscrevem é de natureza libertaria, “me aqueça no trabalho/ E que tudo o mais vá pró inferno”, “OOO”, “e que tudo mais”, “Vá al infierno”. Jorge Romão retira o baixo eléctrico e desloca-se para o limite do palco onde se senta e abraça os Super Fans dos GNR que o aplaudem e acarinham. Para o segundo encore apresentam, “Sub-16”, que encontra nas notas repetidas do sintetizador do Paulo Borges uma infiltração kitsch que associada à bateria do Samuel Palitos e ao baixo eléctrico do Jorge Romão isolam consciência rock e Rui Reininho canta: “E quem causa inveja/ E fuma escondida da mãe?/ Vida tão chata”, sublinhada pelas guitarras eléctricas semi-distorcidas do Tiago Maia e do Tóli César Machado, “onda tão curta/Moda tão fora, sai!!!/Que o raio a parta”, há um crescendo pop/rock, “e puxa pula aí até ao sol”, suspendem a melodia e seguidamente alinham-na no rock, “mas aos 16 só de uma vez tem-se o desgosto de vestir como os DJ's/ E com 16 já falta pouco tempo para fazer 96”, e os sintetizadores do Paulo Borges dão-lhe uma profundidade kitsch, “à volta do quarto nuvem de cabelo em pó/ Pintura de guerra/ Multiplica por quatro/ Beija o teu retrato em pó/ A rádio berra”, e os GNR reincidem no crescendo mas desta feita mais rápido e que se revela rock and roll, “mas aos 16 só de uma vez tens o mau de pagar para ver DJ's/ E com 16 nunca se teve tempo de ler”, a pausa sublinha o nome de um dos livros do Tolkien: “´O Senhor dos Anéis", e sobre a melodia rock o solo do piano do Paulo Borges peja-a com uma festividade blues, “só mais uma vez tem-se o desgosto de vestir como os DJ's/ Aos 16 é de esperar alguém gritar ´Sweet Little Sixteen`”, o coro responde-lhe: “Papapara”, e após a pausa aumentam a escala sonora numa efervescente cadência épica. A canção que encerra as comemorações dos trinta e cinco anos de carreira dos GNR é: “+ Vale Nunca”, que tem um ritmo deliberadamente pop polvilhado pelo teclado infantil do Paulo Borges— surge um grupo de crianças que se instalam no palco com um maestro— e Rui Reininho olha para eles e canta: “Logo logo a nascer um grito surdo que tentam calar”, e sobre um universo sónico que versa a infância, “vais ouvir e ver/ Mais vale nunca/ Nada apetecer/ Mais vale nada/ Nada mais viver/ Mais vale nunca mais crescer”, há uma angulação proposta pelas guitarras eléctricas do Tóli César Machado e Tiago Maia, “cérebro em fuga a dominar/ Génio preguiçoso e letal/ Olha pró que eu faço/ Mais vale nunca/ Nada perceber/ Mais vale nada/ Nunca mais beber/ Mais vale nunca mais crescer”, há um crescendo predominantemente pop e que lhe confere um grau kitsch, “ficas a aprender/ Mais vale nunca/ Mais vale nada/ Mais vale nunca mais crescer”, e sobre a melodia pop a guitarra rock do Tiago Maia insurge-se e prolonga-se durante o crescendo e ainda se destaca o teclado infantil do Paulo Borges, durante a pausa ouvem-se as palmas do público, Rui Reininho apresenta de forma paradoxal o grupo de coristas infantis no meio do qual se encontra Jorge Romão, isto, tendo em conta os versos nucleares da canção: “O nosso futuro!”; e retomam a cadência pop presa a um estágio de desenvolvimento primevo, Rui Reininho: “Vais ouvir e ver”, coro: “Mais vale nunca”, Rui Reininho: “Nada perceber”, coro: “Mais vale nada”; Rui Reininho: “Nada perceber”, coro: “Mais vale nunca mais crescer”, Rui Reininho: “Ficas a aprender”, coro: “Mais vale nunca mais crescer”, Rui Reininho: “Nada perceber”, coro: “Mais vale nada”, Rui Reininho “Nada apetecer”, coro: “Mais vale nunca mais crescer”, Rui Reininho: “Olha para o que eu faço”, coro: “Mais vale nunca”, Rui Reininho: “Nada mais dizer”, coro: “Mais vale nada”, Rui Reininho: “Nada mais querer”, coro: “Mais vale nunca mais crescer”, Rui Reininho: “Agora é a doer”, coro: “Mais vale nada”, Rui Reininho: “Nada mais querer”; desloca-se para junto da Rita Redshoes, Isabel Silvestre e Ianina Khmelik Pacheco que se encontram atrás do coro: “Mais vale nada”, Rui Reininho “Nada mais dizer”, e o coro: “Mais vale nunca mais crescer”. Os aniversariantes (e os convidados) deslocam-se à boca de cena e são agraciados com uma ovação por parte do público, que é sinónima de que a grandeza e o génio criativo dos GNR foram fundamentais para as suas vidas.

GNR, Celebração dos Trinta e Cinco Anos de Carreira, 12 de Novembro

sábado, 12 de novembro de 2016

Stranger Music—Selected Poems and Songs, 1993

No interior de uma cápsula está concentrada uma força que se assemelha ao tempo, onde se conjugam aleatoriamente formas verbais, esvai-se a sua memória criando um vácuo num corpo inerte com o olhar fixo no nada. Sigo a luz do corredor mas por instantes cego; e aparece a das escadas que desço e cruzo-me no hall com melómanos e entro na sala do Salão Brazil, no palco encontram-se os Wipeout Beat que se preparam para iniciar a sua actuação. A primeira canção tem origem em três teclados retro sinfónicos que se sobrepõem a um beat espaçado: Carlos Dias canta algo indescritível; a repetição das notas é alternada de teclado para teclado num jogo de figuras que se multiplicam em gestos incertos; Carlos Dias canta algo imperceptível; a progressão é quase minimal irradiando um negrume de crude derramado por uma consciência intoxicada; Carlos Dias canta algo inqualificável; e reagem num sincronismo barroco que é emoldurado por um dramatismo kitsch. Miguel Padilha apresenta-os “boa noite, nós somos os Wipeout Beat”. A segunda canção tem um ritmo curto e as vozes cantam: “1-2-3-4, she`s a bad girl”, dos teclados sai um timbre de alfinete no interior de um casulo onde se picam repetidamente as abelhas para se libertarem do pólen, a guitarra eléctrica do Pedro Calhau reinscreve-a num western spaguetti que alterna a sua reverberação com os dois teclados instando um quadro de deserto intervencionado por Christo. A terceira canção tem como base um loop pesado e um dos teclados instaura uma melodia para um filme infantil a preto e branco, mas a guitarra eléctrica do Pedro Calhau é viril e adulta; Carlos Dias: “Fiction”, os dois teclados parecem presos a uma progressão tão lenta que é indefinida…“Fiction”, “heart”. A quarta canção remete através do seu beat para uma bateria “real”, e os teclados sublinham uma repetição das notas pop sinfónicas, Carlos Dias: “I give you all, you are so tall”, “model”, “stop”, que se prolongam como um mantra fora de moda. Na quinta canção o ritmo synth convida à dança os presentes, os teclados instauram uma tonalidade negra e um dos quais destaca-se e revelam-se num minimalismo retro e a voz é a do Miguel Padilha que canta/fala: “I go back”, solo de um dos teclados providenciando uma textura aguda, que se intercala com a guitarra semi-distorcida de Pedro Calhau instaurando o psicadelismo, “I don´t know”, a progressão é tendencialmente épica, “I go back”; “I go back”; “I go back”; “I go back”; “I go back”; “I go back”; “I go back”; “I go back”. A sexta canção tem uma densidade estilística dos teclados que ecoam agudamente, com o Miguel Padilha na voz: “I`m waiting for the rain stop”, “I`m waiting for the rain stop”, e erigem um edifício de cor escura iluminado por uma lua extravagante a sua arquitectura é manchada por nuvens diáfanas, “I`m waiting for the rain to stop”. Inserem um loop dançante e Carlos Dias informa: “Esta é a última…a seguir Ghost Hunt”; os dois teclados repetem as notas numa progressão sustenida, a guitarra eléctrica do Pedro Calhau introduz um solo rock, e os teclados aumentam a sua altura e adensam a perspectiva sónica da guitarra eléctrica. Pausa. A guitarra impõe-se sobre os acordes dos teclados numa antítese perfeita, “baby, baby”, a relação de forças mantém-se como fossem diversas figuras a discursar sobre o absurdo, “baby, baby, baby”, e divagam num sublime lirismo retro-Kaut Rock. As luzes da sala estão apagadas e no palco encontram-se dois rapazes, o Pedro Oliveira atrás de um conjunto de teclados e o Pedro Chau com um baixo a tiracolo, atrás dos quais se lê a cinzento Ghost Hunt sobre uma tela negra. No primeiro tema o Pedro Oliveira introduz um som denso digital num groove flutuante que lentamente se misturam, no ecrã um gráfico com uma linha movimenta-se oscilantemente; aumenta a altura e as peças sonoras agregam-se e recriam um Outono de folhas caídas à janela de uma casa em ruínas; a geometria é representada no ecrã através da sua sobreposição de formas que arquitectam a passagem do tempo; o som adensa-se mas é perturbado por uma frequência aguda que se repete modelarmente e que induz ao vazio; as ondas sonoras do ecrã sustêm-se numa dor inoportuna; o beat synth é pesado e o baixo eléctrico do Pedro Chau revela-se promiscuamente Pop; o ritmo acelera numa progressão que se equipara a uma máquina por inventar e o baixo eléctrico sobrevém e intercala-se com os teclados synth agudos que contrabalançam numa meta música. No segundo tema o teclado do Pedro Oliveira insere um xilofone digital que é infantil de tão delicado, e o beat dançante é acompanhado pelo baixo eléctrico do Pedro Chau e progridem instaurando numa viagem sofisticada por entre arranha-céus; o beat domina sobre a melodia synth e a sua progressão desagua numa repetição das notas dançantes; Pedro Oliveira sola sem que esteja emoldurado por outros efeitos ou pelo baixo eléctrico; ressurge o beat e o baixo eléctrico e a progressão acelerada remete para um psicadelismo digital, que retira a consciência do seu estado vigente e o substitui pelo inconsciente. O terceiro tema é dominado por um ritmo acelerado que é corrompido pelo sintetizador do Pedro Oliveira que se impõe numa agudeza rococó; há uma pausa e destaca-se o baixo eléctrico do Pedro Chau; o beat pesado e acelerado é dilacerado pela introdução da guitarra eléctrica do Pedro Oliveira e citam de forma épica o kraut rock, exuberante ao transbordar como ácido de um cérebro em vias de uma combustão. Pedro Chau informa: “A próxima música chama-se ´Games`”, e é o single de apresentação de “Ghost Hunt” o mini álbum que editam hoje e que dedicam, “to the memory of our dear and lost friend Bruno Pedro Simões”. “Games” tem um andamento tão dançante quanto viciante e o break beat pontua-a com um retrocesso que relança a progressão; surge um sinfonismo do sintetizador e há uma gradação desconstrutivista que se transforma num paradoxo construtivista que se alternam como máscaras que ora se envelhecem ou se rejuvenescessem; as máquinas fazem aterrar uma nave que foi usada durante a guerra das estrelas; o sintetizador sola como que a anunciar um mundo maravilhosamente repleto de paisagens abstractas. Antes do quinto tema Pedro Chau discursa: “Só queria dizer que finalmente temos o nosso disco à venda”, que demorou nove meses a encontrar este destino, “o que posso dizer mais? Espero que esta noite seja tão especial para nós quanto para vocês”. “T.V.O.D” original The Normal (aka Daniel Miller) é apresentado através dos sintetizadores do Pedro Oliveira que fazem dançar no ecrã linhas de alta tensão, onde poderiam estar palhaços pendurados por uma gravata que os asfixiaria lentamente num último orgasmo; domina o beat synth retro e a voz do Pedro Chau intervém como se fosse um professor a ditar um discurso codificado aos seus alunos: “T.V.O.D”. “I don`t need TV screen”. O beat e os sintetizadores instituem um psicadelismo virtual mas que sonoramente se assemelha a imagens impossíveis de reter na memória; “T.V. O.D”; “T.V.O.D”; o break beat provoca um súbito despertar da consciência numa delicadeza que é confiscada pelo baixo eléctrico do Pedro Chau; a altura conjuga-se com um pendor big beat e instauram um viciante psicadelismo; no ecrã surgem os “Ghost Hunt” em palavras cinzentas; e as notas agudas do sintetizador são tão perturbadoras quanto uma tempestade de aves escravas do céu; inscrevem-se num dadaísmo synth e que é sublinhado pelo baixo semi-distorcido do Pedro Chau, instauram um fluxo áspero e dilacerantemente psicadélico que é estendido numa trip para ravers habituados a dançar no vazio. A última música “está no álbum… mas vamos toca-lha de forma diferente”. O teclado do Pedro Oliveira sustém as notas continuamente e a programação são uns pratos de bateria que se transmutam num synth beat que conjugado com a guitarra eléctrica do Pedro Oliveira e o baixo do Pedro Chau formam um triângulo que se multiplica e que se misturam num êxtase, param, mas os teclados mantêm a canção viva; a guitarra eléctrica e o baixo desdobram-se num psicadelismo exorbitado pelo fluxo synth; exalam um composto que se evaporiza num cogumelo às mãos do mal e contamina as flores de pedra que dançam macabramente em redor de esqueletos aturdidos pelo beat que desaparece e reaparece num pulsar ainda mais acelerado e a guitarra eléctrica do Pedro Oliveira e o baixo do Pedro Chau instauram uma vertigem que é acentuada num contínuo êxtase…

Ghost Hunt-- apresentação do mini álbum homónimo-- e Wipeout Beat, 11 de Novembro, Salão Brazil

In loving memory of Leonard Cohen

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

D'este Viver Aqui Neste Papel Descripto— Cartas da Guerra

A noite cobre o meu corpo num fluxo lento que o enquadra numa perspectiva em que impera a solidão, o seu reflexo são olhos azul-turquesa e uma melena loura que pende até aos ombros, parece uma figura de romances de cavalaria ou simplesmente um marinheiro que tem como desejo secreto naufragar ao largo da Ilha dos Amores. No instante em que tento fixá-lo a sua silhueta esfuma-se instantaneamente e oiço uma marcha de botas sobre um asfalto que progressivamente se aproximam como se fossem mulheres e homens a se rebelarem contra a mortalidade, atrás de uma plateia surgem duas mulheres que pretendem resgatar uma bandeira branca com impressão a negro de um rosto de um dos piratas no Peter Pan. No palco do Teatrão apresentam-se Señoritas que seguram um adufe e marcam um ritmo festivo e rural mas de horta urbana entre o qual surgem sinos de arrebate, uma das quais chama-se Maria Antónia Mendes e é a sua voz que canta: “Gosto de viver despenteada”, a intensidade dos adufes mantém-se, “porque mais arranjada? Porque mais morena?”; “gosto de viver despenteada”; Sandra Baptista repete: “Gosto de viver despenteada”; ressurgem os passos da multidão como uma memória antiga; Maria Antónia Mendes: “Acelero e travo”, e perante o olhar de um nómada questiona-o: “Queres entrar?”. E no fim da primeira canção Maria Antónia Mendes dirige-se directamente ao público: “Boa noite. Sejam bem-vindos ao universo Señoritas. Bem-vindos ao Teatrão”. A seguinte denomina-se de “Acho que é Meu Dever não Gostar”, e encontra Sandra Baptista no baixo eléctrico e na guitarra eléctrica Maria Antónia Mendes, que domina mas é complementada pela primeira. Maria Antónia Mendes: “Acho que é meu dever não gostar, não gostar de armas”, mas há um paradoxo no seu discurso pacifista, “disparo em todas as direcções, disparo todas as munições”, e a guitarra sublinha estas descargas balísticas com o acentuar e acelerar dos acordes sublimando uma tensão quase angustiante; sobrevém o pulsar do baixo eléctrico de Sandra Baptista; “não gostar do que é feio”, e a guitarra eléctrica de Maria Antónia Mendes dispara, “disparo em todas as direcções”. As palmas eclodem e são educadamente recebidas pela Maria Antónia Mendes: “Obrigada”. A próxima canção tem o nome de baptismo: “7 Pragas”, com uma programação espaçada e o baixo eléctrico de Sandra Baptista propulsa sangue como um coração apaixonado, que instituem uma discreta mas acentuada dança para uma pista de mulheres diáfanas, que entoam palavra por palavra o percurso ditado por Maria Antónia Mendes: “Segunda-feira vou à missa. Terça-feira vou à bruxa, Quarta-feira seduzo o terapeuta, Quinta-feira vou à feira, Sexta-feira da feira volto”, e quando se sente deprimida é “ao fim de semana porque não fodes, enfio-me na cama”, este abandono é sinónimo de dor; o ritmo é mais curto como o golpe de uma ponte e mola mas não deixa de convidar a que os ouvintes dancem em volta de túmulos de néon: “Não sentiste a morte? Foi o dia da tua sorte”. Reintroduzem a métrica inicial sobre a qual canta Maria Antónia Mendes sedutoramente: “As sete pragas que me rogas, que me rogas vais pagá-las, serão a tua sorte, no dia da tua morte”, e o epitáfio é uma melodia assustadoramente infantil, “desaparece”. A quarta canção: “Solta-me”, tem uma percussão manuseada por Maria Antónia Mendes e o acordeão negro está preso ao tronco da Sandra Baptista que dedilha o seu teclado e botões enquanto abre o fole, “tenta andar nos meus sapatos”, que é tolhido por uma ruralidade com epicentro na noite, “veste-me”, e sobre o bater do bombo a voz de Maria Antónia Mendes descreve um homem que “abre o peito, respira de peito aberto”, e determina a esse intruso que a penetre, “rasga-me”, o acordeão responde-lhe num respirar trágico mas simultaneamente hipnótico, “tenta abraçar o meu mundo”, o dramatismo é sublinhado pelo acelerar do ritmo da canção, “solta-me”, e no imperativo dito alto: “Rasga-me”. A quinta canção “Confissão” tem uma programação distante e o acordeão é fúnebre e a voz da Maria Antónia Mendes reza e canta e associa-se a uma fé alicerçada na irreverência: “De nada me serve as contas que Deus fez”, não há qualquer arrependimento, “não é que me importe”; o acordeão perfila-se perante uma procissão das velas e marca-lhes o compasso, “quantas vidas ainda tenho? Consigo eu pagá-las em confissão?”, a melodia é uma força vigente que se impõe como um esteio de espinhos, “que me salve desta agonia um raio de luz”; “em desgraça desta vida dou-te a bênção tu dás-me a mão”, e o acordeão dengoso instaura uma perspectiva ampla sobre um circo fúnebre onde os palhaços são esqueletos andantes que divertem a morte, ecoa uma reza de uma multidão de mulheres: “Santa Maria reino de Deus….”. Na sexta canção “Confesso” a Maria Antónia Mendes dedilha uma guitarra eléctrica e a Sandra Baptista o baixo eléctrico e instituem uma textura pop-rock, a voz da primeira está presa à dor: “Confesso que pequei”; “quantas avé marias preciso? Quantas ave marias preciso?”, predomina a guitarra eléctrica que é de uma tonalidade aguda, “confesso que pequei, que gostei”, sobressai o rock, “quantas avé marias preciso?”, e o seu timbre aproxima-se do fado, “quantas ave marias preciso?”. A sétima canção, “Os Funerais são o Casamento dos Mortos”, é segundo Maria Antónia Mendes de cariz autobiográfico: “Foi precisamente aí que a gente se encontrou: num funeral.”. Domina o baixo eléctrico da Sandra Baptista que acompanha o canto magoado da Maria Antónia Mendes: “Os funerais são os casamentos dos mortos, casam sem par no cheiro das flores”, acompanhada pelo baixo e por uma programação que é um fluxo lento, “vão bonitos até, elas escondidas de grinaldas, eles viris nas barbas feitas”, sobre a calçada portuguesa húmida seguem, “jovens no meio das mães em procissão”, ouve-se uma trompete que poeticamente ilustra uma alma filha de duas mães. A seguinte canção “Medo”: “É dedicada a todos aqueles que sabem o que é um ataque de pânico”, mas assegura, “que isto é só a brincar”. O baixo eléctrico de Sandra Baptista é encorpado e destaca-se a voz da Maria Antónia Mendes: “O frio que te arrefece, os passos que te invadem, não te consegues mexer”, grita; “não toques no meu passado”, o baixo encurta a sua métrica e alinha pela pop, “medo? se não houvesse sombras, se não houvesse escuro”, “o teu medo?”, a guitarra de Maria Antónia Mendes rebela-se contra a harmonia do baixo eléctrico, “estás paralisado”, Sandra Baptista: “Estás paralisado”, e o silêncio contamina-as esotericamente mas Maria Antónia Mendes quebra-o: “Respira”. Palmas. Maria Antónia Mendes questiona o público: “Espero que não tenham tido um ataque de pânico”, e “na próxima música” realizou o “sonho” de executar “um solo, mas um solo só com uma nota”, e dedica-a a “quem sabe o que é uma coisa chamada ciática”. “Ciática” onde a guitarra eléctrica da Maria Antónia Mendes é pop-rock sustentada pelo baixo da Sandra Baptista; a primeira descreve um corpo: “Dorido estendido no caixão para aliviar a dor, vais mudando de posição”, a vertente pop-rock é dominante; “vou abrindo a nossa cama”; a narradora conta que “não sou muito inteligente, mas sou um bom recipiente”, e a sua guitarra eléctrica sola numa nota aguda de frente para a Sandra Baptista; “temos esta estranha forma de nos darmos sem nos darmos”; e repete: “Não sou muito inteligente, mas sou um bom recipiente”, e a cantora sola numa nota aguda mas desta feita ainda mais sustenida. A decima canção “À Mão Armada” tem uma programação synth sobre a qual se intromete o baixo eléctrico da Sandra Baptista e a Maria Antónia Mendes canta: “Antes de acordar sinto a raiva enferrujada”, o baixo e a programação remetem para um universo em que impera o negro sobre o negro, e o timbre da cantora é o de uma fadista perdida numa urbe em ruínas, “a minha vida cheia de regras antigas, numa gaveta fechada, nada tenho a perder”, como uma diva do bas-fond vive isolada, “não ouço, não quero saber”, mas há um rasgo de luz, “às vezes as palavras nada têm a perder”, “putas”, “nada têm a perder”. Maria Antónia Mendes apresenta a “próxima canção” que “não vão encontrar no disco [“Acho Que É Meu Dever Não Gostar”], quiçá, “foi feita há um mês” e “chama-se ´Sem Vida`”. Uma programação que se resume a umas banquetes no prato de choque e a Sandra Baptista introduz com o baixo notas repetitivas; Maria Antónia Mendes sofre com a rotina que a oprime: “Na hora de jantar”, em vez de se sentar, “arrumo a cama onde se vai deitar”; o ritmo implementado pela programação e pelo baixo de Sandra Baptista é curto e rápido; “ a agonia volta amanhã, a agonia volta amanhã”, a guitarra é como um desfibrador a tentar reacender um coração, “embrulho os lençóis”, a altura aumenta e é intensa, “a agonia volta amanhã”, e a cantora sola e irradia tensão, “cansada”, Sandra Baptista: “Cansada”; Maria Antónia Mendes: “Arqueada”, Sandra Baptista: “Arqueada”. Maria Antónia Mendes: “A agonia volta amanhã”. A décima segunda canção tem como premissa o jogo: “Então agora vamos brincar um bocadito?...”; a programação incide sobre um universo infantil onde domina o absurdo, o baixo de Sandra Baptista é másculo e adulto como se fosse um psicanalista a ouvir uma doente: “Eu sou a Alice, eu sou feliz, queres brincar comigo? Queres brincar com a Alice?”; a guitarra da Maria Antónia Mendes intromete-se no discurso do baixo eléctrico e impõe a sua ansiedade, “é para descer? Adorava saber, quantos metros cai até agora, quantos metros cai até agora”; Sandra Baptista sola e dá sobriedade à canção pop e Maria Antónia Mendes reintroduz a sua guitarra perturbante, “então venha mais gente”, a guitarra e o baixo eléctrico intercalam-se, a voz fica em suspenso: “Quantos metros cai até agora?”. Pausa. As Señoritas tocam os acordes da canção de trás para à frente mas a um ritmo acelerado, e a voz de Maria Antónia Mendes é aguda e angustiante: “Alice”, e grita: “IIIIII”, e a loucura abandona lentamente a Alice: “Cai devagar”, “no teu relógio tens horas a dar?”. Maria Antónia Mendes abandona a sua personagem e lamenta o seguinte: “Coimbra nós temos este problema convosco: O tempo passa muito depressa”, e, “vamos passar à nossa última canção”: “Nova” e “se conhecem esta música podem cantar connosco”. Tem como principio uma programação dengosa que é traduzida pelo acordeão da Sandra Baptista para um universo circense, “lutamos pela vida, lutamos contra o medo”, e o seu balançar de navio inebriado convida à dança, “viver bem, sempre nova”, mas, “com os pés para a cova”; a Sandra Baptista faz abrir e fechar o fole do acordeão resgatando arlequins e ilusionistas, Maria Antónia Mendes dobra o braço no ar como se estivesse a afrontar essas figuras que são fruto da ficção, “faço o que penso com amor”, e o discurso é politizado: “Quem não me segue que fique com a dor”, o acordeão ilustra um dobrar e desdobrar de ondas sob uma lua de fancaria, “meu amor traidor”. A sala eclode em palmas e as Señoritas encontram-se em pé a acompanhar a multidão e estão indecisas: “Querem um encore?”. A canção denomina-se de “Triste em Mim”, onde o baixo eléctrico da Sandra Baptista é uma sombra que vibra ao ritmo das notas negras, e a Maria Antónia Mendes tem uma voz de mulher num solilóquio enlutado: “Saíram de mim, triste em mim”, o baixo eléctrico acompanha-a por entre as ruas do Alto do São João, “em que os gritos dos velhos chegaram a mim”; e “em que os cães se calaram e o tempo parou”, ouve-se o tempo imposto por um metrónomo num fluxo sincopado; “não valho mais que uma formiga num carreiro”, há uma interferência por parte do baixo eléctrico a impor o distanciamento ao ouvinte; em spoken word Maria Antónia Mendes sublinha: “O ataque feroz de quando em vez”; “e o silêncio gritou (outra vez)”,e o baixo eléctrico de Sandra Baptista propulsiona as notas do refrão: “Algumas vozes podem parar o mundo, a bala estourou”. A plateia encontra-se de pé a aplaudir as Señoritas; Maria Antónia Mendes é peremptória: “Muito obrigado! Agora sim para acabar”, vão tocar uma canção de “uma banda que os mais antigos se devem lembrar”; “de uma banda chamada Sitiados”. “Amanhã” é sujeita a uma revisão por parte de um baixo eléctrico e de uma guitarra que exacerbam os acordes festivos, “um beijo a quem me faça sempre voltar”; e se fosse amanhã “que alguém morre nos braços do mar, alguém morre sem acreditar”, e o baixo acompanha o canto alegre mas de um anarca: “O Deus que me assiste já morreu”; e o baixo e a guitarra alternam-se num frenético e dilacerante de planos e contra-planos, domina o grande plano sobre um rosto de olhos azul-turquesa e cabelos louros a pender sobre os ombros que sorri timidamente e que canta: “É a esperança que resiste amanhã”, e nesse dia “ergo uma igreja a um Deus que me faça dançar”. “Alguém morre nos braços do mar, alguém morre sem acreditar”. “A esperança que resiste amanhã”. “Amanhã”. “Amanhã”. “Amanhã”.

Señoritas, Tour 2016, 8 de Outubro, Teatrão









quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Ensaios Sobre Literatura

As sombras instalam-se semanalmente como se fossem velhas amigas daquelas que usam dentes postiços e perucas de palhaço, que nos reflexos dos cromados que emolduram um espelho se revêem jovens e belas. Haverá arte mais tonta do que ver uma imagem que não existe, que é produto da concepção produzida pelo cérebro, mesmo que nesse reflexo surja o “eu” que é redutor pois corresponde a duas vogais a acasalarem. Inevitavelmente a metáfora é o único meio para me aproximar do “eu”, ao qual se exige que não cristalize como uma teia de aranha que cobre o meu rosto e o distorce numa máscara. No palco do Salão Brazil encontra-se o Bone Zone que poderia ser o nome de um ditador na Joy Division, mas somente corresponde a um homem de meia-idade magro, veste um fato preto e uma bota branca com uma pandeireta e a outra que é preta toca nos pedais; está sentado com uma guitarra eléctrica ao colo que debita blues e por vezes mescla-os com o rock, mas a repetição de estruturas estereotipadas transformam-no num músico desfasado da contemporaneidade Pop; as canções que roçam a criatividade são as que têm uma guitarra em loop e a de Bone Zone em tempo real. Quando este parte uma corda da guitarra; Victor Torpedo acorre e empresta-lhe uma outra e com a de Bone Zone senta-se no degrau que forma o palco e substitui-a, enquanto Bone Zone canta um amor frustrado, aparentemente está habituado a ser servido por um Rei. Bone Zone surpreende ao convidar o Pedro “Calhau at sax” e de seguida sublinha displicentemente: “It`s time for our sax player”; mas o espaço que dividem nunca é satisfatório porque Bone Zone requere-o maioritariamente e nessa medida não há comunhão. Bone Zone durante a sua actuação ainda se permitiu a meter a mão no interior das calças para tocar no pénis ou pontapear o seu copo para o público despojando o palco do seu carácter litúrgico. Quando acaba o seu tempo de palco não acede por duas vezes aos pedidos do Carlos Dias para que o abandone, tal comportamento apenas revela que este pobre e triste ditador deveria ser remetido para o esquecimento. No hall do salão avisto sob uma luz clara um Canibal de olhar ameaçador que parece vir desgastado do concerto do Bone Zone, não pede lume ou tão pouco se senta ao meu lado e desaparece para uma ficção do Conrad. As paredes brancas sofrem da falta de desenhos rupestres e de à superfície de canos enferrujados ou de tijolos que escondam ratos aficionados por um flautista infantil. Perante tamanha carência apenas me resta espreitar o concerto dos Alien Church que têm a Kart Morg na bateria de vestido de veludo preto onde atracam os seus cabelos de espigas selvagens. Na primeira canção citam o rock progressivo mas manchado pelo noise e a voz do Mr. Atkins é um eco processado em que não se entende o que canta, salienta-se como um elemento perturbantemente kitsch. A segunda canção é tão curta e desorientada que não dá tempo para ser devidamente avaliada. A terceira apresenta um twist rock, “twist”, “Why?”, que se metamorfoseia num ska tóxico destinado a consumidores de MD. A quarta tem umas maracas providenciadas pelo Mr. Atkins sobre o ritmo funk e a guitarra eléctrica de Jed Lic II deflagra em delay, e o cantor lê o Velho Testamento: “EIOOO”. A quinta é de uma infantilidade atroz qual nursery rhyme para adormecer ratos; gradualmente os Alien Church transformam-se numa banda de figuras fantasmagóricas. A sexta tem um ritmo dois por dois e a voz em eco do Mr. Atkins; e a gramática que implementam é sublinhada pelo sintetizador de igreja descrita no “Processo” de Franz Kafka. Mr. Atkins ergue os braços dançantes e no ombro direito consta um terço brilhante, levanta a Bíblia e evangeliza a plateia: “OOOO”. O microfone do Jed Lic II é tomado por Bone Zone que vocifera e esperneia como se estivesse a vir-se numa vulva de uma rã desenhada pelo Walt Disney. A bateria da Kat Mog e o baixo eléctrico de V. tentam acompanhar a cantoria do invasor que se faz passar por um diabrete puramente exibicionista. À sétima ressaltam cores negras providenciadas pelo baixo de V. que emoldura a canção numa janela gótica. A oitava parece desconjuntada ritmicamente algo que não a arruína, antes, devido à sua esquizofrenia parece uma tela pintada por Syd Barret que posteriormente a queimaria. A última canção dos Alien Church tem um órgão kitsch processado para num baptistério com painéis do Jeff Koons, o crescendo a que incorrem é uma unidade perturbantemente anti-esotérica que é sublinhada pelo theremin manuseado por Mr. Atkins. Posteriormente dada a violência da frequência rítmica associada ao baixo de V. visceralmente perpassam um campo de refugiados punks: “He he”; e sobre este tumulto o órgão essa voz cada vez mais perturbante sobressai e emancipa-se a guitarra do Jed Lic II num solo em delay no meio do público. “Wah”, a progressão é um elixir tóxico de tão negro e o theremin exaspera como um ataque de pânico, “oooo”, num fim épico. Acrescento ao silêncio mais silêncio num encaixe perfeito e acendo um cigarro para me abstrair da sua companhia, filho de tudo o é que efémero e que se revê num vazio intransponível e anseio pela anulação da consciência. Quando inspiro o fumo e o expiro formasse uma ondulação que desaparece consumida pelo oxigénio, aceno para uma figura distante que julgo conhecer de um quadro antigo mas não obtenho qualquer resposta, ela mistura-se com a multidão que espera pelos Subway Riders. Carlos Dias encarna em Carlos Subway e através da sua voz grave apresenta a família: “Victor Subway, Calhau Subway e Chau Subway e o nosso elemento mais bonito o Augusto Subway”, que se encontra atrás do seu sintetizador. A primeira canção “é quase parecida com a que temos tocado. As próximas têm arranjos novos que fizemos há bocadinho”. “Mono Stereo” tem como centro a repetição de uns acordes viciantes implementados pela guitarra eléctrica de Victor Subway, o saxofone de Calhau Subway insurge-se e a canção ganha uma dimensão dramática que é prolongada pela progressão. Carlos Subway: “Mono stereo”, e a tarola mecânica do Chau Subway infectam-na com violência. Calhau Subway: “Mono stereo”; transformam-na num contínuo repetitivo destrutivo com a ligação à terra da guitarra de Victor Subway, “mono stereo”, e o remoinho dissipa-se no auge da sua construção. Carlos Subway divaga: “Esta que se segue é uma história de amor falhada. Todas as nossas músicas são histórias de amor, esta música chama-se ´Adele`”; “´Adele` é em francês soa mais intelectual”, mas o teclado do Augusto Subway está bloqueado e dessa forma é incapaz de introduzir o respectivo loop. Perante este impasse Carlos Subway recorre a um dos “clássicos” dos Rolling Stones “(I Can't Get No) Satisfaction”: os acordes instaurados por Victor Torpedo não são decalcados aos do Keith Richards, introduz uma perspectiva mais negra e nessa medida ainda é mais visceral que o original; “I cant`t get no”; sobre estes surgem as maracas do Calhau Subway que são tão kitsch quanto latinas, e dança e canta como se fosse o Mick Jagger: “No, no, yeah yeah”; Carlos Subway: “Yeah, Yeah”. “And I try, and I try”; e a cadência mecânica do Chau Subway ganha preponderância e somente pára quando a tarola cai. A seguinte já fora anteriormente apresentada por Carlos Subway: “´Adele`”, que tem por base um loop do sintetizador sobre a qual se dispõem os restantes Subways, e há espaço para que a voz de Carlos Subway se exprima através de uma sedução incomensurável e que o seu corpo hirto sofra pela bela: “Adele, Adele, Adele”, como se estivesse sob o domínio de uma obsessão que o conduz para um falhado suicídio. A quarta canção tem por princípio uma sátira ao funk providenciada pelo teclado de Augusto Subway e pela tarola de Chau Subway: “Jamaica”; “hight so hight”, a oralidade de Carlos Subway remete para as vozes graves e intoxicadas dos jamaicanos que apregoam erva na praia às turistas em topless, e a guitarra de Victor Torpedo está tão pedrada que se ouve num eco distante. O porta-voz dos Subway Riders informa: “Não fazemos dedicatórias às canções”, mas abre uma excepção em relação a um amigo, “nosso que foi para outro sítio e vamos cantar esta música para ele”. Quem será? A quinta canção tem um ritmo pausado e uma melodia fúnebre que simultaneamente realçam um tépido e deslumbrante kitsch; Carlos Subway: “I love you so” e Calhau Subway responde-lhe: “Auaua”. Acentuam uma tristeza que de tão dolorosa que somente deve ter origem no absurdo Pop; Carlos Subway: “I love you so, I love you so”, determina ao público que se solidarize com a sua dor, “abraçai-vos”, “oooo I love you so”, Calhau Subway: “Ouuu”. Surge no palco Bone Zone que é discretamente corrido pelo Calhau Subway, que por este acto mereceria ser condecorado com a Ordem de Mérito. A sexta canção corresponde a três notas que como bolas de sabão eclodem no ar e Calhau Subway dá-lhes corpo de palavras: “Pupupu”; as três notas são tão kitsch quando desconcertantes: “Pupupu”, após a qual Carlos Subway esclarece que “estamos quase a acabar”. A sétima canção tem um beat repetitivo sobre o qual a guitarra eléctrica de Victor Subway introduz uns riffs semi-distorcidos que repetidamente promovem a escassez de felicidade e as maracas do Calhau Subway pigmentam-na de uma curiosa e delirante festividade kitsch; Victor Subway não pára de debitar o tal riff mas mais alto e mais rápido. Carlos Subway: “James Brown”, e Calhau Subway no saxofone sola numa efervescência discursiva desconstrutivista, “James Brown”, e Calhau Subway insere diversas vezes o microfone na boca do saxofone num felácio trans-rock. A última canção segundo Carlos Subway sofre do seguinte: “Não sabemos a letra”, e, “ainda por cima não é nossa”. O synth beat presume que se está perante o kraut e o rock advém da guitarra eléctrica de Victor Subway que é entrecorta com a de Calhau Subway arquitectando um núcleo inqualificável. Victor Subway abandona a guitarra e segura num microfone para o qual simultaneamente canta com o Carlos Subway: “Stereo”. Soam as maracas libertinas do Calhau Subway enquanto domina o synth beat do Augusto Subway e a anarquia encontra finalmente a sua definição na efemeridade conferida pela performance.

Subway Riders, Alien Church, Bone Zone, 4 de Outubro @ Salão Brazil