domingo, 8 de dezembro de 2019

Two Years Eight Months and Twenty-Eight Nights

O Grupo Novo Rock (GNR) são a instituição pop portuguesa que ao longo de trinta e oito anos no activo procurou alterar esta natureza que lhes é intrínseca para outras e diversas latitudes sem que tenham reflectido se tais variações lhes fossem benéficas mas é inegável que eram (e ainda o são) ousados ao ponto de muitas das vezes esta tenha sido um acto hara kiri e num país de poucos amantes de música pop e avessos a esta heterogenia muitos tenham abandonado a banda e isto principalmente após o álbum “Rock In Rio Douro” responsável por terem sido a primeira e única banda portuguesa a encher em 1992 o Estádio de Alvalade não era um recinto qualquer por ali haviam passado Rolling Stones ou David Bowie e a isto somou-se uma exposição mediática sem paralelo sobre os GNR e que lhes causou danos pois após o “Sob Escuta” (1994) estariam irremediavelmente reduzidos a um trio que inclui o compositor Tóli Cesar Machado --que se afirma como dominante a partir do “Psicopátria” (1986)-- e o Jorge Romão figura que nos concertos é imparável na forma como toca o seu baixo eléctrico e o Rui Reininho um poeta pop surrealista que por si só preenche um palco com a sua gestualidade teatral e o Parque Municipal de Exposições recebe os GNR acompanhados pelo habitual Samuel Palitos na bateria que em tempos foi um punk de Alvalade que tocava nos Censurados e o estreante Rui Maia no lugar do Paulo Borges e do Marco Nunes e como tal encarrega-se-ma do teclado vintage e da guitarra eléctrica num exercício de alternância que se devera reconhecer como de inexcedível de tão virtuoso e é esta alteração que me traz à Marinha Grande que é tão feia quanto outras tantas cidades mas uma fealdade ímpar algo deveras paradoxal e antes deste concerto vi os GNR com a Banda Filarmónica Matosinhos-Leça (da qual Rui Reininho é o presidente) e na Gafanha da Nazaré sob um temporal que quase levou ao cancelamento do concerto que não teve direito a qualquer encore apesar dos resistentes clamarem pelas “Dunas” e como tal aqui estou no backstage a conversar sobre arte contemporânea com o Tóli Cesar Machado ou a dissertar sobre Nietzsche com o Rui Reininho ambos de uma simpatia e cordialidade que os engrandece dois dos motores criativos dos GNR responsáveis por hinos rock/pop que definiram esteticamente a década de noventa do século XX e numa altura em que se celebriza o António Variações é de lembrar que o Tóli Cesar Machado esteve envolvido na produção do primeiro álbum do cantor de Amares e sobre o Rui Reininho a lista é tão extensa que inclui inúmeras posições tão polémicas que eram meros absurdismos que se transformaram em escândalos ou a irar-se contra o público do Super Bock Super Rock ou a insurgir-se contra a estética da Casa da Música ou ainda o litigo que manteve com o ex-presidente da câmara do Porto Rui Rio que durante a sua vigência vetou os GNR a pisarem o palco da Avenida dos Aliados mas perante a adversidade (seja ela qual for) os GNR transpõe-na com inteligência mas com um instinto de sobrevivência que transversalmente percorre o concerto demonstrando que estão dispostos a se libertarem de inúmeros elementos que datavam as suas canções a uma determinada época e por norma é aquela que lhes deu fama e fortuna e ao fazerem esta subtracção estão a libertar-se umbilicalmente do passado e dispostos a enfrentarem o amanhã com uma renovada e virtuosa pele que os regenera incutindo-lhe tonalidades pop soturnas encadeadas em repetições minimalistas que paradoxalmente maximizam o âmago das canções num fluxo narrativo que é da ordem do inconsciente engrandecendo a dimensão melódica e psicadélica que é um subtexto ao canto irrepreensível do narrador Rui Reininho que encontra na base sonora espaço para expandir-se de uma forma tão eloquente quanto lírica e como tal quem sabe se no próximo seja ainda melhor e tudo o que escrevi é um mero postal de uma banda que se faz de novo ao futuro sem medo aliás como sempre e para sempre amarei os GNR.

GNR, 6 de Dezembro, Parque Municipal de Exposições, Marinha Grande.

Dedicado à Rosa Balreira.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

The Psychopathology of Everyday Life

A noite é fustigada por um intenso temporal em Coimbra ou será outra cidade qualquer a beira do Mondego ou então é Coimbra e por isso devo estar na proximidade do Teatrão ou talvez esteja perdido na Praça da República a beber uma cerveja de um copo inquebrantável que se parte acidentalmente contra a calçada portuguesa pontuada por portuguesas e por portugueses e de outras nacionalidades vagamente provincianas acende-se a luz verde de uma porta e é a da Tabacaria sítio do rock and pop e outros tóxicos saudáveis tal como é a relação antagónica entre os Wakadelics e os PSICOTRONICS; os Wackadelics são uma profusão de referências académicas que passam pelo rock progressivo ou pelo flamenco e esta díspar e heterogénea oferta é quase um sortilégio esquizofrénico que se espraia proficuamente mas que pode provocar uma distorção proporcionada pela contínua alteração do ritmo a quem se encontra presente e nessa consequência poderão ser nocivos a quem seja sensível a tais variações sobre variações de variações; quanto aos PSICOTRONICS recorrem a samples e a programações predominantemente synth que são ora corrompidas ou canibalizadas pela guitarra eléctrica do Victor Torpedo com a conivência do Pedro Antunes que alterna a guitarra eléctrica com o baixo e a liderar este dueto visceral encontra-se o Marquis de Cha Cha vestido de Pierrot mas que tem o rosto maquilhado de “Joker” tal como o psicopata interpretado por Joaquin Phoniex que dança com o intuito de contagiar o público no meio do qual se encontra a cantar algo destituído de lógica isto é Dada impondo-se à banda como uma personagem que passa da tristeza ao êxtase sem que para tal haja um motivo que segue decadentemente o beat e a frequência melódica que instauram um kraut kitsch rock; uma outra velha nova cidade onde desagua o Mondego suponho que a hibernada Figueira da Foz essa bela colectividade de andaimes ferrugentos e ocupada por uma burguesia de pensamento de baixa altitude que se poderá erradamente apelidar de criminosa do bem-estar se este for a delapidação da natureza e a ditadura do alcatrão e do betão mas tais considerações são de um político que somente faz da liberdade de expressão a sua cátedra mas leia-se o código penal como uma ficção escrita por um doido para se perceber porque as prisões estão sem esses delinquentes e perceber-se-á o que de mal fez a democracia a esta cidade mas isso pouco importa e o que me traz ao Meeting Point (espaço debaixo da Esplanada Silva Guimarães) é o Woodrock In Town que apresenta Johnny Dead Radio e Twelve Billions e é este colectivo que assume a primeira parte e a oferta musical é de um hard rock que se encontra limitado à sua génese sem que tal lhe seja benéfico antes pelo contrário isto é obviamente mas por outro lado quando adicionam algo mais heavy ganham alguma força motriz criativa e reticências mas esta virtude perde-se quando o vocalista/guitarrista dá uma ordem nazi ao público: “Mexam-se caralho!”; Johnny Dead Radio são um composto que se exprime através de um hard rock deveras finalizado com o intuito de ser objecto de atenção pela rádio e outras formas de comunicação digitais e este trunfo tem um valor insofismável assim como a forma competente com que executam as canções sem que haja qualquer falha e a somar a estes pontos há a performance inexcedível do vocalista assim como a de um público no limiar de uma loucura que os enfurece num exorcismo colectivo que é reflexo de que os Johnny Dead Radio não deveriam estar a tocar sob a Esplanada Silva Guimarães antes o lugar deles é lá em cima.

PSICOTRONICS + Wakadelics, 22 de Novembro, Teatrão.
Woodrock In Town (Johnny Dead Radio + Twelve Billions), 23 de Novembro, Meeting Point, Figueira da Foz.

Em memória do António Tavares-Teles.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Beyond Good and Evil

Decorre nesta noite de Novembro uma tempestade que gradualmente se abate sobre a cidade do Porto salpicando-a com um pontilhismo luminoso de tão obscuro que a envelhece em cada segundo que passa e em cada passo que dou e friamente meto essa fotografia no bolso do casaco preto de cabedal e procuro o bilhete para ver no Hard Club os Primal Scream mas previamente há actuação dos portuenses Fugly que derramam a sua verve punk mas assediada constantemente por um trash vibrante que lhes confere uma densidade predominantemente agressiva e as inúmeras variações rítmicas incute-lhes uma eloquência atroz e pena que haja tão escasso público e que isto se reflicta aquando da entrada em palco dos Primal Scream que se atêm ao predomínio de programações e samplers que são rasgadas ou reconstruídas pela guitarra eléctrica do Andrew Innes mas a gramática que predomina é a de um ritmo atroz que provoca uma perturbante claustrofobia que paradoxalmente é tão apelativa quanto dançante e quem dança no palco é o Bobby Gillespie que enverga um fato cor-de-rosa desenhado pelo Alexander McQueen que esteticamente se encontra inscrito entre a década de sessenta e setenta do século XX e esta ambiguidade oferece-lhe um simbolismo de figura enquadrada no tempo e no espaço que o rodeia com figuras fotografadas pelo Lewis Carroll do qual se tal fosse possível o Bobby Gillespie teria sido o modelo humano para a Lagarta azul no “Alice No País das Maravilhas” e os Primal Scream ao se munirem do fluxo absurdo do livro deflagram canções em que impera o psicadelismo mas um psicadelismo sustentado na repetição numa métrica estruturada para violentar o consciente a isto associam os strobs que aprofundam a violência do ritmo num estilhaçar e ou numa decomposição do kraut rock e esta delapidação é algo digno do sagrado de tão corrosivo e isso poderia decorrer ad eternum sem que haja qualquer atenção para as paisagens circundantes que formam um vórtice e desaparecem e esse quadro volátil é o detonador de um outro conjunto de imagens canibais e vice-versa e etc. e após este derrame de ácido musical sobre os cérebros até aí virgens de tal delirante droga o Bobby Gillespie anuncia que agora vão “slow down” e inscrevem um blues rock mergulhado numa densidade tão decadente quanto austera em que as cores são negras que gradualmente se transforma num rock violento viril e tempestivo ouvem-se as palmas do público a acompanharem a corresponderem ao Xamã vestido de cor-de-rosa que sente a dor da despedida de um amor que julgava eterno “baby stay with me”, “stay with me”, “stay with me”, e prosseguem para o recrudescer de um rock com reminiscências às décadas de sessenta e setenta (século XX) que oferece às canções um cariz de festividade incomensurável de tão urgente e que não se extingue no rock antes reafirmam-no como o evocar de uma memória épica que têm o talento de transcender e nessa medida rejuvenescem-no para algo que apela a que se dance sem qualquer restrição e se alcance uma liberdade hedonista que apela a que se limitem ou se anulem inúmeros preconceitos e se nutram desta energia que percorre o concerto transversalmente numa estrutura musical e narrativa em que a voz do Bobby Gillesppie desempenha um papel de cantor que tem uma dicção assertiva de tão presente quanto o seu posto e este centro é o catalisador da indução a uma hipnose que confere a quem está presente a estar ausente mas paradoxalmente a bater palmas à performance apoteótica dos Primal Scream.

Primal Scream + Fugly, 6 de Novembro, Hard Club, Porto.

domingo, 20 de outubro de 2019

Lejos de Veracruz

Estou na Pena no Centro Cultural e Recreativo da Pena composto por um salão onde se encontra um palco (palco Anaia) que nas duas anteriores edições do Festa D`Anaia foi pisado pelos The Twist Connection ou The Parkinsons e onde houve tocadores de gaita-de-foles que ofereceram ao espaço uma ruralidade desmedida e ainda há um segundo palco que se encontra no bar (palco Efervescente) mas é o primeiro que debita um som propenso ao nu metal e ao hard rock que dominaram as rádios e a MTV na década de noventa isto é óbvio do século XX se para os Millennials possa parecer-lhes algo tão novo quanto urgente que decorre de ignorarem que estes géneros eram uma vertente decadente do rock e destes são fiéis signatários os Sins of a Man; Xamaril (palco Efervescente) sublimam uma noção do que poderá ser a música medieva de cariz festiva e isso tem origem na gaita-de-foles mas por vezes imiscuem-se perigosamente no reggea ou são responsáveis por cânticos futebolísticos ideal para quem bebe uma cerveja e se imagina sentado numa mesa senhorial com anões e anãs a dançarem para divertir o cortesão e as cortesãs; Cosmic Mass (palco Anaia) poderiam ser Comic Mass e talvez este novo baptismo os absolveria do discorrer de um distorcido repetitivo que se enquadrará num punk que por vezes é trash e vice-versa mas nesse vai e vem bipolar os Cosmic Mass não logram revelar-lhe algo mais do que um formalismo inócuo e que é deveras exasperante dada a sua unidimensionalidade; por falha inculpável não presenciei a actuação de Kopke (palco Efervescente); quanto à Baleia Baleia Baleia (palco Anaia) é uma sequência de variações pop que encontram uma constante numa eficaz variação rítmica que acompanha o cantor baixista que traduz a actualidade num português do nono ano e nessa medida é eloquente porém são meramente ilustrativos de episódios diversos com origem em lugares comuns e estes slogans acrescentam algo à vida na rede social mais próxima e nesse reflexo é assertivo mas paradoxalmente propenso a se diluir no tempo; D3O (palco Anaia) actuam segundo um transe de rock and roll que é de uma violência portentosa de tão eficaz ao qual incutem diferentes e varias variantes mas há dois pólos opostos que se relacionam equilibradamente a demência e a lealdade à razão e é nessa assumpção que são imponentes de tão gigantes; e é altura de mudar para o segundo dia da Festa D`Anaia que tem sido o mais concorrido porém a tempestade que se abate sobre a Pena fez com que tal não se concretizasse o que é uma pena já que é o dia do Conjunto Corona mas serão os Kings of the Beach a encerrar o palco Anaia mas não devo omitir que ainda haverá lugar para os djs até de manhã; Granjo (palco Efervescente) toca a guitarra acústica e canta quase sussurrantemente numa melancolia que se equipara aos dias cinzentos que se erguem num horizonte imperfeito e a sua lírica espelha esse desalento poético pontuada por uma ironia elegante e como exemplo este apontamento: “Eu nunca mudo, eu mudo sempre sem mudar” (épico); A Pupet Show Named Julio (palco Anaia) mais um nome interessante ou antes poderá ser intrigante o porque de tal designação que ficaria bem a uns mariachis alcoolizados pois a banda limita-se a replicar um universo indie de uma banda ultra conhecida com origem em Nova Iorque e como tal espera-se algo mais ousado pois são um conjunto compacto; Chalo Correia (palco Efervescente) somente à guitarra acústica que parece que a multiplica em outras tantas dada a versatilidade deste angolano que é um embaixador supremo do folclore musical do seu país que é tão vasto quanto árido mas a voz de Chalo Correia é quente e envolvente de tão magnética que usa o Kimbundu e sobre este refere “que tem muitas palavras em português” e este africanismo é por exemplo elegantemente explanado numa “rumba angolana”; Holympo & Heartless (palco Anaia) são uns adolescentes que julgam que produzem algo parecido com hip hop mas de facto é somente parecido o que pressupõe que delineiam a sua forma mas que estruturalmente está pejada de inúmeros erros para além da dicção dos Mcs ser fraca não se percebendo porque se revoltam e porquê ou porque de por vezes chorarem por um amor que perderam na primária; há uma jovem sexy que a dada altura do concerto se apresenta “Sequin” (palco Anaia) e explica como se deve pronunciar o seu nome artístico acompanhada por dois comparsas que produzem um synth pop de cariz dançante que encontra em Sequin a tradutora deste ritmo a dançar insinuantemente como se estivesse a faze-lo para influenciar a audiência mas tal é em vão e a forma como canta é tão envolvente quanto encantadoramente bela; por fim o Conjunto Corona (palco Anaia) é uma trupe de hip hopers tipificados num absurdo desconcertante que narram universos populares entre o Porto e Gaia e outras localidades proficuamente obscuras e esta capacidade de enunciar assertivamente uma cultura onde impera o machismo e ou o tuning e o uso de drogas recreativas ou o roubo é pró e anti-gunas e esta ironia é como se fosse um ácido que coroe esse universo afectando-o paradoxalmente com sua inclusão no imaginário popular do qual somente a pop detém esse poder e nesta medida são de uma verve incisiva e precisa quanto os GNR o foram durante a década de oitenta (século XX); o encerramento destes dois dias de festa cabe aos galegos Kings of The Beach que se limitam a decretar o fim do rock and pop que por vezes derrapa inconscientemente para o punk mas um punk sem qualquer métrica criativa há muita ginástica por parte do baixista e que no intervalo das canções tem a arrogância de imitar a voz esganiçada do guitarrista e isto prolonga-se até que há uma tensão entre ambos que aparenta que estão na disposição de se agredirem algo que seria verdadeiramente punk curioso é que nas ruas de Barcelona decorriam batalhas campais pela independência da Catalunha e contra a sentença de prisão a diversos representantes políticos da região autónoma e no palco da Anaia decorreu algo deveras tão ou mais decepcionante.

Festa D`Anaia, 18 e 19 de Outubro, Centro Cultural e Recreativo da Pena, Pena.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A Wild Swan And Other Tales

É perceptível que há ansiedade no público vestido maioritariamente de preto que ocupa o Hard Club-- sala emblemática da muito romântica cidade do Porto-- que espera a entrada em cena dos Psychedelic Furs que se fazem anunciar com uma música de cariz sinfónico e a sua aparição é recebida com entusiasmo por figuras tão dispares quanto o Adolfo Luxúria Canibal ou o Marco Nunes e é essa intensidade que se transfere para os músicos que se desinibem gradualmente e quando se asseguram que os portugueses estão fascinados com as suas canções de teor vário mas centradas na pop que se imiscui em diversas fontes seja num negrume que lhes adensa o seu traço de perdição mas numa vertente maioritariamente platónica ou na decomposição desse centro pop para um pós-punk isto é guitarras aceleradas e um baixo corpulento do Tim Butler que somente por si (sem esquecer o saxofone o teclado e a bateria) são de uma urgência tal que sobrevém uma opressão causada pela urbe e esse quadro é deveras fantástico porque revela a intensidade de algo quase asfixiante que aumenta a frequência sonora do Hard Club poder-se-á afirmar que os Psychedelic Furs apesar da sua origem longínqua na década de setenta/oitenta do século XX supor-se-ia que as suas canções soassem datadas (isto apesar de na essência emanarem fielmente das gravadas em vinil) mas tal não sucede porque a elegância jamais é démodé e como tal essa contemporaneidade retira a banda de qualquer cápsula do tempo que esteja presa ao passado e isso é sublinhado com uma canção nova a qual se assemelha a uma canção fúnebre pop com métrica do Jacques Brel (do qual David Bowie fez versões em inglês) e que liricamente reporta aos primeiros tempos de músico pop por parte do cantor Richard Butler que tem um timbre de voz grave tão grave que parece dissonante e esta distorção provoca o distanciamento dada a sua estranheza e o chamamento dada a sua textura intrigante e que por vezes irrompe dolorosamente outras vezes é de uma assertividade que transparece uma frieza que é meramente de quem narra dramas existencialistas mas o amor esse é reflexo de inúmeras parábolas pop que remetem para algo cinético de tantas vezes sonhado como se fosse um desejo secreto que somente o inconsciente detém o seu registo há a ainda destacar a relação de gang dos Psychedelic Furs que enfrentam o público como se fossem piratas que estão na disposição de lhes vilipendiar a alma esse fluxo invisível emana como um íman principalmente quando executam um psicadelismo viciante que é uma confrontação com a mortalidade ouvem-se aplausos e as câmaras no ar fotografam e filmam o cantor a rodopiar ou a evocar algo que é uma narrativa em que o amor ou desamor colidem e se transformam em algo inexplicável e essa perdição é um reflexo de um pós-pop-romantismo que encontra no kitsch dos sintetizadores de Amanda Kramer uma ilusão que se imiscui no turbilhão do negrume incutindo-lhe uma áurea que ora se intercala ou é a base das canções e ainda há um encore hiper-psicadélico que é uma extensão que se alarga e contrai numa profusão quase infinita e eclodem as palmas e o Richard Butler despe-se com um beijo enquanto os restantes músicos dão à canção uma continuidade apoteótica e é este epilogo que impede o público de abandonar a sala com palmas e mais palmas que duram largos minutos até que por fim um roadie desliga o equipamento dos Psychedelic Furs mas a beleza das canções perdura e perdurará para além deste fim.

The Psychedelic Furs, 15 de Outubro, Hard Club, Porto.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

The Picture of Dorian Gray

Estou no Douro num festival com um nome deveras pomposo Wine & Music Valley e de facto há inúmeros postos de venda de vinho assim como senhoras e senhores com os seus copos de vidro a bebericarem uma casta qualquer há quem vista de branco e use um panamá apesar da noite quente de Setembro suponho que seja a burguesia rural a imitar o estilo dos ricos da Comporta e por isso aparentam tal brilho dourado a maioria está aqui a mando de uma rádio FM que os tortura com músicas da sua juventude que os recordam que em tempos foram jovens que ouviam música pop rock mas de cariz predominantemente comercial e que ignoravam a música clássica a moderna ou a contemporânea e o jazz somente o que não lhes perturbasse o raciocínio de baixa altitude mas há uma alegria tipificada pelo esquecimento de que estão alcoolizados ou os que não estão fazem de conta que não estão sóbrios quanto ao guarda-roupa das idosas e das jovens há um traço comum isto é uma castração da sua sexualidade pois temem que algo ousado lhes seja posteriormente criticado safam-se os estrangeiros que estão por aqui para ver o Bryan Ferry o ex- Roxy Music que assinala no Douro a última data da sua digressão mundial mas antes há que ouvir a Mariza que veste um vestido cor de espumante rosé das Caves Messias constituído por lantejoulas a cantora é de uma entrega vocal multifacetada seja nas canções românticas ou na pop ou na morna e no fado e este género é que é responsável pela sua fama de eximia cantora mas algo que desconhecia é a forma constante com que comunica com o público dizendo algo assim: “o que são esses brilhantes nessa barba? Tu vais dizer que foi do meu vestido!?! Isso querias tu!”, “primeiro não queriam bater palmas depois não queriam cantar e agora querem acabar uma canção minha?”, uma Diva que saiba o que isso significa jamais teria esta familiaridade em relação à audiência com a agravante de que o primeiro comentário seja personalizado e este excesso mancha negativamente o concerto durante o qual abana o traseiro (por duas vezes) ao ritmo da bateria revelando um sex appeal que não é habitual nem em artistas pop nacionais e somente por este estrondo visual é possível participar que a Mariza é um portento de talento sensual; os roadies estão a instalar a parafernália que acompanha Bryan Ferry vê-se a bateria os teclados o baixo e duas guitarras e três microfones para as respectivas coristas e junto ao microfone central onde estará o músico inglês há um teclado e o périplo musical é de uma lugubridade que extravasa a pop de contornos kitschs é algo melodicamente denso e de estrutura insinuante de tão elegante e nessa constante há um aprofundar da natureza das canções e outras geram um psicadelismo épico que se socorre do repertório dos Roxy Music e ou preferencialmente das canções que transformaram o Bryan Ferry numa estrela mundial na década de oitenta e sublime é o jogo (arriscado) entre os músicos que ultrapassa as convenções instituídas pelo rock e nesta transposição projectam-nas para algo indescritível de tão belo e por vezes é o cantor inglês a prolongar as músicas com o seu teclado que os outros seguem estoicamente outras dá indicações discretas com as mãos para aumentar ou diminuir a densidade de uma harmonia e quando a saxofonista sola sintetiza o centro da melodia em algo pleno de uma urgência apoteótica e ainda a simpatia desarmante de Bryan Ferry pois não se associa ao mito da responsabilidade da imprensa inglesa e isso é prova as inúmeras vezes que se dirigiu para o público e como engrandeceu a paisagem circundante da qual destacou a “moon” e prossegue por um mapa em que o que consta é uma poética romantizada ou uma dependência pelo amor que canta e por vezes o fala ou o sussurra oferecendo-lhe uma consciência de um dandy decadente mas por isso misterioso de tão sensual que consigna ao seu amor uma verosimilhança idílica (ao fim de uma hora e quarenta minutos Bryan Ferry merecia ser traduzido numa epopeia mas para tal falta-me talento).

Wine & Music Valley (Bryan Ferry + Mariza), 14 de Setembro, Porto Comercial de Cambres, Lamego.

sábado, 14 de setembro de 2019

Plan 9 From Outer Space

O Figueira Film Art 2019 promove Cine Concertos e convocou diversos músicos para musicarem filmes com os quais se identificavam o primeiro é “O Barão” (2011) de Edgar Pêra e é Vítor Rua que com a sua guitarra eléctrica faz o complemento sonoro-- originalmente o filme tem banda sonora mas encontra-se anulada e tal é discutível porque há uma alienação de um filme sonorizado para um mudo e esta transposição é no mínimo arriscada e discutível-- e os acordes dos primeiros vinte minutos são repetitivos e sem qualquer poder de indução no filme que segue uma narrativa que não encontra reflexo nas partes subsequentes salva-se a mestria técnica do músico que é de facto eloquente; Victor Torpedo, “A Bucket of Blood” (1959) de Roger Corman (com o som original audível), e o músico mune-se de uma guitarra eléctrica e invariavelmente insere três acordes mas por vezes introduz um som wah wah algo insípido e que se limita a se submeter à narrativa sem lhe introduzir outras perspectivas e nem o facto da banda sonora original ser o jazz altera o seu registo; The Parkinsons, “A Long Way to Nowhere” (2015) de Caroline Richards corresponde a um documentário que registou o périplo do quarteto conimbricense por Londres e as vicissitudes e incongruências e ou paradoxos que ditaram quase a implosão da banda e há ainda a realçar que a realização da Caroline Richards é fantástica; Subway Riders, “Missile to the Moon” (1958) de Richard E. Cunha (com o som original audível), são um caso estranho de sonorização ao se enunciarem através de elementos mínimos que sublinham o filme de um lo-fi que enaltece a narrativa e a tolhe de elementos que a engrandecem e a traduzem de uma forma minimalista (épico); Marcelo dos Reis, “White Dog” (1982) de Samuel Fuller (com o som original audível) (que esteve presente há vinte e sete anos no Festival Internacional da Figueira da Foz), tem banda sonora original do Ennio Morricone e somente este facto faria temer o pior mas se inicialmente há somente um complemento ao filme através da guitarra eléctrica gradualmente logra ultrapassar este óbice ao introduzir outros timbres e equiparar-se dramaticamente à música do maestro italiano no mínimo apoteótico; Pedro Chau, “A Viagem Cósmica” (1936) de Vasili Zhuravlov, que é originalmente um filme mudo e a proposta do músico enquadra-se na trama futurista hoje meramente retro e é esse o universo que evoca através do teclado ou do baixo eléctrico porém se as texturas são por si só um indutor poderoso falta na primeira meia hora uma adequação à narrativa e na restante ultrapassa-a ligeiramente mas somente é suficiente; Vítor Rua, “A Caverna” (Versão inédita 3D 2019 Mix) de Edgar Pêra, Filme & Câmara ao vivo Edgar Pêra, Vjamming Cláudio Vasques, o filme é composto por diversos níveis uns encontram-se gravados outros são filmados ao vivo pelo Edgar Pêra que por sua vez são misturados pelo Cláudio Vasques e projectados na tela e que são traduzidos sonoramente pelo Vítor Rua e o resultado é um somatório lúdico por vezes ou muitas vezes psicadélico que poderia ser o reflexo de um cérebro sob o efeito de ácidos; Luís Pedro Madeira, “The Unknown” (1927) de Tod Browning (filme mudo), encontra na música um sustentáculo que acrescenta à história um aprofundar que lhe confere uma natureza evocativa de inúmeros universos mas tolhidos por uma ingenuidade que afunila o drama vivido pela personagem principal e através deste encontramos um quadro psicológico complexo que atrai e repele o espectador (épico).

Figueira Film Art 2019, Cine Concertos, 5; 6; 7; 8; 9; 10; 11; 12 de Setembro, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, Figueira da Foz.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

La Isla De Los Jacintos Cortados

Não há luz por aqui parece que a memória é uma pauta composta pelo Nino Rota para um filme negro e as suas notas correspondem a uma melodia voluptuosamente orquestrada dando destaque aos violinos que correspondem a um coro da época clássica e num palco com uma cenografia naturalista dança um casal que se movimenta tão lentamente quanto levemente parece que desaparecem e a melodia versa um andamento fúnebre que não sossega sobre o futuro dos bailarinos talvez sejam vitimas da sua ganância ou de outra incongruência qualquer e a fita rebobina sem que alguém a faça parar e os números sucedem-se numa ordem decrescente como se fossem os últimos segundos de vida do casal e por fim alguém carrega no Stop e substitui a bobine por uma outra e ouve-se “acção” mas o que sucede é um ecrã negro e uma voz reclama para si a narrativa que versa sobre algo estranho de tão distante e essa voz mistura-se com outras que encadeadas divagam sobre algo inexacto e essa continuidade é de um tédio preocupante que prossegue e por vezes é perceptível o que falam mas não as palavras essas que conduzem o espectador pelos diferentes estados de espírito das personagens a máquina é indiferente a essa monotonia e sucede que por fim surgem os contornos das personagens flutuantes a beijarem-se poeticamente numa lentidão de câmara lenta que lhes oferece um poder sedutor e que se esfuma assim que olham um para o outro e ouvem violinos em pizzicato que prolongam a cena para além de qualquer reconhecimento do que está verdadeiramente a suceder e este enigma equipara-se ao silêncio de que é composto a inexistência de verbos ou adjectivos somente um olhar entre eles e se despegam das sombras azuis e vestem o corpo de humanos de idades diferentes; She Wants Revenge encontram-se no palco do Teatro José Lúcio a convite da Fade In que promove há uma década o único festival gótico do país o ENTREMURALHAS é hoje EXTRAMURALHAS devido às obras de requalificação do castelo de Leiria mas não se confinam a esse género obscuro como é exemplo o convite endereçado aos She Wants Revenge que é uma dupla de músicos que encabeçam este colectivo que se fazem acompanhar por um baterista e baixista e a primeira música é uma continua expansão de acordes monótonos que perturbam e gradualmente se instituem como um denominador comum que é simultaneamente belo e negro e os primeiros quarenta e cinco minutos do concerto encontram o público maioritariamente sentado aparentemente hipnotizado perante a incidência e a cadência negra das canções e é convidado a que se levante e dance mas esta deve ser lenta e que esteja tolhida por um prazer umas vezes sedutoramente e outras vertiginosamente acutilante pois o ritmo é de uma verve contagiosa da qual ressaem melodias tolhidas com uma melancolia poeticamente negra que encontram no cantor um eloquente narrador ou pregador e é umas vezes o primeiro outras o segundo mas há o caso em que fazem parte de uma canção e a mensagem é de uma violência assertiva que se ergue contra qualquer recalcamento e liberta a consciência de outros atritos de similar índole as pessoas dançam e aplaudem e os She Wants Revenge que decidem porque lhes agrada esta festividade calorosa em prolongar o concerto por mais três canções e o encerram de forma épica; mas de similar sensibilidade observam uma tela abstracta em que a tinta é sobreposta a outras e diversas cores que se subjugam a uma monocromia em que impera o branco e o cinzento e sem que haja a percepção qual destes é que lhe oferece a luz símbolo do amor é-lhes fascinante este retrato que lhes oferece um destino que somente essa luz tem o poder de constituir e de realizar e se é um sonho ou algo que faça sentido entre as paredes que os cercam como se fossem muros que se erguem ilusoriamente contra os dias cinza de Inverno ou os dilúvios da Primavera e rasgam a tela e abandonam a ficção para recriarem uma outra em que domina uma rotina controlada pelo fuso horário local e desligam a projecção e na sala escura tentam encontrar algo que os retire dessa condição de cegueira momentânea e a luz branca de sala de cinema torna-os em figuras que dão continuidade ao tempo narrativo em que se consubstanciam em matéria similar ao tempo em que eram personagens de uma imagem que se flutuava porque a vibração destas é mais forte do que um batimento cardíaco que se alimenta dos sentimentos positivos para florescer um jardim ou uma ilha rodeada de muralhas de pedra calcária para sofrer com o desgaste das intempéries e um dia o dia da sua derrocada será hoje.

She Wants Revenge, 31 de Agosto, EXTRAMURALHAS, Leiria.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Liberdade Livre

O festival de surf de cariz internacional que decorreu durante cinco edições no centro da Figueira da Foz muda-se para a praia do Cabedelo onde há dois palcos: um situa-se junto à praia (palco 1)-- onde irão decorrer as diversas provas consignadas ao long board assim como a prática do surf nocturno (algo há muito reivindicado à edilidade pela comunidade surfista da Figueira da Foz) e através desta revolução transformaram a praia no último reduto de liberdade da região centro-- e o outro é fronteiro ao rio Mondego e onde irão decorrer os concertos nocturnos (palco 2); Elephant Maze são uma dupla de destruidores de acordes de heavy metal e de outros universos hard rock e nessa ordem inscrevem algo especialmente vibrante e desafiador a somar a este cocktail a movimentação endiabrada do guitarrista (palco 2); Dead Club são um caso estranho de demência synth que tem contornos repetitivos ou desconstrutivistas numa cadência marcial e por isso épica e a incluir nesta equação a ambiguidade sexual do ou da vocalista e realço este binómio porque por vezes era um outras uma especialmente a cantar e a sua performance é de um confronto contra as ordens morais instituídas pela religião católica (desconcertante de tão soberbo; a seguir com atenção) (palco2). Subway Riders— depois de dois excelentes concertos a fasquia encontrava-se altíssima— mas as provas superam os precedentes pois as canções de diversas índoles seja no pastiche ou no kitsch são apresentadas com uma profundidade emocional eloquente da ordem do divino (palco 2); (esta noite teve como dj Da Chic que se passeou virtuosamente pelo funk e ou pelo disco sound), (palco 2); Manda Blitz uma dupla que usa fundos sonoros pré-gravados sobre os quais sobressaem em diversas cores umas tórridas ou vibrantes que têm como raiz o jazz o senão prende-se quando se libertam das programações e o duo perde a sua eloquência algébrica (palco 1); Ruby Ann & Marc Valentine rodam cds de rockabilly e rock and roll (palco 1); Buster Keaton são um trio de rapazes compenetrados a musicar curtas-metragens do Buster Keaton que na altura era rival Charles Chaplin e a incidência é dividida em dois vectores nos planos curtos (o que pormenoriza o desempenho dos actores) a métrica musical corresponde a esses planos incisivos (com inúmeros pormenores sonoros) quando a sequência é rápida a música é de uma rudeza alarmante o resultado é um delírio para quem gosta de estar concentrado (palco 2); Drunks on the Moon são um casal que tem uma gravidez de contornos melodiosamente densos que evoca o rock de cariz americana ou a pop associada ao cancioneiro francês mas não existe qualquer clivagem entre estes dois universos antes um savoir faire magnifique (palco 2); Birds Are Indie salientam uma rugosidade rock que oblitera a natureza das suas canções pop de recorte britânico mas tal não é negativo antes pelo contrário porque esta revelação ou transposição é tão segura e assertiva que o nervo nunca se quebra antes ganha dimensão de músculo exorbitado mas sempre controlado de forma sublime algo que se repercute no público que reage em diversas moches (impagável), (palco 2); Daltonic Trio Jazz de contornos clássicos a que não é alheio o Miles Davies óptimo para iniciar a tarde junto à praia (palco 1); Palmers delineiam uma sequência de rock indie sem muitos preconceitos ou outros atritos que os possam bloquear se por vezes ou diversamente se são fantásticos isso deve-se à aspereza dos acordes e à sua cadência que é de uma raiva estonteante (palco 2); Wipeout Beat são três máquinas de teclados analógicos processados por humanos e um dos quais por vezes empunha a guitarra eléctrica numa configuração rock que associado à densidade dos teclados remetem para o kraut mas ainda mais marginal do que este género musical pois se sublima para além de qualquer podium e este é reflexo na dança dos surfistas e melómanos (palco 2); PSICOTRONICS encontram no Marquis Cha Cha o centro da sua essência que vestido de Diabo transexual canta e dança mas num registo performativo que é de uma eloquência kitsch e as canções punk synth são decorações de um palácio em que os ocupas dançam dia e noite sem que se apercebam em que tempo se encontram organicamente presos e que ao invadirem o palco o partem (palco 2); Junior Makenzie é um homem de cabelo comprido e barba de vários anos devidamente estilizada e as canções à guitarra acústica e voz grave têm uma latitude norte americana mas de tal forma tipificada que é alarmante a falta de originalidade porém estas tornam-se obsoletas perante a eloquência entre as mesmas pelo músico de Benicassim: “esta música foi gravada com o Paolo Nutini produtor do Michael Jackson eu acredito que o Michael Jackson foi assassinado”; “estava no meio do deserto mas não sabia onde e escrevi esta canção”; “e estava de ressaca e escrevi esta canção”, perante estas provas advogo que siga a carreira de comediante “Makenzie Zoo” (palco 1); Jesse Erikson and the Vessel Virgins (somente foi possível presenciar uma música) e a sua toada lenta remete para o rockabilly mas tal é somente desenhado (palco 2); Niki Moss é um rapaz de boné vermelho mas que se encontra rodeado por outros músicos que se exprimem num indie rock que tem inúmeras fragilidades nomeadamente na estrutura das suas canções algo que se agudiza quando fazem um medley de três canções (palco 2); Aiur Coue têm dois centros o que remete para o onírico outro para o denso e quando se unem numa canção são vertiginosamente belos tal é impossibilidade de os categorizar talvez soturnos e profundos (palco 2); Lonz Dale`s Fantasy a dupla synth rock e house e por vezes tecno rap e outras misturas tóxicas que provocam um vómito corrosivo que se equipara a um reflexo virtualmente da ordem do homem animal de palco que é o de um performer que se traveste nessa irracionalidade que provoca tanto a atracção quanto a repugnância (palco 2); Red Bean Rice são uns adolescentes que ainda se encontram num processo de crescimento criativo que desconhecem o cânone da pop (palco 1); Rapaz Improvisado é um rapaz que raras vezes improvisa talvez essa designação não lhe seja favorável e está acompanhado por um contrabaixista e as canções são de uma delicadeza desarmante evocando diversos estados de espírito num percurso em que se confia no narrador com prazer (palco 1).

Gliding Barnacles, 28; 29; 30 e 31 de Agosto; 1 de Setembro, Praia do Cabedelo, Figueira da Foz.

Dedicado ao Mestre Cruzeiro Seixas.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

The Letters of Vincent Van Gogh

No início estava deitada sobre um estendal de roupa que o vento havia atirado os atoalhados brancos sobre a relva que usava para a mesa da sala de jantar repleta de móveis antigos e nas paredes máscaras velhas que secretamente a observavam a meditar sobre o que vestir ou o que comer segundo a dieta mediterrânica que tanto a deliciava mas que infelizmente aumentavam-lhe o peso que em tempos a faziam sorrir para a balança quando o ponteiro se detinha tremulamente nos sessenta quilos mas há meses que teme prostrar-se sobre a sua tampa branca com o receio de que ultrapasse os setenta de massa corpórea e tal desdém causava-lhe uma tristeza miudinha que a roía diariamente como se fossem os bichos que se alimentavam dos seus móveis ao estilo holandês de onde é originária e onde deixou a família para se aventurar num país que tem a maior costa da Europa e o mar Atlântico roliço e de temperamento agreste que apaixonou os portugueses que somente tinham como horizonte o sol sobre o firmamento e foi este ímpeto aventureiro que a atraiu (isto apesar dos holandeses posteriormente terem colonizado primeiramente o que hoje identificamos como New York) encontrava-se numa aldeia que somente é possível descobrir no mapa em letras minúsculas mas que deu muitos homens ao mar onde se encontravam sepultados e as suas viúvas amaldiçoam-no isto apesar de terem sido desde que nasceram a sua fonte de rendimento a holandesa tinha o hábito de passear com a câmara fotográfica e pedia permissão para fotografar a preto e branco os seus vestidos negros que escondiam outras tantas saias talvez sete ou mais e uma sorria e revelava uma dentadura postiça desgastada e o rosto enrugava-se tal terreno que estava a sofrer um cismo e os olhos castanhos parcialmente cegos olhavam para a objectiva sem a ver na sua totalidade e através desta subtracção somava o que restava e compunha a imagem da jovem de cabelos louros a esvoaçarem lentamente como se estivesse a untar de beleza as casas humedecidas pela maresia e a velha encontrava um género de beleza que até aí desconhecia e que parecendo-lhe estranha rejeitava-a e por fim ouvia-se o click; Dino D` Santiago faz-se acompanhar por três mulheres africanas que se encontram atrás de teclados e de uma precursão digital vestidas elegantemente de branco estas são as responsáveis pelos instrumentais e pelos coros já o cantor é dono de uma voz segura que tanto tem um timbre assertivo quando se expressa em português ou em crioulo e esta língua é que domina algo consentâneo com os géneros musicais africanos que cita ou que estruturam as canções synth que são de um equilibro tal elegância sublime a somar a isto o desempenho inexcedível dos músicos que quase ou nada pararam como se estivéssemos numa ilha onde somente o que interessa aos ilhéus é dançar mas numa discoteca imaginaria e isso é proporcionado por uma candura subtil dos ritmos que por vezes eram mornas ou coladeiras e é este folclore que oferece ao Dino D`Santiago uma origem musical e consequentemente uma herança que é de uma riqueza rítmica e de alma tolhida por uma estranha saudade e antes de cantar à capela “Sôdade” (popularizado pela Cesária Évora) se atreve a descer do palco e a invadir o Espelho de Água que o separou do público durante uma hora mas tal não foi impeditivo de o instigar à dança e a receber severas salvas de palmas e descalço canta por entre a água como se estivesse a fazer uma ponte cultural entre dois países que muito têm em comum (somente épico); e a jovem enrolava o rolo e ouvia-se o respectivo som analógico e prosseguia a meditar sobre o passado destas mulheres que se tornaram em símbolos obscuros da castidade que representava uma dimensão absurda de fidelidade assim como um choro ou lamúria em pessoa com corpo gordo em pardos saiotes sujos de peixe fresco eram estas as sua vizinhas mais próximas do local ermo onde habitava num lógica de auto-sustentabilidade ecológica e cresciam rabanetes e outros tubérculos que os moldava em figuras de bonecos de trapos e numa parede isolado uma reprodução das sete versões dos “Girassóis” do Van Gogh e perguntava-se como era possível que uma obra de arte fosse tão ou mais representativa da realidade que sob a perspectiva do génio holandês as flores se deveriam encontrar num vaso com pétalas de amarelos de diversas tonalidades e com pinceladas sobrepostas que lhe ofereciam uma dinâmica que era de uma beleza hipnótica que a seduziam e a levavam para junto dos seus familiares que pernoitavam em Haarlem numa casa barco num canal mas tal imagem evaporava-se e misturava-se com outras que subsequentemente se processavam sem que tivesse noção que tal está a ocorrer e focaliza o olhar sobre o quadro e reencontra uma calma que a nutre de uma satisfação saudável e colocava a sua mão direita sobre os seus lábios e beijava-a e fixava-a sobre a reprodução dos “Girassóis”.

Dino D`Santiago, 24 de Agosto, Espelho de Água- Preguiça, Figueira da Foz.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Música e Músicos Modernos

Portanto receio acabar de escrever esta canção porque se tal suceder a sua memória seria um silêncio interior que era um vai vem de dentro para fora e vice-versa que me provocava um desequilíbrio existencial como se este fosse as minhas mãos ou pés e até pénis ou calçava a saia e vomitava nos ténis se me ouvia com atenção não tinha a certeza de quem é que estava ao comando da nau de velas desfraldadas a navegarem com destino incerto talvez alguém conhecido nos bordéis universitários ou se calhar um mero justiceiro que via nascer um prazo que se prolongava infinitamente e ou possivelmente o autor de tramas fundadas na paranóia crítica não sei se tais eventualidades se aproximavam de meras máscaras que de transparentes revelavam uma distorção com feedback que se aglomeravam em redor de dúzias de figuras naturalmente disformes que se socorriam do meu oxigénio para viverem como se fossem uns parasitas íntimos que me manipulavam segundo caprichos horrendos que se digladiavam com mandíbulas de tubarões famintos por carne humana pela minha alma essa luz obscura mas bela segundo as normas do tenebrismo que era constante mesmo à luz de um dia de Verão numa tempestade perpétua e era este ciclo que se fazia passar por algemas que me cegavam perante a eventualidade de um abismo que seria o último e por isso o mais perigoso e tentava esquecer e fazer desaparecer essa constância prolongando-a numa dose de alienadas injecções sobre a veia que se encontrava no meu pescoço e o sangue salpicava o Rei Artur que se fazia passar por um gato persa castrado para abandonar as fêmeas do seu harém constituído por adolescentes imberbes que a partir dos seis meses estavam activas para procriarem mais gatinhos; Mundo Segundo e Sam The Kid são dois MCs que se fazem acompanhar por dois Djs de renome e a relação entre as duas estrelas é a da simbiose ou mais concretamente de uma intercalação quase perfeita que passa por um ter o predomínio de rapar sobre o outro que é secundário e as rimas encaixam-se nos beats que predominam sobre a melodia (que raras vezes se fez presente) e o ritmo que imprimem é rápido não só o das canções hip hop como na sequência de umas para as outras (quase) sem pausas e esta chega a quase uma hora de show quando os Djs se mesclam em ritmos diversos e regressa o ritmo e as rimas que se plasmam segundo uma lógica do senso comum que alterna entre eu bom versus o(s) outro(s) mau(s) (uma perspectiva infantil de reconhecimento da realidade) as que versam sobre rivalidades entre MCs são muito pobres porque revelam um ego que é meramente competitivo e nessa medida destruidor e por fim as narrativas que remetem para a adolescência ou um amor chamado “Sofia” são derivativas de uma lógica näive e a envolver estes elementos estruturalmente encontra-se um moralismo que se limita a criticar os moralistas detentores do poder na sociedade e é este paradoxo que afunda as rimas e consequentemente as canções para o nível zero da estética hip hop (nota negativa onde decorreu o espectáculo que tem um lago entre o palco e o público algo mais adequado para o jazz ou a música clássica e a moderna); e temia que o efeito fosse imediato e letal mas jamais se concretizou a sua vertente funesta violenta e venenosa língua a sugar-me em definitivo para o exterior por vezes tremia e as palavras tremiam imersas num signo que não se revelava com a força que lhes estavam contidas e derrapava num jogo de representações inócuas que somente afundavam-me para uma sonolência que provocava a dispersão de um eu que jamais respondia a questões que o deixassem de rastos caso contrário o paciente (isto é) eu ou talvez um outro eu ou tantos quanto diversos não desapareceriam antes assimilavam-se aos palhaços da fase rosa do imortal Picasso que os transformou em tristes figuras circenses se me deixar cair no engano de uma falácia instituída por quem detém o poder no interior deste país de órgãos nucleares outros são meras pontes que fazem passar nas suas portagens a toxicidade e não percebo como é que ainda tenho corpo ou melhor nem sei se este ainda existe isto segundo os cânones da saúde e bem-estar que obriga a respirar a um ritmo relaxado para iluminar a dopamina e limito-me a contorcer-me como se fosse uma raiz de um plátano destinado ao abate por parte dos defensores dos animais e por isso reviro o olhar para tentar focalizar sobre quem se diz o meu patrono esse que me parece viscoso de tão nojento que tem o poder nas assas brancas que em tempos ou se calhar foi ontem cristalizaram sobre os ombros de vidro de um busto da Rainha Isabel II que se assemelhava aos acordes destrutivos de um hino que a decompunham num retrato de peças que encaixaram num carril que une numa soldadura uma ilha velha egoística e miserável onde cresci vizinho de boxers famintos que snifavam o que me ofereciam.

Dia Mundial da Juventude (Mundo Segundo & Sam The Kid), 13 de Agosto, Espelho de Água- Preguiça, Figueira da Foz.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Corpo-Delito na Sala de Espelhos

As sombras jamais vitoriosas ocultas no interior de túneis de vidro fosco sossegam perante a fluidez de luz que lhes percorre os contornos negros e cinza e parece que tremem ao serem consumidas pelo crescer do dia e temem que isso suceda mas tal é inevitável porque falta-lhes o corpo para lhes dar vida e nessa perspectiva a tragédia dá-se e os seus contornos estreitam-se lentamente até desaparecerem e quando a madrugada se emancipar da noite o processo repete-se e a dor ressurge num fluxo que se reduz ao poder cego do Sol porém nos dias cinzentos são as sombras que dominam o dia e a noite ao perturbarem os sonhos dos que ainda sonham mesmo que pareça mais uma banalidade imposta pela vida e nesses dias de Outono reina a incerteza sobre quem sobraçara a um pesadelo que de repetido se confunde com a rotina de serpente no advir de outra com sete cabeças que é somente uma múltipla e eloquente vivificação de um coro polifónico e por isso hipnótico que se arrasta como se fosse uma memória que ruidosamente se prende às torrentes que ressoam sob a terra marcada por cal que desenha uma silhueta de contornos helénicos em que sobressai a cabeça de uma mulher de tronco inclinado e sem braços de cabelos encaracolados marmóreos que se aparenta a um principio de beleza proponho que se materialize em sombra e se transfira para um outro tempo em que o que decorre é da ordem do abstracto e nesse espaço que se lhe faça justiça e se erga a estátua da liberdade da beleza e se subjugue o ogre à sua condição de artigo decorativo utilitário e se institua uma outra desordem com um lastro de destruição; faltam umas horas para o início do concerto dos GNR na Gafanha da Nazaré localizado paralelo a um canal onde está atracado um navio que pode ser visitado mas o que de facto é perturbante é a chuva que não cessa assim como o vento frio e já no palco encontro dois roadies que ficaram a assegurar o backline dos GNR que se encontrava coberto por diversas telas e a conversa versa sobre aspectos diversos sobre a vida na estrada e o relacionamento com as estrelas pop nacionais e internacionais e a chuva e o vento continuam a bombear sobre o palco e instala-se a eventualidade do concerto ser cancelado e às dez da noite ninguém explica aos poucos presentes se haverá ou não concerto e esta resposta somente é dada às onze quando a protecção civil dá o aval a que se realize o show mesmo que pareça que está a decorrer uma tempestade e os GNR estão no seu camarim a estudar os riscos inerentes a tocar sob tal temporal e por fim sobem ao palco sem a intro habitual “Decapitango” e ejectam a dançante “Impressões Digitais” prosseguem sem que lhes seja adversa a chuva que afasta algumas pessoas que desaparecem e o que já era exíguo ganhou uma dimensão de pequenez de guarda-chuva abertos e há quem grite durante as canções “Rui Reininho és o maior”que são executadas segundo numa perspectiva que sublinha o rock em detrimento da pop que também se vê contaminada pelo rock e é nesta deriva que os GNR são divinos porque transformam algo que não lhes é tão familiar (o rock) em algo graciosamente urgente e por vezes de uma beleza atroz e nessa violência por vezes soft outras hard que se registam os clássicos como “Dama ou Tigre” ou “Mosquito” que é tempero dos trópicos e que encerra o concerto isto apesar dos inúmeros apelos para que voltem e o encerrem com “Dunas”; que reconstrua uma outra realidade constituída por sombras imunes à vida e nessa escuridão irromperiam verbos estranhos pois sobrepostos semelhantes a uma tempestade telúrica que transporia o pulsar de uma natureza enraivecida num gutural e distorcido grito seguido por um intervalo fúnebre similar ao negativo de uma fotografia em que se identificaria a turbulência das sombras e num segundo alguém sufraga que tudo e todos sejam inertes e após esta sonolência a matéria orgânica irrompe da prisão como algo imprecisamente sedutor que se instala sobre o firmamento tornando-o irregular se fossem ameias de um castelo encantado estariam personagens infantis manipuladas por adultos com vozes horripilantes numa representação de amor de perdição com final feliz para sossegar as crianças sobre a condição estranha dos sentimentos e a luz no exterior é tão cinzenta que cobre a paisagem campestre com um bucolismo quase romântico onde imperam sombras que se assemelham a árvores que se insurgem contra as mutações ditatoriais da temperatura ambiente e à sua volta decorre a marcha dos que lutam por uma outra guerra que não a que irão enfrentar a que seja por uma paz que se assemelhe a um silêncio do qual irromperá um outro Mundo.

GNR, 7 de Agosto, Festival do Bacalhau, Gafanha da Nazaré, Ílhavo.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Jazz-Off

The Legendary Tiger Man-- em tempos apresentava-se no formato one man band; mas rejeitou esta versão para se acompanhar por um saxofonista e uma secção rítmica e a dama que defendia a solo é similar a do quarteto é (a) o rock and roll (da estirpe clássica) caracterizado por uma constante delineação de riffs distorcidos da guitarra eléctrica do músico vestido angelicalmente de branco já os seus comparsas de preto que ocupam um papel secundário algo que torna o concerto monótono pois as soluções do guitarrista são de uma limitação técnica desmedida resumindo-se à distorção algo que é pobre rock and roll mas que é perceptível pelo proletariado e pela burguesia algo que deve ser caracterizado como um sucesso mas o que há ainda a revelar que isto dura uns quarenta e cinco minutos e é o espanto que ocorre quando a banda acompanha em playback uma cantora afro projectada no ecrã o que deve ser visto como anti-rock and roll e nessa medida destituído de irreverência antes e somente há o critério comercial e nisto lembra-se que o povo está alienado perante o seu fluxo de rock and roll e adjectiva-o de “manso” algo de uma ofensa atroz ainda disserta sobre uma aventura sexual com umas cadeiras no Convento São Francisco que associa ao sexo com animais isto são comentários de um adolescente infantil e prossegue sem que se preocupe em retirar o público da sua sonolência e não surte efeito a alternância entre a guitarra eléctrica e o saxofone e nem tão pouco o teatrinho em que entrega a guitarra a um roadie e sobe para o bombo onde canta e se atira e finaliza a canção com o microfone a embater no palco num clímax precoce; sobe o vapor da boca de uma chaminé que apita diversas vezes enquanto marca o céu com nuvens efémeras e se inscrevem no céu num fugaz que se mistura com o ar e desaparece e parece que o comboio percorre um deserto de cactos e palmeiras raquíticas que pontuam a paisagem onde serpenteia uma cascavel com a sua cauda estridente que levanta na expectativa que surja o rato que estava escondido numa gruta minúscula de onde pingam micro gotas de suor da terra que lentamente se liberta das monções e a vegetação num oásis de sol e de lua-de-mel refastela-se com o pântano que espelha o vazio do céu apesar da sua cor que lhe retira essa adjectivação que é adestra ao nada e se surgissem aves fugazes migratórias que se emancipariam num voo que iria cruzar o espaço no sentido de um outro imerso no vazio e formam-se círculos e triângulos que se sobrepõem num desajuste geométrico e por isso sem qualquer simetria que lhe consigne beleza e que provoca um desacerto entre aquilo que é visto e o que é daí pensado e entre estes há um interface que a filtra em algo idealmente belo e que se eterniza num instante que jamais se apagará da paisagem de onde somente se vê a traseira do comboio a desaparecer lentamente para além do horizonte e o silêncio é entrecortado pelo vento seco e quente que movimenta os ramos de uma árvore solitária e rafeira por não pertencer ao ecossistema mas por isso mais delicada e vulnerável às mudanças radicais de temperatura do dia para a noite e desta para o dia a sua folhagem parcialmente seca deixa cair mais uma folha que se sobrepõe a outras tantas que se encontravam a seus pés de raízes sobressalientes à terra húmida e num centro distante num crescente de perspectiva sobre um ponto que é inexacto na sua forma mas que se aparenta com um conjunto de ilhas que são meros tufos verdejantes rodeados pela terra em secura angustiante que se consome a si mesma sem que este pleonasmo a torne de facto ferida de existência e inverte-se o fluxo de luz e o que era passa para uma obscuridade que somente o jogo de estrelas é capaz de marcar o terreno num pontilhismo que é absorvido pela luz estonteante da lua-de-mel inscrita no rochedo que se sustém num declive e nessa vertigem indica o olhar sobre o abismo que é mais negro do que a noite das noites mesmo as mil e uma e as dois mil e uma e se não é suficiente que se descreva um outro perfil de sobreposição de pedras gigantes que aparenta o de um homem sem nacionalidade ou língua ou qualquer obstrução ou sanção do ego ou outro pernicioso preconceito é somente uma potencial representação de um utopismo e por isso condenado ao ostracismo e o silêncio é tão perene quanto o ar que circula por entre as figuras que se abraçam com picos nos braços e o amor fá-los sangrar e quando se consubstanciam numa volúpia voodoo rasgam-se as cartas com destinatário inserto que versam sobre a rotina das estações do ano e o desacerto com o espírito de cada uma delas que por vezes raiavam a esquizofrenia que se assemelha a um excesso de energia eléctrica num ritmo epiléptico e nessas páginas escritas em tempos passados que se comparam a séculos de vida a contemplar o vão dissipa-se o ser vegetal; The Stranglers são uma constante propulsão de um som contido uma tensão que tem poder de hipnotizar porque há uma aparente possibilidade de exorbitar mas tal predominantemente não sucede e nesse continuo enquadram-se canções que não se inscrevem na pop mas que têm uma estima pelo punk e pelo rock e nesta mistura dá a we wave que fora popular na década de setenta no Reino Unido disto isto o concerto é de uma sobriedade atroz seja na forma como o exímio baixista toca (este um pouco mais extrovertido a movimentar uma das pernas enquanto tocava; assim como mais visceral quando cantou) e o guitarrista e cantor e a sua voz ora falada/cantada é de facto angustiante que se impõe como se fosse uma justiça verdadeiramente cega surda e muda e essas ordens são de quem se entende imerso num negrume que o distancia do ilusório e é essa a narrativa que é o centro das suas canções.

Expofacic (The Stranglers + The Legendary Tiger Man), 30 de Julho, Cantanhede.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Cities of the Red Night

No palco do festival Ti Milha os Bananana! (existiram no Reino Unido as Bananarama e pelo Porto os Bananas que se transformaram em Ban e tentaram surrealizar a pop—em vão) são de uma pobreza estilística que arrepia seja no blues ou no funk pois somente os concretizam através de decalques que são por isso nulos a isto soma-se quase positivamente o virtuosismo do guitarrista mas que infelizmente é de uma falta de soluções criativas limitando-se a solos estereotipados; The Twist Connection preconizam o rock and roll de forma estridente e com uma vibração que pretende prolongar-lhe a veia para uma outra ordem onde emerge uma urgência violenta quase sufocante de tão abrasiva e dessas cores somente salpica o negro e o vermelho como se fossem o sangue arterial e o venoso em simultâneo dessa combustão resulta algo épico e que subliminarmente detentor de uma austeridade estilística rude e atroz que é vilipendiada pela guitarra eléctrica do Samuel Silva e ainda há a destacar a voz sublime da elegantíssima Raquel Ralha e a performance mecânica do Carlos Mendes; a sua figura é de uma altivez de montanha manchada no pico por neve e neblina e exerce um poder silencioso sobre quem o contempla que se imagina nesse topo cerebralmente vivo de endorfina que lhe relaxa os membros e o liberta da rotina de vender loiças da China num clube de parasitas do ócio que fazem da procrastina a sua lei de vida que os torna na preguiça esse mamífero que se pendura em bananeiras ou coqueiros como o fez o rei dos Cavacos e nisto o gigante limpa o vidro humedecido e surge o seu rosto entrecortado e parece que se esquartejou para ver para fora da sua carapaça de plástico que o defende de quem o adula diariamente com flores e bolos de chocolate e risadinhas secretas sobre o seu comportamento de ser que odeia o abjecionismo sublinha com as suas garras os troncos das árvores consumidas pelo fogo e nesse trilho surge algo que se aparenta com o renascimento das cinzas e tenta tirar-lhes a tensão para medir o estado do seu coração carcomido pelas chamas e este palpita como o de um feto no útero de uma Santa e sorri perante o seu poder que aparentemente ressuscita o período das estações do ano e sossega perante a sua sombra que é mais medonha do que o seu corpo de aço e mármore a sua cabeça é circular com uma crina de raios de sol que irradiam ondas de reconhecimento do espaço invisível e assegura que esse centro se encontrava transformado numa conferência de energias que se vilipendiam fugazmente e tem medo de ficar eternamente a transformar a realidade por si só e essa sentença paira sobre ele como uma espada de um Deus vil e insensível que lhe deu uma imagem de morte mas que exerce sobre os outros rasgos da mais pura das vidas este paradoxo torna-o de uma beleza sideral que não tem qualquer discípulo ou tratado que lhe dê uma consistência de líder das massas que olimpicamente o ignoram para o remeterem ostensivamente à marginalidade de um Messias que jamais será amado pelos cegos e ou pelas prostitutas ou indigentes mas isso não o deixava circunspecto nem relegado a um esquecimento que o iria sepultar ao isolamento antes percorre o declive e surpreende-se com o seu passo pesado de elefante que marca a areia com carimbos circulares que provocam uma vibração subterrânea à sua passagem e tudo se molda ou se torce à sua vontade de substituir a luz e reduzir o mundo a restos no universo não compreende de onde lhe veio tal divagação destruidora se a sua nave o deixara com a responsabilidade de se limitar a transformar o bem num outro mais profundo quase religioso e contraria a força irracional que reintroduz num vaso onde tem um cofre onde esconde o negrume e irradia uma satisfação que lhe ilumina os raios de sol que se projectam ao seu redor como se fossem a luz de uma soldadura de chumbo e restringe a combustão e procura reduzi-la a um ponto que circularmente se movimenta diante dos seus olhos verdes que gradualmente a anulam até atingir o ponto em que principia o vazio esse espaço inócuo onde cabem os pensamentos de quem nada conhece esses estão a seus pés sem que tenham noção da sua presença oferece-lhes ouro e mirra que invisivelmente os decora com felicidade e por fim ergue os braços e as suas sombras são vincos de luz que o transportam para um tempo em que será eterno; Chalo Correia apresenta-se com um percussionista e um baixista e um guitarrista de guitarra eléctrica a acústica é empunhada pelo cantor de Angola mais exactamente de Luanda e as suas canções cantadas em francês ou em português e em quimbundu são uma eloquência que provém do semba e do rebita ou da kazucuta numa referência à cultura popular angolana especificamente Luandense (referente à cidade de Luanda) que têm como centro uma festividade contagiante que se patenteia numa exorbitância que expele felicidade; Farra Fanfarra são uma banda de metais que reporta às originárias nos Balcãs isto é a repercussão dos metais que de graves e agudos se vão alternado com uma frequência rítmica circense a esta pode-se associar à loura de tranças e de macacão azul que se limita a falar como se fosse uma MC que nada tem para dizer senão “raf raf” (na primeira canção) ou numa outra “Boa noite somos os Farra Fanfarra” e dança como um boneco tonto de tanta alegria.

Festival Ti Milha, 20 de Julho, Ilha, Pombal.

domingo, 21 de julho de 2019

The Story of the Vivian Girls

Acção determinada por uma continuidade de quatro planos sobre o seu rosto que vertiginosamente se aparenta com algo inexplicável mas que o espectador identifica como um antro de dor que lhe distorce o rosto e o torna animalesco e a câmara ao desligar-se torna o ecrã negro com listas brancas e cinzentas a decorrerem verticalmente de um lado para o outro como se fosse uma frequência misteriosa que se eterniza num estado de minimalismo absurdo e se alguém tivesse a coragem de desliga-la da corrente eléctrica e o seu silêncio relaxa-se os gatos que dormem absortos numa vaga satisfação se tal sucedesse seria uma ficção ou talvez estivesse de facto o animal ao espelho a pentear os bigodes de rato e a reinscrever-se no mundo através da sua língua ditatorial a vomitar-se gramaticalmente em diversos idiomas antigos e se limita-se a reconhecer a sua maldade que é de tal forma cega que lhe medica o ego e fá-lo incha-lo talvez soem sirenes algures neste mundo vil de tão cruel mas essas calaram-se à passagem da sua figura de fato de esgoto e bengala para fazer desaparecer o tempo real há uma identificação de costumes redundantes de tão circulares que se abstêm de seguir assume-se como um bicho livre castrador que investe na lei do mais pobre porque é felicidade intestinal e relaxa a fumar um cigarro das pazes com o seu destino de solitário relegado ao ostracismo pela sua família de ratazanas esfomeadas não sei quem são mas por vezes julgo que a vejo a passar à minha porta de casa com roupas sujas e amarrotadas de mão dada a caminho da missa ele parece que abana a cauda para atrair o olhar dos predadores de boné de basebol e sapatilhas Nike e ela com t-shirt cor-de-rosa com a tacada de um taco de basebol assentada sobre o seu peito que retém o leite para amamentar o recém-nascido; Vaginas Convulsivas são um caso de exorbitância digital que dada a sua vertente hipnótica se torna de facto viciante e por isso inesquecível a propagação da cadencia é por vezes corrompida por uma guitarra eléctrica que lhes oferece uma urgência inexplicável e se há uma voz é somente umas vogais que ecoam num eco que remete para algo negro não há antídoto que seja potente para abafar ou anular este chamamento eficaz na sua natureza de progressões que mistura o jazz de vanguarda com o kraut rock e a isto soma-se o tempo mínimo de dez minutos por viagem pouco muito pouco para quem está disposto a dar-lhes às mãos sem medo de buracos negros e por fim o papel de guitarrista é confiscado pela lenda Victor Torpedo e os conimbricenses presenciam a penúltima noite no mítico ODD que tinha como stripper não oficial o Paulo Eno e a canção derradeira é uma jam psicanalítica que exorciza o que de mal corre nas veias e de outra forma somente seria anulado por uma sangria de sanguessugas; que haviam deixado ao cuidado da avó que conta com diversos AVCs no currículo onde sobressai uma carreira de sucesso na prostituição era engatada por triciclos e trotinetes e ainda foi mais feliz quando os sites e os telemóveis revolucionaram o seu negócio de vaquinha velha e consumida por caldos de heroína mas o diabo era o seu chulo que vertia paranóia alicerçada na possibilidade de ela o enganar com as contas e ter investido parte do lucro no seu vício e aí a pancadaria era uma possibilidade e abstinha-se de tal fechando-se na sua casa ao lado da sopa dos pobres ambicionava ter mais uma no mercado dos semáforos e esquinas ruins mas estavam todas tomadas e a tecnologia havia provocado o êxodo das putas para apartamentos distantes das suas garras de negreiro acrescento que aparentava que a solidão não lhe era percepcionável porque havia sempre alguém disposto a se submeter às suas histórias dos tempos da guerra de Angola onde iniciou o seu gosto pela prostituição mas tinha a agravante de somente se relacionar com uma e uma só e incorria na possibilidade de se apaixonar algo que sucedia e o abandonava numa continua depressão que colmatava ao carregar no gatilho da G3 e descobria um prazer perturbador em matar algo que no seu regresso à pátria feria-o de saudades da vibração da arma nas suas mãos e de ouvir um grito que se calava com a sua rajada de balas e inconscientemente catalogou os seus actos como algo que não poderia repetir num país onde a lei o levaria a anos de aprisionamento pensou seguir carreira na PSP mas não tinha o rácio de inteligência exigido isto é era deveras inteligente para autuar ou fiscalizar o trânsito relegou-se à condição de pedreiro onde exercia a sua força e acrescentava cimento às paredes de cavernas de luxo mas a sua paranóia fê-lo um homem triste e continuamente em conflito com a sua puta que amava secretamente para não sofrer com as suas boleias para o mato.

Vaginas Convulsivas, 19 de Julho, ODD, Coimbra.

sábado, 13 de julho de 2019

Rita Lee - Uma Autobiografia

A minha carreira de carteirista é a prova de que não valeu a pena ter estudado numa escola comercial a aprender a costurar tapetes de Arraiolos ou direi antes coser sim de facto parece-me mais apropriado ao que fazia durante as aulas em que escolhia o desenho a partir de outros tapetes de sangue azul e adorava estar a estudar o movimento dos mosquitos em redor de um cadáver mas estou numa de costurar as palavras às folhas de alface desde que nasci vindo de um outro tempo em que os humanos eram canibais nessa altura a minha felicidade dependia de alguém que tivesse sido engordado a bolota e destinado ao espeto para as festividades da nossa vila de cavernas herméticas e cubatas com prostitutas oriundas de galeões perdidos no oceano e o ritual obrigava a consumir o seu sangue para nos apropriarmos da sua alma ou da sua força interior já que a alma é uma invenção posterior e da qual me nutro hoje nesta terra difusa de cores modernas e pós-modernas que são de uma fraqueza displicente carregada de tantos ecrãs quanto olhos que adormecem para reinventar o sonho pontuado por crocodilos que choram por se aproximar mais uma tempestade de ossos esvoaçantes cuspidos por outros tempos se fossem novos e hirtos seriam jovens a saltitar por entre girassóis humanos há fogos diversos que libertam um fumo negro como o do meu cachimbo de água envenenada colho dois versos de uma planta carnívora e tento tanger a minha lira às mulheres que passam nuas mas segundo uma perspectiva romântica em que as partes intimas são de uma delicadeza que as torna em pontos de uma subtil beleza suave e prontas a se erguerem perante as disfunções de uns garimpeiros que lhes escavam a pele à procura de gelo; nos claustros do Museu Machado de Castro em Coimbra—que recentemente foi integrado na área classificada pela UNESCO como Património Mundial da Universidade de Coimbra, Alta Universitária e Rua de Sofia— decorre a feira de troca de roupa usada dominada por mulheres de diversas gerações algumas com os seus filhos que saltitam como pequenos sapinhos de corda e a proposta musical deste evento recaiu no colectivo de três rapazes (Carlos Dias, Miguel Padilha, Pedro Antunes) que se denominam de Seam Beat Experience (estes músicos apresentam a sua terceira mutação em quatro anos) acompanhados pela Agente Costura e os seus Dedais Cósmicos e a sequência sonora que se prolonga durante uma hora é a de um som minimalista que se revela de forma progressiva poderá ser uma desconstrução do trip hop mas segundo os ditames do Brian Eno por ser lenta e nessa medida processar um tempo abstracto que se insinua através de um negrume quase psicadélico e tal seria possível se não estivesse um céu tão abertamente luminoso que parece de luz suspensa no ar antes se fosse raivoso e estivéssemos próximos da meia noite seria perfeito quanto à Agente Costura manipula diversos utensílios associados à costura e que ora corta ou cose e até corta as costas de um vestido negro de uma estranha com uma tesoura ligada a pedais e a outras divagações da ordem do doméstico-- veja-se o exemplo da Paula Rego que pinta mulheres a coser mas isto representa uma penetração e como tal estão a pensar em sexo-- e acrescenta sons similarmente concretos que correm de uma máquina de costura ponto por ponto as divagações negras dos três marginais; para se saciarem de uma eterna loucura cantam algo parecido com um coro de eunucos gordos e defeituosos pelas ruas da minha cidade esse aglomerado de betão que se dissipa no nevoeiro e ganha um contorno de fantasma adormecido das suas portas e janelas somente o silêncio tenebroso e nem as garagens mugem como carros e motas desgovernadas oiço um piano de cauda de leopardo a tocar nas teclas subtilmente a emoldurar a noite mergulhada no abismo de um monocromatismo branco do qual estou proibido de fugir por ter uma pulseira electrónica bilhete do festival numa prisão sobrelotada onde cantavam os papagaios do costume a dissertarem sobre um universo enervantemente novelístico como se fossem leis do espírito inverto o painel de autores desacreditados por serem vítimas de uma guerra entre os cidadãos vermelhos contra os descoloridos que lutam contra a cultura que oblitera uma língua para estofar o português jogam pelo seguro para instituir uma nova ordem oral mas secretamente castrada dos seus impulsos mais primários onde dominavam o p e o c e o 1 mais menos 3 numa perpétua hostilização da cultura simplificando a sua natureza a uma outra sem futuro revejo os satélites que emitem para o interior do planeta mensagens de amor e de maldizer tento a combustão do meu corpo disperso em diferentes momentos da minha vida passada mas ao realizar a junção das peças falta-me o motor a gasóleo peço a um estranho electricidade e esta reaviva-me para lá desta corporalidade desconexa relanço as estribeiras sobre o solo aguado que raramente solidifica e me erige tal figura monstruosamente bela que dá a sua mão de chave de fendas a uma divagação efectivamente tão bela quanto longínqua de tão próxima.

Economias Alternativas—Troca de Roupa (Seam Beat Experience com Agente Costura e os seus Dedais Cósmicos), 11 de Julho, Museu Machado Castro, Coimbra.

domingo, 23 de junho de 2019

O Triângulo Mágico -- Uma Biografia de Mário Cesariny

Parece que tento alcançar algo que desconheço a sua forma e conteúdo pode ser o que bem entenda uma maçã ou um canivete suíço ou a cabeleira despenteada de uma velha de papel tenta-me risca-la da minha memória e espalha-la pela minha casa com sala mortuária onde se nasce e se morre consoante as estações do ano rubrico documentos sobre estatísticas como se fosse um respeitável funcionário público mas aparentam diários de um desconhecido que em tempos se fez passar por mim que por vezes encontrava no espelho a fazer a barba ou a procurar as cicatrizes delinquentes tento lê-lo mas a letra é ilegível mas esforço-me por descodificar esses dias separados por fronteiras movediças imersas num nevoeiro que se solidificava numa opacidade que esquartejava o meu cérebro tentava representar-me numa peça vaza de conteúdo e que me incutia a mortalidade que supunha numa sobreposição de impulsos que actuavam paradoxalmente subjugando a minha energia a um nível zero ou menos um ou dois numa variação continuamente negativa que me emergia um circuito de funesta e provável frustração que somente poderia ser mitigada pela ausência e a realidade era um tédio que era uma imersão no desencanto; Big Sandy & his Fly-Rite Boys são um quarteto da Califórnia liderados por Big Sandy homem de poupa e guitarra acústica a tira colo acompanhado por um contrabaixista e um guitarrista de guitarra eléctrica e um baterista que se encontram sobre um palco na Praça do Comércio em Coimbra à frente da CoolaBoola Colab (que se define da seguinte forma: “Co. de conceito ; Co. de cooperativa; Co. de co-Laboração; Co. de companhia; Co. de co work; Co. de concepção; Co. de Coimbra; LAB de laboratório de ideias; LAB de laborar; LAB de laboratório de experiências”) que é a promotora deste espectáculo e de outros como o que se realizou no dia dezanove no Salão Brazil pelos Colton Turner & The Melows e ainda Portuguese Pedro nesta mesma praça no dia vinte e este ainda irá tocar antes de Big Sandy e os seus rapazes algo que perdi por atraso rodoviário quanto aos californianos são visceralmente rockabillys mas com um travo de alguma latinidade que projecta uma América multicultural e consequentemente racial são músicos exímios porque fazem jus a uma herança que tem como ponto de partida uma linguagem rural que se transmutou para a urbanidade e que alterou radicalmente uma cultura predominantemente segregada que através da música encontrou uma ponte para uma outra forma de liberdade que até aí era inexistente esta é a revolução que Big Sandy enaltece e que é ora rocker ou um crooner latino mesmo que isto possa ser visto como um atentado ao rockabilly e não posso esquecer a beleza e a envolvência da voz da Ruby Ann ou a hillbilly prestação do Portuguese Pedro e ainda a quase tempestiva saída do palco do Big Sandy porque um jovem havia tentado agredir uma jovem e que provocou um pequeno tumulto no público; digo que alguém está a contemplar a paisagem mas esta afirmação carece de veracidade pois ao meu redor crescem outros que como eu se mantêm atentos às folhas que atiro para o interior de uma lareira que arde e o vento levará esses restos mortais como se cada um fosse carne da minha carne sangue do meu sangue através deste sacrifício mudo de pele tal cobra e irrompo subnutrido e com sede de leite materno e da carícia paterna se chorar talvez sejam satisfeitos os meus desejos se me calar voltarei ao útero ligado a um cordão umbilical que me alimentava com amor e onde persistia um contínuo escuro que se assemelha a um paraíso perdido algures no Mediterrâneo este é o último dilema da minha vida orgânica que me submete a uma pulsação cardíaca que perpetua-me como ser vivo mesmo que queira manda-la parar jamais respeitara a minha ordem o coração é um órgão que é um rei ou deus do diabo que alimenta um sistema de maquinaria do século XXI que transforma o eucalipto em papel isto é sonhos em pesadelos tento esquecer-me do seu batimento para inverter esse resultado e alcançar a maçã e entrega-la a uma estátua que se faz passar por uma odalisca algo que lhe atribui um exotismo decadente de objecto de puro prazer e perante o seu mutismo entrego-me em cada gesto desatento ou verbo perverso e expressivo oiço portas a rangerem se fossem gatos e isso seria perfeito mas tal é tão utópico que quase me faz parar a narrativa sobre a minha escrava que com outras se diverte a brincar às escondidas ou a assaltar as bolsas de prata que escondem o bilhete de fugida para um avião ou um comboio que se desloca furiosamente para o interior de um túnel com louras dependuradas por cordas enroladas ao pescoço que quando estavam vivas seduziam instantaneamente os homens debilitados e amestrados por mulherezinhas pobres de tão ignorantes mas não sei quem foi o responsável por este quadro aparentemente destituído de simbolismo talvez tenha sido alguém sem coração e por isso destituído de razão é possível que sejam meras bestas que ditam a desordem e um mal-estar nos grupos de feministas que lutam contra a instrumentalização da mulher tornando-a num objecto sem conteúdo.

Big Sandy & his Fly-Rite Boys, 21 de Junho, CoolaBoola Colab, Coimbra.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Devotion

As mãos querem correr para fora da sensibilidade ou da possibilidade de redigir um testamento onde constem os desperdícios dos dias e a reciclagem dos sentimentos ou transformar o fuso horário num outro domesticado segundo esse ditador que é invisível e que poderia ser uma larva ou insecto ou talvez a lagarta a abandonar o casulo para se transformar numa bela borboleta de asas multicoloridas que ao esvoaçar é tão leve quanto poderão ser os pensamentos que se libertam do jugo do ditador rude e atroz parece de ficção mas não o é reclama para si o que pertence a esta gente suja e gasta sentada à borda da fronteira entre a fome e a miséria há lutas algures no meio de militares contra militares fascistas contra fascistas e cada um tem o seu ditador um magro o outro um velho desgraçado que transmite a sua doença venérea aos escravos da sua herdade que lhe parece o seu país não há futuro neste ou com este outro ser do mesmo poço fundo repleto de seres microscópicos se regressa-se o que deveria ocorrer como se fosse algo inevitável deveria suceder e se tal se cumprisse que fosse enquanto se aparelha um ser bicéfalo com cornos e outras decorações do domínio da imaginação do senso comum e se fossem mortificados dos braços tatuados com rostos de canibais e o resto entra-se em autocombustão a justiça estaria a se instituir como denominador entre os rebeldes que esfomeados se insurgem contra o preço milionário do pão e as migalhas para os pombos têm o preço da cocaína que passeiam num quietude de figuras de um museu da natureza e o bem-estar mas esqueléticas e com falhas na penugem por vezes irrequietas num arrulhar de pássaro solitário que esfomeado patrulha a varanda que se abre para um azul que teima em se empalidecer como se através da negação surgisse algo diferentemente belo mas aparentemente é um dia igual ao anterior com sangue nas ruas desta cidade de paredes feridas por balas de um calibre que vai além da sua proporção e que simbolicamente representam a violência que se divide em diversas e perniciosas manifestações a mais violenta é a tortura dos fascistas sobre os fascistas; a proposta para esta noite fria de Junho é a união de duas entidades naturalmente distintas os GNR ligados à corrente eléctrica com A Banda Filarmónica de Matosinhos-Leça da qual é presidente o Rui Reininho que teve a amabilidade de os convidar para abrilhantar o concerto e estes apresentam um medley que começa pelo hino da RTP e pelo meio tocam “Maria Faia” música popular para um público que cantarola as letras das canções e ao fim de vinte minutos desta temática surgem os GNR que se fazem às “Asas” e ouve-se o sustentáculo da filarmónica que enaltece a beleza da canção assim como sucede em “Popless” e esse papel é de realçar nas canções predominantemente lentas haverá em outras que tal é diminuído quase ao mínimo como se estivessem somente a decora-las mas ganha-se numa performance sonora vibrante por parte dos GNR que jogam entre si a pop em “Efectivamente” ou “Mais Vale Nunca” e o rock psicadélico de “Las Vagas” e ainda reggae em “Mosquito” e o dramatismo pop em “Morte ao Sol” e a eloquente por ser naturalmente épica “Pronúncia do Norte” a versatilidade estilística é representativa de quase quatro décadas a reafirmar novas fronteiras à música à passagem dos mutantes GNR; que mesmo que confessem a verdade dos seus actos jamais serão absolvidos deste sacrifício em que a vítima geme e chora antes de ser manietada com mãos de ferro com uma corrente presa aos pés de cimento e que empurram para o interior de uma piscina de água salgada e alguém salva-o e deixa-o na borda à espera que se desequilibre e ouvem-se fogos a estoirar ao longe surgem focos de fumo sobre as cabeças dos revoltosos que descodificam-no como focos que se elevam ao céu num transferir de almas que somente sobem e nada desce nem um raio de sol parece que repentinamente escureceu porque alguém correu o pano do teatro italiano onde as marionetas jogam xadrez contra damas numa imagem que representa o que se transmite das ondas de revolta que assolam as estações de televisão manipuladas pelos fascistas e minada de comunistas e o povo aparentemente serena na expectativa de que o fio que os prende ao silêncio que seja finalmente talvez um dia cortado e se tal suceder que seja como o sempre foi um novo fascista que institui as suas leis que se regem segundo os seus estados de alma ou pelos caprichos decadentes da sua consorte que consome o tempo a mima-lo a trata-lo por pai a paparica-lo e a dar-lhe tautau ou a roubar-lhe a constituição para analisar as alterações introduzidas pelos assessores de multinacionais de produtos de origem animalesca em vias de extinção.

GNR & A Banda Filarmónica de Matosinhos-Leça, 10 de Junho, Senhor de Matosinhos, Matosinhos.