Comunica lentamente como se cada frase tivesse o peso de uma vida: “eu pedi aos meus pais, em vez de ir para as montanhas, para onde iam durante as férias, que pudesse ficar em casa a ler e durante esse período, li de dia e de noite, lia um livro por dia.” Chama-se Tomás Eloy Martinez e conversa com a inevitável Ana Sousa Dias, que o acolhe no estúdio de “Por Outro Lado”. E como é que começou a escrever? “Decidi que poderia tornar as histórias que imaginava em contos, e escrevia tudo o que me parecia verosímil” porque “eu acredito que o escritor é aquele que escreve sobre aquela área cinzenta que existe entre a realidade e o sonho” e é “precisamente durante o sono, quando sonho, que nascem as minhas histórias, acordo e escrevo o que vi, no dia seguinte releio para ver se há algo de substancial que possa ser explorado numa história.” Na, Argentina de onde é originário, “fui perseguido pelo ditadura militar”, algo que o obrigou a procurar “refúgio nos Estados Unidos, onde a minha mulher, que era venezuelana, foi convidada a dar aulas numa universidade”, pouco depois “fui convidado para criar o gabinete de estudos latino-americanos, onde institui os estudos sobre a literatura portuguesa, que é riquíssima.” À “saída da universidade, eu e a minha mulher fomos atropelados, ambos voamos, mas eu caí e fiquei tumefeito, ela morreu. Fiquei tristíssimo e cai numa depressão profundíssima, mas eu tinha que tomar conta da nossa filha que tinha quatro anos, para além de me ter enamorado, oito meses depois, de uma outra mulher e voltei à escrita.” Uma das suas obras era uma ficção sobre a relação entre “Evita e Perón, que eu criei parcialmente, porque havia partes já realizadas por um historiador, eu limitei-me a preencher as partes que faltavam à realidade. Depois de o ter escrito recebi um telefonema numa noite, eu já estava deitado, porque somente gosto de escrever de dia, especialmente durante a manhã, atendi e oiço: “você está enganado, nós é que somos os donos do cadáver de Eva Perón.” Eu respondi: como? Mas não me podem telefonar durante a manhã? “Não. Tem que vir ao nosso encontro ao café”, eu liguei para o meu advogado e disse-lhe: que faço? “Eu vou contigo, fico noutra mesa a ver o que se passa, porque eles a mim não me conhecem.” Mostraram-me fotografias do cadáver, que estava embalsamado, fui à casa de banho com o meu advogado e perguntei-lhe: que faço? Estas pessoas tinham o cadáver de Evita há vinte anos! Ahaha!” Enquanto director do departamento de línguas latinas “organizei um colóquio com diferentes escritores e jornalistas. Telefonei ao sub-director da “Folha de São Paulo” para confirmar a sua vinda aos Estados Unidos, ele disse-me que sim que viria. Pouco tempo depois volto a telefonar para o Brasil e informam-me que esse jornalista havia desaparecido, como? Fiquei surpreendido. O que se passou foi que ele havia dado dois tiros na cabeça da noiva—eles viriam realizar a lua de mel à América—porque esta havia sido infiel e que havia fugido! Ela foi-lhe infiel com um outro convidado ao tal colóquio! Algo que eu já havia escrito em “La pasión según Trelew”, ahahha! Telefonei ao director do “Estado de São Paulo”, que já havia recebido o livro, e ele disse-me: “é incrível! Como é possível! Que coincidência!” Ri do facto de, por vezes, escrever a realidade: “coloquei na voz da Evita a seguinte frase: obrigado por existires, como se ela o tivesse dito ao Perón. As entidades argentinas colocaram-na no túmulo da Evita! Ahahh.Obrigado por existires!”
Tomáz Eloy Martinez em "Por Outro Lado"