terça-feira, 24 de março de 2009

Um Homem na Cidade

Entra em palco um trio de músicos, guitarra portuguesa (de Lisboa), a viola e o baixo, todos de natureza acústica, começam por afinar os instrumentos e de seguida iniciam a canção, surge Carlos do Carmo de fato escuro camisa branca, assim como a sua melena que apenas lhe cobre parte do crânio, que tem rosto de menino que relata a vida alheia: “Talvez a mãe fosse um rameira de bordel e o pai um aristocrata em decadência”, talvez o tenham educado “entre navalhadas”, “nasceu assim, cresceu assim, chama-se fado”. Carlos do Carmo, tem um timbre aveludado que não precisa de exibir-se em subidas e descidas de escala, é um sopro quente do antigo. “Certa noite, vi o meu destino nos teus olhos fatais e fiquei tão pequenino”, o ritmo é lento e Carlos do Carmo segura o microfone como se fosse uma cruz, “não sei voltar ao passado nesta noite derradeira”, “vejo-te ainda ao meu lado neste fado bailado”, “vou contigo, coração a morrer dentro de mim. Se ainda bates sem razão”. “Boa noite Figueira, foi com muita alegria, que quando aqui cheguei às cinco da tarde, vi que a sala estava esgotada. Foi muito bom! Assim como é encontrarmo-nos no início da Primavera e no Dia Mundial da Poesia”, em Lisboa deram-lhe a alcunha do Charmoso, é o último fadista contemporâneo da Amália. “Traz as rosas mais frescas do jardim”, “põe o vinho no copo”, “cruza as mãos no regaço”, “prova depois o vinho como o pão”. “Até agora só cantei homens, agora vou cantar uma mulher: Maria do Rosário Pereira, andei com ela ao colo”: “são as línguas das mulheres que vinham lamber-me a ferida se me virares as costas”, “não sei se me traíste, mas eu senti-me traído, mesmo sem ter a certeza”, “tens de perder a mania de deixar as pontas soltas na história do nosso amor”. Ao referir-se ao trio de músicos “parecem engenheiros hidráulicos, era o sonho da minha mãe que eu fosse engenheiro". O próximo poema é da Maria Teresa de Noronha, “revejo tudo e reduzo o meu amor de toda a hora, minha amante, minha amiga, na manhã à toda hora”, “um amor quase perfeito”, “não sei se é contigo se é comigo que me deito”, “coração quase morto”, “fado longe, fado perto, fado destino de mim”, “às vezes é um deserto outras vezes um jardim”, “só este fado de amoooor”. Sobre Dean Martim do qual se diz amigo: “ele estava com uma bebedeira tão grande. Perdoem-me este parêntesis”, “um chuto”, “um céu no olhar”, “os putos”, “mas quando a tarde cai senta-se no colo do pai”, “os putos”, “as carícias brilhando na mão”, “parecem bandos de pardais à solta”, o público: “os putos”, “são os putos deste povo a aprender a ser homens”. Desce do palco para a plateia: “o prazer de cantar, tem algo de narcísico. Os meus filhos já não se recordam de me ouvir cantar a brincar”, “a vida já passou um bom bocado”, e lembra, “fez vinte e cinco anos em Janeiro que morreu José Ary dos Santos”, “era a tarde mais longa que me acontecia”, “surgiste na tarde”, “meu amor”, “já não tenho a certeza se és a alegria ou a tristeza”, “foi a noite em que os nossos corpos cansados não adormeceram”, “meu amor”, “minha estrela da tarde”, “meu amor”, “é por ti que acordo”, “essa noite que nasceste despida de magoa e de espanto”, finaliza a pedir uma ovação ao “Dia Mundial da Poesia, palmas! Para o nosso Ary! Sempre!”
Aparecem os músicos da Sinfonieta de Lisboa, que em nada acrescentam aos temas, por vezes alguns apontamentos não são redundantes, mas apenas servem para realçar o trio de músicos em particular a guitarra portuguesa. “Os amantes infelizes deveriam ter coragem para mudar de caminho, o amor dá-nos tudo”, “mas quando a vida se acalma”, “se estás a tempo amordaça o coração”, “mas se não estas contínua, diz-me isto a minha mãe, ao ver-me chorar por ti”. Discursa: “os puristas não gostam que nós cantemos com orquestra. Todos os meus êxitos, foram sempre com orquestra, e se me perguntarem se eu me sinto fadista a cantar com orquestra? Eu digo que sim”. E canta como se fosse um cauteleiro embriagado, “perfeito coração, no meu peito”, “esse olhar que era só teu, amor que fostes o primeiro”, “morreria no meu peito”, “meu amooor”, “na tua mão, mas a mão bateu no coração”. Sobre a Sinfonieta, Carlos do Carmo é taxativo: “são todos músicos portugueses, todos!”; “pela manhã vi como dormem os silêncios”, “e na ternura do meu quarto a loucura”, “só vejo a manhã do dia”, “só agora é que não estou perdido por ser de noite”, “procuro o sol da meia-noite nesta tarde”, “só agora a voz faz sentido”, “por ser de noite”, “canto o fado ou estou perdido?”. De seguida apresenta o autor da décima primeira canção, este tema é de “um dos maiores melodistas que o fado já teve: Max”, “e gravar na minha pele as fontes da minha dor”, “a noite continua…”, a amplificação da sala é anulada, Carlos do Carmo improvisa sem o microfone, “que se estendia no mar”, “noite, céu dos meus casos perdidos”. O cantor justifica o erro, “estas coisas podem acontecer”, “lá vai no mar da palha o cacilheiro”, “pouco tempo e muita mágoa”, “parece um barco lançado no Tejo por uma criança”, “Bairro Alto, tu cá, tu lá, um barco de brincar”, “e parte de um cais que cheira a jornais”, “fica mais triste o coração da água”, “pouco Tejo, pouco Tejo e muita água!”. A guitarra portuguesa inícia um clássico que a orquestra acompanha com respeito, “agarro a madrugada como se fosse um criança”, “uma videira de esperança”, “tal como o corpo da cidade”, “que desagua no Rossio”, “sou um homem na cidade, que de manhã acorda”, “vou pela estrada deslumbrada”, “sou gaivota que derrota toda a tempestade”, “agarro a madrugada como se fosse uma criança”, “o malmequer dessa cidade que me quer bem”, “a falar sem medo”, “como aroma que o mar tem!”. O trinar do fado vadio, “vou cantar o Bairro Alto”, “tristes bizarras em comunhão, andam guitarras a gemer de mão em mão”. A flauta respira em surdina prolongando os acordes das guitarras, “tu deixas-te de ser minha”, “por morrer a andorinha não acaba a Primavera”, “se deixaste de ser minha, não deixei de ser quem era”, “e os dias passam bem”. Os violinos e a flauta dão continuidade à melodia da guitarra portuguesa: “No castelo ponho o cotovelo, em Alfama descanso o cotovelo”, “a almofada na cama do Tejo”, “tão pura”, “teus seios são as colinas”, “cidade a ponto luz”, “cidade da minha vida”, “és mulher de rua”, “Lisboa menina e moça”, “seios”, “cidade a ponto luz”, “amada”, “cidade da nossa vida”, “cidade por minhas mãos despidas”, “cidade da minha vida”. A acentuar os acordes circulares, “canoa de vela erguida, que vens do cais das colinas”, “sem encontrar companheira”, “canoa de vela em banda, que vens da boca da barra, os gemidos de uma guitarra”, “agora muita cautela, não vá o mar acordar”, “nunca, nunca, nunca mais”, “canoa por onde vais?”, “nunca mais voltas aos cais?”. Carlos do Carmo conta uma história da sua juventude, “o Sammy Davies Jr., veio a Lisboa, o Monumental não encheu. O Sammy veio com baixo, bateria, guitarra, e com uma orquestra que veio de Londres. Estava na plateia uma senhora americana que lhe pediu uma canção que não estava no alinhamento, o Sammy olha para o Maestro, e este abana a cabeça positivamente. E ele cantou a canção que a senhora queria ouvir e no fim disse: “You see, I `m very nice boy, I do what I`m told”. A guitarra e o baixo abrem espaço à voz: “sagrado é este fado que te canto. Do fundo da minha alma tecedeira”, “e passei por tantas portas já fechadas”, “que dão a liberdade ao passarinho”, “encho o meu vazio de coragem”, “a fome de estar vivo é tão intensa”, “paixão que se alimenta de perigo”, “só ter por garantia ser antigo”. “Este fado que vou cantar a seguir é mesmo o último. Esta terra é muito bonita, muito especial”, a viola faz um dueto com Carlos do Carmo, “sob a luz de um candeeiro está ali um fado inteiro”, “um certo ar fadistão, que qualquer homem assume”, por entre o público e sem microfone, “mas o fado nunca é o que se pensa”. E no penúltimo tema versa um acontecimento histórico do baixo Mondego, “eu podia chamar para mim, esse amor de Pedro por Inês”, “como dizer, coração fora do peito”, “não há flor, não há flores de verde pinhoo”, “gostar de ti é um poema que eu não escrevo”, “este fogo de amor”, “como dizer este coração fora do peito”, “não há guitarras nem cantares de amigo”, “não há flor, flores de verde pinhoo”.

Carlos do Carmo e Sinfonieta de Lisboa, 21 de Março, Centro de Artes e espectáculos da Figueira da Foz.

terça-feira, 17 de março de 2009

Smog City

Não há baixo ou bateria nem teclados, mas estes são fundamentais para a música The Sisters of Mercy, reduzidos a Mr. Eldrich e a dois guitarristas e um outro elemento escondido que se ocupa da maquinaria. Portanto: noventa por cento é artificial o resto humano. A voz é o elemento mais familiar que uiva ou grita e debita as palavras em inglês como se ainda fosse um adolescente, mas a careca e os óculos escuros escondem um homem próximo dos cinquenta, veste um fato de mercenário, poupa na gestualidade, e esconde-se constantemente no fumo, de tão excessivo impede ver de onde vem a voz, as luzes estão viradas na direcção da plateia do Coliseu de Lisboa, para nos encadear. The Sisters of Mercy representam o gótico flamejante que graça na Inglaterra, pode-se denominar de maneirista, a cor nas canções deriva da melodia, decepada pelas guitarras em constante distorção ou a jogarem em dupla assassina, o ritmo por vezes assenta em programações datadas da década de oitenta do milénio passado. A decadência enfeitiça como se o desperdício fosse o único elemento a ser valorizado por uma sociedade em profundo declínio, onde as adolescentes grávidas fazem fila para dar à luz um bebé de uma criança de 12 anos. The Sisters of Mercy são os embaixadores de um império de sons que atrai corpos tatuados com corpetes que exibem os seios, ou, homens com cabelos compridos e chapéus de cowboy, deliram com um “dirty boulevard” e “Temple of Love”, são realidades que apesar de desordenadas, fazem sentido na voz de Mr. Eldrich. Que diz “obrigado” ou “thank you”, antes de se esconder no templo onde se recria o passado, numa inesgotável negação da realidade que o circunda, num ciclo viciado no interior de um túnel onde o fumo é sinónimo de mistério e de cemitério por onde escorregam as almas.

The Sisters of Mercy, Coliseu de Lisboa, 16 de Março

quinta-feira, 12 de março de 2009

Zé Carvalho

Um homem de estatura média, cabelos encaracolados, e uns olhos ampliados pela graduação dos óculos e a partir dos quais media as distancias e o valor das pessoas. Sempre que nos recebia no Búzio era caloroso e simpático, e se tivermos a sorte de ficar para lá da hora de funcionamento do restaurante, ouvíamos as suas histórias com agrado nas quais relatava revelações sobre figuras que conhecia. Era um luxo tê-lo como amigo. E será sempre com enorme agrado que recordo a sua coragem ao manter a publicidade do Búzio ao lado do cabeçalho da Linha do Oeste, numa altura em que Santana Lopes era o edil da Figueira da Foz. E que havia proibido a publicação de noticias/notificações camarárias no semanário onde trabalhei (algo inconstitucional). Este facto amedrontou compradores e anunciantes, foi como uma pena capital para nós, nunca desistimos até o ponto de nos ser impossível prosseguir. Mas o Zé Carvalho esteve no nosso cabeçalho até ao último número, sem ser um reflexo do medo que graça(va) nesta pobre e tresloucada localidade. Haja alguém com coragem e que não se vergou a pressões destes ou daqueles, que fez da sua vida um pretexto da liberdade e que sempre foi grato aos que se assumiram como seu amigo. Eu sou, fui e serei um dos que partilhou alguns instantes que foram sempre exíguos para desfrutar da sua companhia.