quinta-feira, 31 de julho de 2014

Peter and the Wolf

Surge no palco da Expofacic, em Cantanhede, um pelotão de músicos da Guarda Nacional Republicana, sentam-se nas respectivas cadeiras, e afinam os instrumentos de cordas. Após este acto, a Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana, executa uma partitura, que evoca delicadamente um andamento allegro ma non troppo: as cordas alternadas, por entre os trombones versus as trombetas, impregnam-na com um leve imperialismo; mas o óboe oferece-lhe uma inesperada delicadeza e a ascendência dos sopros relegam-na para ser ouvida durante a leitura de um romance de cavalaria. Os membros da Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana levantam-se das cadeiras e batem palmas e o público acompanha-os, surge o Grupo Novo Rock: Tóli César Machado, Jorge Romão e Rui Reininho; acompanhados por Jorge Oliveira, Miguel Amorim e Andy Torrence. Quem dá início à segunda canção, “Popless”, são as cordas da Guarda Nacional Republicana, o fenómeno sonoro é progressivamente lento com aforismos de uma beleza irrecusável; os sopros irrompem apelativamente e despertam uma claridade que encandeia os ouvidos de tal forma são épicos. Jorge Romão, Rui Reininho-- que veste um blazer branco que o emoldura com a inscrição: “The Last of the Famous International Playboys”-- Tóli César Machado e Andy Torrence, estão estáticos, olham directamente a multidão, que bate palmas. Rui Reininho apresenta-se: “Bom dia”. A programação é uma referência rítmica contemporânea, que é acompanhada pelo baixo eléctrico de Jorge Romão, e por fim a bateria enquadra-se na sua reminisciência Pop; e os sopros da Guarda Nacional Republicana subliminarmente sublinham a doçura dos acordes de “Popless”. O Grupo Novo Rock dá continuidade à Pop ligada à eléctricidade, e a adopção da repetição dos acordes instituem uma potencial hipnose. A voz Rui Reininho refere: “Maldito espelho devolveu a imagem dela sem reflectir”. O narrador desconhece o verdadeiro rosto da Popless, mas paradoxalmente sente que ela “passou ao lado”; os sopros da Guarda Nacional Republicana respondem-lhe com uma acentuação trágica que sublinha a lírica: “deixa-la zarpar”. A Guarda Nacional Republicana através das cordas e dos sopros repetem os acordes circulares que simbolizam “Popless”, propagando-se como se fossem um loop; sobre o qual Rui Reininho canta: “lá vem ela sabendo que é linda”, induzida pelo encantamento imposto pelo cantor. A progressão dos acordes, por parte do Grupo Novo Rock e da Guarda Nacional Republicana, prescreve um minimalismo kitsch: círculos e semi-círculos em constante contra ciclo, “ficou à toa”, “sabendo que mexe”. Quando Rui Reininho canta “Popless” surge a exorbitação dos acordes; e as cordas da Guarda Nacional Republicana conferem-lhe um dramatismo de romance de cordel, por contraposição os sopros são laivos de masculinidade: “E ela paga o jantar”; estes aliam-se inconscientemente à psicadélica pop instituída pelo Grupo Novo Rock (GNR). “Linda”. “Boa”. “Daqui até Lisboa”. “Popless”, “Popless”. A Guarda Nacional Republicana adensa a narrativa, através dos sopros e das cordas, que impregnam “Popless” com uma tepidez inesperada, o solo da guitarra eléctrica de Andy Torrence é um sombreado malicioso. “Ai lá vem ela sabendo que mexe”. A progressão é conjunta, entre GNR + Guarda Nacional Republicana, vertendo uma massa melódica de contornos épicos, que encerra e liberta-nos da hipnose. Rui Reininho protocolarmente: “É um prazer e uma honra; é muito bom estar em Cantanhede”. A terceira canção, “+ Vale Nunca”, tem uma melodia infantil, promovida pelo teclado de Miguel Amorim, que corresponde a bolas de sabão a inundarem o ar; a métrica que os GNR impõe, é a da Pop impregnada com corantes e conversantes, de tal forma é viciante. Os sopros da Guarda Nacional Republicana, dão continuidade à infantilidade do teclado, e expurgam uma saudade ingrata para com a infância, mas que é impossível de ignorar. A alegria do primeiro estágio de desenvolvimento é resumida alegremente por Rui Reininho: “Há um bicho novo para limpar, logo, logo ao nascer um grito mudo que tentam calar”. O refrão resume a incapacidade do ser humano em resistir ao desenvolvimento do seu organismo: “Mais vale nunca mais crescer”; e o conjunto de sopros, da Guarda Nacional Republicana, sublinha a doçura da melodia. E surgem as dores naturais do crescimento: “cérebro em fuga”; e os GNR reescrevem a Pop perfeita, que impõe a adolescência como patamar último da existência. “Mais vale nunca mais perceber”. “Mais vale nada”. “Mais vale nunca mais crescer”. Entre, as cordas e os sopros, da Guarda Nacional Republicana, há um despique ganho por estes últimos que conferem à melodia um dramatismo kitch. Sobre o ritmo Pop, os músicos da Guarda Nacional Republicana, batem palmas alimentado-a com uma inesperada festividade. Sobre o compasso espaçado o baixo eléctrico de Jorge Romão sola, e desloca-se sobre o palco marcando fisicamente o ritmo. A partir deste ponto, os GNR reintroduzem a melodia Pop; e Rui Reininho canta: “E vais ouvir e ver”. A pontuação dos sopros e das cordas, da Guarda Nacional Republicana, estão omnipresente, como uma alma feliz por ter encontrado um humano para encarnar. “Nada apetecer”. “Mais vale nunca mais crescer”. O andamento imposto pela banda da Guarda Nacional Republicana, entra em constante progressão com a massa rítmica e melódica dos GNR. “Ficas à aprender”. Jorge Romão responde a Rui Reininho: “Mais vale nada”. O aumento da altura e do ritmo consigna a “+ Vale Nunca” um poder que é de tal forma violento quanto inquisitório da vulgarmente denominada razão, que não se encontra ao alcance da menoridade, obtendo como resultado um perpétuo desejo de confiscar à realidade a sua verdade. Palmas. “Obrigado Senhores e meninas. A minha farda não é sexy”. Rui Reininho aponta com o braço para a parte de trás do palco, onde se encontra sentado a Guarda Nacional Republicana, com o respectivo maestro, e conclui: “A destes senhores é que é, trocamos camisolas no fim”. A quarta canção, “Pronúncia do Norte”, tem como princípio os sopros e as cordas da Guarda Nacional Republicana, que introduzem uma delicadeza desarmante; e as cordas naturalmente deambulam pela paisagem nocturna, e proporcionam uma brisa ondulante que induz à concentração. Miguel Amorim dedilha o teclado do piano, e por cada nota sucumbe o Outono ao advento do Inverno. E a voz de Rui Reininho é uma encíclica que pretende converter os ouvintes à autodeterminação: “Há um prenúncio de morte, lá do fundo donde eu venho”. Miguel Amorim mantém o fraseado invernoso, e por fim, Rui Reininho declara guerra à aculturação: “É a pronúncia do Norte, os tontos chamam-lhe torpe”. Quase diafanamente: “E o dia não esteja triste”. O acordeão de Tóli César Machado, lança um arfar abstracto, que ilumina a melodia de “A Pronúncia do Norte”; a bateria eclode, e com a cumplicidade do baixo eléctrico de Jorge Romão, elevam-na à condição de objecto artístico, preponderantemente Pop. A voz de Rui Reininho abandona a súplica e transmuta-se num dignatário orador: “Corre o rio para o mar, e há um prenúncio de morte”. A Guarda Nacional Republicana, relega-se para um apontamento, através dos sopros e das cordas, que pretendem sublinhar a correnteza inevitável do tempo na narrativa cinematográfica. Rui Reininho ironicamente e directamente: “Obrigado aos Mouros”. E o acordeão de Tóli César Machado assume-se como um dramático interlocutor, e a banda da Guarda Nacional Republicana propõe um andamento balanceado, digno de uma barca do inferno a flutuar no purgatório repleta de banqueiros do povo. Rui Reininho discursa: “Aparentemente, oficialmente já não somos lixo. Nunca lá estivemos, muito menos, os GNR”. A quinta canção, “Efectivamente”, tem como ponto de partida o piano de Miguel Amorim, as notas são dedilhadas saltitantemente, a bateria através da tarola impregna-a de um ritmo radioso, e o baixo de Jorge Romão reconfigura-a para uma métrica Pop, que as guitarras polvilham-na com polén, e o resultado é uma melodia que vicia porque jamais teve uma idade pré-definida. O narrador observa distanciadamente a realidade que o circunda, e que adora: “O riso das crianças dos outros, cágados de pernas para o ar”. Surgem poeticamente os sopros, da Guarda Nacional Republicana, mas são as cordas, através de um andamento inicialmente triste, que instauram progressivamente uma textura festiva, mimetizando os acordes do teclado de Miguel Amorim, transportam-na para uma aria em que o soprano é Rui Reininho: “Adoro esses ratos do esgoto, que disfarçam ao dealar, como se fossem mafiosos convictos, habituados a controlar”. Jorge Romão e Tóli César Machado: “Lálálá”. Rui Reininho: “Aparentemente”. Jorge Oliveira altera a frequência rítmica, alicerçada no bombo, para o predomínio dos pratos. “Efectivamente sem moralizar”. Rui Reininho bate palmas, e desperta a vegetação que o circunda, diluída numa composição naturalista do Banksy. Da conjugação, da Guarda Nacional Republicana e do Grupo Novo Rock, surge uma progressão hipnótica, um alçapão que seduz a consciência, e a sua voz canta alegremente: “Efectivamente sem moralizar”. Rui Reininho agradece, à Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana, “muito obrigado”. Rui Reininho sussurra o nome da sexta canção: “Bellevue”. Os sopros, da Guarda Nacional Republicana, derivam de uma alma penada; e as cordas adensam a melodia de “Bellevue”, e por fim, os trombones carregam-na com um festivo funeral. A valsa é imposta pelo compasso da bateria de Jorge Oliveira; e os GNR comungam em redor de uma melodia negra. Rui Reininho canta: “Leve, levemente como quem chama por mim”. Sob a negritude, a Guarda Nacional Republicana, sublinha a melodia, com uma presumível fatalidade. O Rui Reininho descreve: “Uma ideia brilhante cintila no escuro”. O narrador, é simultaneamente a personagem principal da narrativa, que descobre uma sinalética que o alerta: “cuidado com o cão”. A melancolia da valsa negra, encontra na voz de Rui Reininho, um timbre carregado de uma inebriante densidade dramática, como se não estivesse presente, apenas o seu espírito, feixe de luz, personagem que ninguém quer ouvir. A alma de Rui Reininho contínua o seu percurso num labirinto: “onde ponho o pé e subo a mão”. “Bellevue”, ganha uma consentânea tristeza, mas com tonalidades infantis, que fariam dançar um boneco de corda suicida, que a impregnam de uma beleza horribilis: “Sabem que me escondo na Bellevue”; “Ninguém aparece ao meu rendez-vous”. O local, onde se encontra a alma de Rui Reininho, é adensado pelos sopros versus as cordas-- da Guarda Nacional Republicana-- e esta conjugação infecta, “Bellevue”, com a presença da Morte, “sorriso cruel”. “Salto para a cama e experimento o colchão”. A relação, entre a banda da Guarda Nacional Republicana e o Grupo Novo Rock, é tétrica e progressiva, resulta na ondulação dos primeiros, que é ressalvada por uma contínua exorbitação, por parte dos últimos. A alma canta: “Sabem que me escondo na Bellevue”. “As minhas amiguinhas no fundo do jardim”. Os sopros, da Guarda Nacional Republicana, insurgem-se através de um ondular saltitante, como uma tempestade num corpo de água azul; e as cordas repercutem o dramatismo da melodia a sangrar, e erigem uma profundidade épica. Noutro tempo, “Bellevue”, seria a marcha fúnebre de D. Quixote, e a segui-lo, estaria a cabisbaixa e chorosa, mas magnânima Dulcineia del Toboso. A alma marca as vogais, e transmite uma dor que é uma hipnótica oração, clama para se ausentar da sua prisão: “Sabem que me escondo na Bellevue”. “Ninguém aparece ao meu rendez-vous”. O crescendo melódico entre as duas texturas, a acústica e a eléctrica, interage numa concertação que invoca a hipnose, que possui em simultâneo a consciência e a inconsciência, e renega o vazio, mesmo quando os sonhos estão crivados de pesadelos. “Os meus amigos, no fundo do jardim, agora mais ninguém confia em mim”. “Mais ninguém confia em mim”. A progressão, entre as duas entidades, é transcrita através de um crescendo épico, e a valsa cobre-se com um manto misterioso de tão tenebroso, um encantamento proporcionado pela leitura do D. Quixote de la Mancha. “Era só para brincar ao cinema negro”. “Os corpos no lago eram de gente no desemprego”. Palmas. Rui Reininho discursa para o seu reino: “Ao jazz, à música ligeira, e a traficar robalos”. Agradece ao vulgo: “ Muito obrigado, Cantanhede e arredores. Muito obrigado, por estes trinta e três anos da nossa vida”. A sétima canção, “Tirana”, é a primeira que é executada exclusivamente pelo Grupo Novo Rock. A frequência rítmica é espaçada, a partir deste ponto sobressai o baixo eléctrico de Jorge Romão, e as harmonias das guitarras progridem lentamente provocando uma serenidade ondulantemente Pop. “Tirana é um lugar quem sabe difícil de encontrar”. A progressão é dominada pelas guitarras de Tóli César Machado e de Andy Torrence que impregnam, “Tirana”, com uma cor de um topázio onírico. “Avançar e tirar…”; o Hammond de Miguel Amorim institui uma profunda e inebriante tristeza, “foi muito sedutora”. A delicadeza do canto de Rui Reininho é de uma sedução ultrajante, “atirar à sorte sem o intuito de acertar”. A bateria de Jorge Oliveira acelera pontualmente o ritmo; e quando “Tirana” aporta no refrão há uma alegria contida: “3-2-1 é só subtrair para poder reinar”. A flutuação onírica é contínua, o narrador é um eterno sedutor que descreve o objecto dos seus desejos através de um paradoxo: “foi ferida e unguento”. O seu auto-retrato: “Tirana é sincera mas só por um momento”; a beleza do canto de Rui Reininho é mais fundo, “se ela ainda te enganar”. Sobre a Pop ondulante, que expira uma toxicidade recreativa, a voz assume-se como um falsete de serpente hipnotizante: “Multiplicar somar espírito investir”. A aprendizagem de uma teoria composta por um desmando irracional: “Aprender a dividir para poder reinar”. Os GNR renegam parcialmente a correnteza Pop para se aproximarem de um blues discreto, sem abandonarem o crescendo hipnótico, quem se liberta deste jugo é o solo de Andy Torrence e o Hammond de Miguel Amorim. “É só subtrair para poder reinar”. “Carne para canhão”. Andy Torrence através de um solo magistral, percorre por dentro e por fora a melodia de “Tirana”. A bateria assinala o encurtar do ritmo: “3-2-1”. “3-2-6 para poder reinar”. “3-2-6 para poder ganhar”. E a hipnose é matéria que se dilui transcendentemente. Palmas. Rui Reininho apresenta o canadiano: “Andy Torrence on lead guitar”. “Odeio que digam teclas… Miguel Amorim”. Na bateria: “Jorge Oliveira”. A oitava canção, “Cais”, é a segunda que é executada exclusivamente pelo Grupo Novo Rock. Sonicamente está fundeada num ritmo adocicado, que é sublinhado pelo teclado de Miguel Amorim, mas quem lidera é Jorge Romão. Rui Reininho descreve uma embarcação inexistente: “Quando um barco tem pés para andar”. A Pop é congeminada através de uma leveza rítmica, mas a conjugação da guitarra eléctrica com a semi-acústica, impregnam, “Cais”, com rasgos de luz. O discurso poético é o de um oráculo preso num aquário: “só veem chatear”; “Quando a maré chegar”; “crude limpar”. A progressão instigada pelas guitarras que contaminam a consciência, na qual surgem como que por encantamento, ondas que espumam esperma: “sereias sensuais”; que se prostituem: “vendes o Cais”. A bateria e o baixo alteram a métrica e inscrevem uma chama agridoce, este facto reflecte-se na narrativa: “Se ainda se ama o mar salgado”. O convite é irrecusável: “Então é ver no cinema se ainda ´Há Lodo no Cais`”. Por entre o derramar de feixes de luzes em chamas, destaca-se a guitarra de Tóli César Machado oferecendo-lhe uma delicadeza desarmante. “Sereias sensuais vendes o Cais”. A intencionalidade da bateria de Jorge Oliveira é mais firme e consequentemente agressiva, a partir da qual os GNR reiteram uma intensidade sustenida que ilustram os acordes tórridos de “Cais”. A questão: “Se ainda se ama o mar salgado?”. A voz de Rui Reininho é um fluxo que apela para a proximidade de uma tragédia, um castigo inultrapassável: “Muito cuidado atina voltas ao Cais”. A guitarra de Andy Torrence rejeita uns acordes minimais- trémulos, nervosos e penetrantes. “Lá do fundo do mar imundo sais”. E irrompe deste universo intrauterino: “Sereias sensuais”. A melodia instituída pelos GNR é o chamamento por um astro marginal. “Se o pecado mora ao lado”. “Então é ver no cinema se ´Há Lodo no Cais`”. Com a frequência rítmica a decair lentamente, Rui Reininho declara: “Standard& Poor`s; aguenta voltas ao Cais”. Palmas. Rui Reininho não precisa de um miradouro para ver a multidão, que o observa no palco da Expofacic, e não lamenta: “Ai! Já fumega!”; “cheira bem, cheira a churrasco”. O interlúdio da nona canção, “Asas”, é praticado pela banda da Guarda Nacional Republicana, que deve ser adjectivado de delicado. A partir deste fluxo o Grupo Novo Rock introduz a sua electrizante Pop mas sonhadora melodia, “sonhar”, “mil casas no ar”. Rui Reininho é um narrador omnisciente: “as asas são para proteger”. A banda da Guarda Nacional Republicana repercute-se através de um adensar da secção das cordas, que sub-repticiamente se introduz no inconsciente. “No alto do ar”. Os sopros da Guarda Nacional Republicana respondem ostensivamente ao canto de Rui Reininho. A lenta profusão das harmonias impedem o público de acordar do sono denominado de R.E.M. “É um amor que vês nascer”. Quando sobressaem os sopros e as cordas em parelha e intercaladamente, mimetizam o som da intromissão da alma no corpo. “Asas” é agredida pelo solo Andy Torrence, que se intromete entre a Guarda Nacional Republicana e o Grupo Novo Rock. A voz é frágil: “mas só quando quiseres pousar”. Por entre a Pop, transparente de tão dedicada, há um brilhar de diamante lapidado com os rostos de Jorge Romão, Tóli César Machado e Sua Alteza Rei, Rui, declara: “Já não há leis para te prender, aconteça o que acontecer”. Rematada com um crescendo épico das cordas e sopros da Guarda Nacional Republicana. Rui Reininho não desabotoa o botão do blazer branco e afirma: “Não somos como aqueles que nos casamentos desabotoam o botão. Somos GNR”. A décima canção,“ Sexta-feira (um seu criado) ”, é introduzida pela banda da Guarda Nacional Republicana que desenha a melodia alegremente. Este rasto é amplificado pelos GNR que instauram uma concisão entre a Pop e o Rock. Rui Reininho decreta: “É Sexta-feira em Albufeira o Mundo esteve para acabar”. A progressão Pop sobrepõe-se ao acompanhamento da banda da Guarda Nacional Republicana. “Falta a tua confissão”. “Só sou eu no beija-mão?”. A Guarda Nacional Republicana emerge consentaneamente através de um timbre agudo, que sublinha a narrativa de Rui Reininho: “Já chegamos à Madeira”. “Ninguém vai levar a mal”. O pulsar da bateria é mais assertivo e coloca “Sexta-feira (um seu criado) ”, numa constante aproximação ao Rock, acrescido dos acordes épicos da banda da Guarda Nacional Republicana dos quais irrompe a Torre de Babel. Rui Reininho ataca o povo: “Falta a minha confissão e vocês no beija-mão”. “Já não dou nem para o Dj”. Os solos épicos-minimais de Andy Torrence, sobre a violência da métrica da bateria, intercalam com a crescente imposição da banda da Guarda Nacional Republicana. A voz continua a ditar as regras que ainda estão por cumprir: “Falta a tua confissão, faltei eu ao beija-mão”. O resultado final corresponde a um crescendo entre os GNR e a GNR que conjugam uma simbiose épica. Na décima primeira canção, “Sangue Oculto”, predomina o solo sustenido de Andy Torrence que é vilipendiado pela detonação da bateria de Jorge Oliveira, este encontra em Jorge Romão o operacional que acende o rastilho, que se encaminha para o barril de pólvora. A banda da Guarda Nacional Republicana replica em surdina os acordes do refrão: “Ao fugir de uma fronteira é como saltar uma fogueira”. A confissão de D. Sebastião: “Sangue latino que temos para dar”. As luzes do palco derramam um vermelho cor de sangue venenoso, que tolda o entendimento entre o bem e o mal. Quando o piano surge no firmamento é para sublinhar a decadência de um universo onde reina a lascívia luxuriante. A intromissão de Andy Torrence incapacita-a de negar a sua origem Rock and Roll, a banda da Guarda Nacional Republicana reflecte essa origem, e o condensado entre ambos é um fantástico aditivo denominado de épico. Palmas. Rui Reininho relembra aos espectadores que se encontram em Cantanhede: “Isto é melhor que Las Vegas”. A décima segunda canção, “Vídeo Maria”, é iniciada por sopros flutuantes que se entrelaçam com as cordas insistentemente delicadas da banda da Guarda Nacional Republicana, sob estes, o pendor rítmico, mas espaçado, da bateria de Jorge Oliveira. O baixo eléctrico de Jorge Romão imiscui-se nesta relação através de uma preponderância dançante, e os acordes do sintetizador dão-lhe uma volumetria kitsch. As cordas da Guarda Nacional Republicana iluminam uma entidade que é identificada pelo observador: “Como um círio cintilante”. Esta encontra-se num espaço sagrado, “em frente ao altar”. A melodia que transmitem é uma alegoria profusamente Pop, que transmite a imagem de uma mulher que tem suspensa na cabeça uma auréola de santidade. “A esfinge de um anjo fumegante”. Os sopros e as cordas da Guarda Nacional Republicana replicam os acordes do sintetizador de Miguel Amorim, aprofundando a perspectiva kitsch. A voz de Rui Reininho imiscui-se como se fosse o canto de um predador virgem: “Sinto um profano desejo a crescer”. O sacrifício que decorre de uma tragédia: “Sinto a língua morta, o latim vai mudar”. A união do Grupo Novo Rock com a Guarda Nacional Republicana incorre num encantamento delirante. “O que ela faz aqui sozinha? Estará a meditar?”. O narrador não controla os seus impulsos: “AIUi” (eco). A melodia de “Vídeo Maria” sublinha a percussão da alternidade entre a realidade e a ficção proficuamente Pop. Rui Reininho outorga-lhe uma urgência ilimitada: “Atirem-me água benta”. O seu demando continua: “Atirem-me água fria”. Quando o Rei baptiza a sua filha de “Maria”, evoca a virgem Maria, mãe de Jesus. Um punhado de membros da Guarda Nacional Republicana bate palmas ao ritmo da bateria de Jorge Oliveira e dão um encanto festivo a “Vídeo Maria”; mas os sopros e as cordas adensam esta beleza. A métrica encurta-se e a melodia Pop ganha uma intensidade que promove uma constante progressão, em que há um domínio óbvio por parte do Grupo Novo Rock. “Depende da nossa fantasia”. Rui Reininho dá os parabéns à Expofacic: “Transformaram uma feira industrial num maravilhoso festival”. A décima terceira canção, “Morte ao sol”, é apresentada pelos acordes do piano de Miguel Amorim. O orador ora pelo dia em que se verá inundado por um manto negro: “Felizmente a noite sai”; os sopros da Guarda Nacional Republicana expelem brumas que toldam a memória e a deixam refém do orador. O solo da guitarra eléctrica de Andy Torrence inscreve-se no limiar de lampejos de uma lua cheia inquietada por nuvens noctívagas. O orador solenemente declara: “Ainda bem que há nevoeiro por aí”; e compromete Cantanhede: “neste lugar”. E “se o amanhã perdido for?”. A bateria de Jorge Oliveira retira “Morte ao Sol” da sua candura testamentária para lhe incutir um ritmo allegro ma non tropo. Mas as cores que repelem os GNR versus a GNR corresponde a um minimalismo/barroco slow Pop. E as trevas “vão demorar?”, o orador reclama para sí o poder de subtrair ao tempo a sua lógica cronológica e como tal é um terrorista. O orador reza: “Estou contente se a luz se esvaí”. As cordas da Guarda Nacional Republicana replicam o respirar de um corpo em vias de estrebuchar, “rouca voz”, e os sopros expiram angustiadamente, “overdoses de pavor”. O Grupo Novo Rock e a banda da Guarda Nacional Republicana reafirmam o seu carácter litúrgico, e o orador decreta: “Eu declaro morte ao sol”; “Eu declaro morte ao sol”. A questão terrífica que anula a realidade: “onde vai a luz?”. Sobre o recrudescer dos sopros e das cordas da banda da Guarda Nacional Republicana, surge o solo épico de Andy Torrence. “Já sobre nós revela certa imagem atroz”. A proximidade da morte é prenunciada pelo esoterismo dos sopros da banda da Guarda Nacional Republicana pejando-a com um mandamento fúnebre: “Directa sim, eu declaro morte ao sol, e a quem o apoiar”. Rui Reininho abandona o palco da Expofacic; o ritmo de “Morte ao Sol” é substancialmente acelerado e as almas despertam do transe imposto pela vida. Rui Reininho regressa ao palco e agradece: “Muito obrigado ao maestro Afonso” e o batalhão da Guarda Nacional Republicana ergue-se das suas cadeiras e sujeita-se às palmas por parte do público. A décima quarta canção, “Sete Naves”, é a quarta executada exclusivamente pelo Grupo Novo Rock. A programação é o ponto de partida, para que gradualmente se introduza o baixo distorcido de Jorge Romão, que conspurca a canção com uma sujidade tétrica, que sub-repticiamente induz a hipnose, e a bateria maximiza a programação e consequentemente instalam um mecanismo de constante disruptiva sonora; o coração de “Sete Naves” está repleto de rodas dentadas impostas pela revolução industrial. Rui Reininho personifica o Cavaleiro da Lua Branca: “sinos, sinetas ao acordar”. E o teclado oferece-lhe uma profundidade emancipadora, através de laivos que mergulham no lado oculto da lua. O Cavaleiro da Lua Branca é constituído por uma substância perecível: “metálicos frios, vontade de enferrujar”. A melodia negra é tolhida pela constante progressão rítmica/arrítmica, que polariza o instalar da hipnose única fonte para a abstração. O Cavaleiro da Lua Branca canta: “Sinto estas veias estalando, artérias por soldar”. As luzes brancas acendem-se e apagam-se e revelam uma paisagem que perturba os sentidos, confiscando-lhe o poder de incutir sensações no consciente. “Diáfanos de envenenar”. A métrica progressiva é de uma máquina alicerçada num groove oleado com ácidos, que impede o consciente de ser dominante sobre o inconsciente. “Para de martelar”. Os GNR incorrem numa progressão que acentua a hipnose tétrica, e o Cavaleiro da Lua Branca, em vez de ser o libertador das consciências, institui uma lei ainda por ser cumprida: “As naves que eu construo não são feitas para navegar, aguentam a violência de um beijo, mas nunca a do mar”. “AAA”, o solo medonho de Miguel Amorim responde à demência do Cavaleiro da Lua Branca que dança enquanto recrudesce o ritmo da canção. E por segundos há um estilhaçar da hipnose, nomeadamente quando surge o solo de Andy Torrence uma granada a deflagrar com um temporizador sustenido. O Cavaleiro da Lua Branca, com o seu blazer branco a delinear-lhe a silhueta estreita, usa o microfone como se fosse a sua lança, e encanta: “voltam-se devagar”. A cadência que resulta da progressão groove/Pop é de estreita relação com a instituição de uma violência que nos mergulha numa maré de cornucópias. O Cavaleiro da Lua Branca canta: “LáLáBomBom”. O seu escudeiro, Romão, responde-lhe: “LáLáBomBom”. “LáLáBomBom”. “LáLáBomBom”. O Cavaleiro da Lua Branca: “nunca a do mar”. As naves que o Cavaleiro da Lua Branca constrói “fundem-se com o ar”. O Cavaleiro da Lua Branca marcha por entre os destroços que impôs à imaginação. Antes de “Ana Lee” a décima quinta canção, a quinta executada em exclusivo pela banda do norte. Rui Reininho declara: “Eu já tenho confiança suficiente… para fazer isto: Queria dedicar esta canção ao meu amigo Francisco Campos. Que adorava esta música”. Soa a guitarra de Andy Torrence a introduzir os acordes exóticos de “Ana Lee”. Rui Reininho desloca-se sobre o palco com o microfone entre as mãos e ganha força para agarrar o ritmo imposto por Andy, e declara: “E dizias”, e neste instante Rui Reininho encarna em Francisco Campos: “E bebi como uma pedra que mata”; “senti as nossas vidas separadas”. A guitarra de Andy Torrence tem predomínio na narrativa sonora, e Francisco Campos canta através de Rui Reininho: “Jaguar perfumado, tigre de papel”. Os acordes são de um profundo e libertador exorcismo imposto pela estéctica kitsch; Francisco Campos reza: “Ana Lee, Ana Lee, Lotus azul nada de novo?”. Francisco Campos introduz-se num “triângulo dourado” e acede ao céu, a partir do ribombar da bateria de Jorge Oliveira é acompanhamento pelos GNR cúmplices na exortação de cores rubras mas tépidas.“E ao vir-me, enfim, em verde tónico, no país onde fumam as cigarras”; “deixei-a a pensar em mim”. As tonalidades que emanam do palco pertencem a uma floresta onde pastam virgens desejosas por Francisco Campos, que se deleita a vê-las a bebericar numa fonte que saliva esperma, ele erige a sua bandeira que é um “tigre de papel” e olha para o céu onde não há “nada de novo”. Pausa. As virgens despem os vestidos diáfanos e revelam a nudez, é a primeira vez que estão a ser observadas por um homem, curiosamente correspondem à sua natureza e cobrem Francisco Campos enquanto Andy Torrence impõe um solo ié ié, algo que impregna “Ana Lee” com uma chama sónica poderosa. “Ana Lee, meu Lotus azul ópio do povo, tigre de papel”. O teclado impõe-se no colectivo, como se fosse uma deliberação festiva mas simultaneamente fúnebre, que emoldura um “poente queimado”. “São unhas que cravam na pele, em mim”. Palmas. Jorge Romão toma a iniciativa de perguntar à multidão que se encontra na Expofacic: “Não há palmas para o maestro?”, o público responde afirmativamente à determinação. A décima sexta canção, “Inferno”, original de Roberto Carlos, editada na década de sessenta do século XX, é acometida por uma violência rok and roleira doseada com um tropicalismo urbano, a banda da Guarda Nacional Republicana tonifica-a com um ar condicionado tórrido. Rui Reininho enfatiza teatralmente: “Só tenho você no meu pensamento”. A melodia é intensamente festiva, protótipo neo- kitsch, que emancipa adolescentes perante as obrigações do amor. “Eu quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo o mais vá prá o inferno”. O público réplica: “Prá o inferno”. Rui Reininho: “E a solidão me dói”. Há uma progressão que instala uma hipnose, provocada pela sublimação dos acordes do Grupo Novo Rock e da Guarda Nacional Republicana. Rui Reininho dança e canta displicentemente a falsidade de um verdadeiro fingidor, que é vítima da sua própria beleza: “Não interessa o que tudo mais existe”. O canto teatral: “Não aguento mais você longe de mim”. “Quero que você me aqueça neste inverno, e que tudo mais vá pro inferno”. “OOOO”. Ovação. Rui Reininho sublinha: “Hipnótico… Mas vai correr tudo bem! Obrigado Cantanhede e arredores!”. A décima sétima canção, “Sub 16”, tem uma métrica dominada pela potência rítmica dos GNR, que delineiam uma melodia Pop inevitavelmente cativante; as cordas da Guarda Nacional Republicana contagiam-na com um reverberar agudíssimo. A voz sublinha: “e sai e puxa”, o aumento da altura e da escala espelham a liberdade ansiada por parte dos adolescentes em relação ao jugo paternal, “até ao sol”. “E com os Djs já falta pouco para fazer 96”. As guitarras introduzem uma raiva contida, sobrepondo-se à turbulência Pop impondo um apontamento Rock. “Nuvem de cabelo em pó”. “E o rádio berra”, a banda Guarda Nacional Republicana réplica através de uma massa em que predominam os gritos de um adolescente a mudar a voz. “´Estou farto e farto de estar só”. A eloquência da Pop ganha contornos épicos, “e aos dezasseis só de uma vez vestes como os Djs”; a guitarra de Tóli César Machado e Andy Torrence elevam-na à condição incontornável de hino com uma bandeira repleta de acne. Jorge Romão e Tóli César Machado: “Papapapapa”. Pausa. A partir da qual, reviram “Sub 16” e a consubstanciam em pólvora molhada mas que queima a pele, “com dezasseis não se tem tempo para ler ´O Senhor dos Anéis`”. A banda da Guarda Nacional Republicana vem ao de cima ampliando uma dor oculta mas perseverante, incapaz de fazer parar a racionalidade do tempo, e sobre a métrica rock and pop, Andy Torrence desfere um solo agudo minimal. A décima oitava canção, “Dunas”, é inicialmente pejada por um andamento marcial imposto pela Guarda Nacional Republicana; a cadência da bateria de Jorge Oliveira e o baixo de Jorge Romão introduzem uma vertente Pop. As cordas da Guarda Nacional Republicana ondulam impondo uma temperatura quente e a voz de Rui Reininho descreve: “As dunas são como divãs, biombos indiscretos de alcatrão sujo”. A melodia está carregada de uma memória que em tempos foi vivenciada e consequente passa para o domínio da realidade: “pensamentos lavados”; “bebemos dos lábios refrescos gelados”. “Nas dunas”. O acordeão de Tóli César Machado retempera-a com uma dose de fulgor tórrido e a realidade ganha profundida de ficção: “Em câmara lenta como na TV”. A canção encontra no acordeão de Tóli César Machado a máquina que rasga o céu com feixes de luz. Rui Reininho: “Patichiwarrioooo”. “Patichiwarrioooo”. “Patichiwarrioooo”. A banda da Guarda Nacional Republicana ressurge e tenta equiparar-se ao fulgor de Tóli César Machado, o público responde a Rui Reininho: “Patichiwarrioooo”. Rui Reininho esclarece-os: “Em nome dos cento e vinte e tal membros da banda da GNR, força!”. Público: “Patichiwarrioooo”. A décima nona canção e a única do encore,“+ Vale Nunca”, tem um andamento allegro, polvilhado pelo teclado infantil de Miguel Amorim e sublinhado pela banda da Guarda Nacional Republicana. Rui Reininho olha para o berço da humanidade: “Há um bicho novo prá limpar, logo, logo ao nascer um grito mudo que tentam calar”. As orquestrações da Guarda Nacional Republicana com o reforço Pop do Grupo Novo Rock, reforçam a clarividência do refrão: “Mais vale nunca depender”. “Mais vale nunca mais crescer”. Há uma sobreposição por parte da Guarda Nacional Republicana, inculcando-a com um crescendo com uma ordem suprema: “Mais vale nada”. Sobre o qual a guitarra de Andy Torrence se ensimesma, a bateria de Jorge Oliveira ganha protagonismo e a partir da qual o baixo de Jorge Romão sola superiormente. Pausa. “Vais ouvir e ver, mais vale nunca, nunca mais crescer”. “Ficas a aprender”. “Mais vale nada, mais vale nunca mais crescer”. O fim é composto por uma união em que a massa é composta por uma textura aguda, que consentaneamente se aproxima de uma inalcançável presença do ser. “Agora é a doer”. Ovação. O Grupo Novo Rock aplaude a Guarda Nacional Republicana, e por fim Jorge Romão, Tóli César Machado, Rui Reininho e seus pares abraçam alegremente o maestro da Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana. Ovação.

GNR+ GNR, 29 de Julho, Expofacic @ Cantanhede

Em memoria de Francisco Campos.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A Selva

A cenografia corresponde a braços de madeira que irrompem da terra e as mãos acenam às estrelas escondidas atrás de nuvens negras. Há postos de vigia onde se vendem cervejas em canecas de metal, as pessoas movimentam-se em direção ao palco, há quem tenha t-shirts com a inscrição, com o mesmo design das capas de discos dos Metallica, “Kamalhão”. The Walks estão a debitar no palco do Kamalhão o seu mood black, prejudicados por um som que não consegue revelar a consistência estilística do estágio de desenvolvimento em que se encontram. Não ignoram o escasso público que se encontra a observá-los, nem tal facto fá-los diminuir a concentração, ou, tão pouco a consistente entrega. Após se terem despedido, soa o reggae de um palco minúsculo onde atuam dois músicos: bateria + guitarra, que progressivamente alteram a sua palete para o blues com variações rock. No palco principal encontra-se um homem, sentado numa cadeira com uma guitarra ao colo e na perna esquerda uma pandeireta, a sua voz é rouca. As suas canções são um contínuo de distorção na vertente decadente do Rock and Roll, mas carecem de definição, e consequentemente demonstram que Bond tocou sempre a mesma canção, algo que instaura na consciência o tédio. Mesmo o conflito do músico com o microfone, e o seu convite indiscreto: “If you have cocaine or speeds…”, não são suficientes para retirar Bond de uma mediocridade com efeitos secundários mais graves do que a cocaína. Do palco minúsculo soa algo que me é imperceptível definir, eventualmente o canto de uma serpente a verter pelo ar o seu veneno, e do céu pinga uma morrinha tristonha como se fossem as lágrimas de um nado morto. Os ramos das árvores são consistentes cabelos de madeira folheados a cinzento pálido, há sombras à minha volta que correm indiscriminadamente mas nunca chocam, antes trespassam-se continuamente. A bateria e as guitarras elétricas sujas ecoam das colunas no palco do Kamalhão; é o chamamento dos The Dirty Coal Train que se apresentam através de um conjunto de canções alicerçadas no garage, algumas das quais são memoráveis, muito por culpa da lasciva relação entre as guitarras. Quando surge o convidado Pedro Calhau, no saxofone, a dinâmica da canção ganha um inesperado sentido de urgência, de tal forma é sublime. A contagem decrescente para a subida ao palco principal dos Parkinsons concentra toda a atenção dos presentes, mesmo que esteja a passar um jovem a tocar uma flauta mágica seguido por um regimento de anões carecas mas barbudos que hipnotizados cantam: “Kama Kama Kamalhão”. Os Parkinsons incendeiam as luzes do palco, através da similar detonação da saudosa bomba nuclear na ilha de Bikini. Algo que cega o olhar e liberta a audição, para que seja conduzida num mapa-mundo constituído por artérias em que o sangue escorre incapaz de coagular numa caverna de abrigo. Se por vezes os Parkinsons são primários é somente porque aplicam o traço do grotesco; e se são viscerais, isso é culpa de Victor Torpedo, que tem uma técnica de génio, que faz dos riffs solos, e dos solos riffs, e este remoinho injecta ao ouvinte um desejo supremo de saltar para a vertigem. A movimentação em palco de Afonso Pinto é a emulação de um homem que nunca encontrou na sociedade a fronteira onde se alojar e nesse reduto ser feliz. A sua raiva é contínua e perturbante, e se não desperta as consciências é porque a alienação esta contaminada por horas de exposição aos raios dos écrans televisivos. Sobem ao palco diversas pessoas, que dançam ao lado de Pedro Chau que se mantém inalterado, e dá continuidade à métrica rítmica precisa e destrutiva de tão demolidora de Kalo, ambos são o motor de uma locomotiva com destino ao fundo de um túnel infinito. A exploração final instaura na multidão a loucura, que se projectam numa besta com quatro cabeças, que é ávida por destruir o universo que os circunda, e têm a anarquia como única Constituição. Victor Torpedo despede-se poeticamente: “Kamalhão sempre”.

Kamalhão Rock Fest, 5 de Maio, Mata do Camalhão @ São Silvestre