terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Hurt

Entro em palco acompanhado por mais quatro elementos, os seus braços são alimentados à electricidade, sobre as nossas cabeças temos candeeiros indústrias, com a marca americana: Nine Inch Nails. Acelaramos para o tema que escrevi quando estava à beira da falência técnica dos meus sentidos, e a razão apenas me feria em cada raciocínio:"Mr. Self Destruct." A distorção acende e apaga as luzes ininterruptas que queimam o olhar dos portugueses, aceito as palmas mas tenho medo de “fuck up our first concert”. A minha voz escarra contra os "March of Pigs", que se clonam para alimentar o futuro. Já sofri por "Something I Can Never Have", mas nunca percebi o destino das minhas ansiedades que me rejeitavam para o colo dos americanos: "Help Me I Am In Hell, Hell!" Fui ignorado pelo sorriso dos meus pais, que julgavam que deram ao mundo um falhado que veste na alma os ossos da morte. Hoje sou o capataz desta fábrica de onde caem pingos do tecto e a guitarra se digladia com a maquinaria, o alarme dispara e bloqueia as luzes de palco: “Just pretend we have kick ass lights”, a multidão é rasgada pela revolta dos que instauram a anarquia e a dor nos seus congéneres. “You Know What You Are?”, mas ninguém responde à minha inquirição, ouvem-me para se libertarem da alienação que a sociedade lhes incute. Magoo-me em cada nota do piano e os versos são o testamento de uma nação que me baptizou de Trent Reznor: ”What have I become/ My sweetest friend/ Everyone I know goes away/In the end.”

Nine Inch Nails, Coliseu de Lisboa, 10 de Fevereiro

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

800 Escudos

Tem a cabeça destituída de cobertura, lentes densas fazem realçar os seus olhos e pontua o seu discurso com números: "a minha mulher ofereceu-me uma tesoura, que lhe custou oitocentos escudos, com ela cortei o alumínio que tinha dois centímetros de espessura.” Ângelo de Sousa é escultor e artista plástico,"eu desenhava e guardava, o que não gostava deitava fora…” E como sabe que não gosta de um trabalho? Questiona Ana Sousa Dias (“Por Outro Lado”), “isso sucede quando tenho nojo da minha obra” e “se desenhar 1000 é possível que 100 vão parar ao lixo!”, sublinha a sua voz enrouquecida, os gestos acompanham as frases de forma displicente. “Após o vinte e cinco de Abril tínhamos reuniões que duravam dias! Um falava, falava, depois era a vez de outro e eu aproveitava para desenhar, desenhar, aquilo era um sofrimento!” As obras que estiveram na Gulbenkian, foram quantos desenhos? 200? “Não, muito mais, muito mais.” E o facto de ter tido vinte na nota de curso, isso modificou a sua vida? “Nada.” Mas foram só quatro com nota máxima? “Não, foram mais. Mas essas notas foram dadas para fazer concorrência à Escola de Belas Artes de Lisboa, nada mais. A nós os quatro deu-nos jeito, formamos uma sociedade que durou quatro anos, era uma forma de atrair as pessoas.” E em Londres como foi a sua vida? “Mandavam-me desenhar uma modelo loura, branca, de olhos azuis e diziam-me: “carregue mais nas sombras! Carregue mais nas sombras!” Mas eu não via nada sombreado na mulher que era loura, desisti, também já era algo que eu fiz durante seis anos todas as manhãs no Porto.” E o que fez por lá? “Nada.” Mas não visitou nenhum museu? “Ah! Ia muito ao cinema com a minha mulher, ver ciclos de cinema francês nomeadamente da nouvelle vague. Fui aos museus estudar como é que os gajos chegaram a determinados resultados. Porque é isso que me interessa numa obra, perceber o processo e avaliar o resultado.” E não tem curiosidade em saber para onde vão as suas obras? “Não, nenhum. Ainda há pouco tempo arderam duas obras que tinha num atelier, e não tive pena nenhuma, elas foram à vida, acabou! No outro dia fui à casa de um coleccionador, ele convidou-me para subir para ver onde estavam umas telas, e eu recusei!” Mas não quer ver? “Não!” Mas porquê? “Essa parte já não me diz respeito, nem quero saber. E quer outro exemplo? Telefonou-me um cliente ao qual lhe havia caído um quadro ao chão e que se havia partido, eu perguntei-lhe: mas o senhor colocou o fio de nylon em vez do arame? "Sim." Então que quer que eu faça? Que perca duas semanas a concertá-lo? Ardeu! Acabou!"

Ângelo de Sousa em "Por Outro Lado"

sábado, 3 de fevereiro de 2007


1978

A oito de Abril de 1978 morreu Jacques Brel, um património inestimável para a humanidade. Na sua obra predominava a ironia decadente de um século que assistiu a guerra de estudantes e sindicatos contra o Estado. A origem belga e a família burguesa, retratou-as ao pormenor, o recorte dos amores extremos, bombons, «Les bigottes», «eu choro como eles mijam sobre as suas mulheres infiéis!», a sua interpretação de Don Quixote a subir à cruz da redenção em cada verso. Esteve quinze minutos a ser aplaudido de pé: Brel sobe ao palco d ` Olímpia, de robe, as luzes iluminam o rosto suado, a câmara aproxima-se dos seus olhos: «ça justifie, quinze ans d` amour!» Aplausos. Nunca mais voltou, dedicou-se a encarnar uma alma errante, que atracava de ilha em ilha, à demanda do heterónimo perfeito. Em palco era incansável, violento, misógino, a cuspir os versos fumarentos, visceral, incólume. As suas canções são gritadas em Paris, ele é a alma da geração do romantismo eloquente, não acreditamos na desigualdade! Jacques Brel é a voz dos megafones, os acordes graves dos carros revirados a arder que acompanham o compasso das botas dos estudantes: «les bourgois! Les Bourgois! Les bourgois!»