segunda-feira, 10 de outubro de 2016

D'este Viver Aqui Neste Papel Descripto— Cartas da Guerra

A noite cobre o meu corpo num fluxo lento que o enquadra numa perspectiva em que impera a solidão, o seu reflexo são olhos azul-turquesa e uma melena loura que pende até aos ombros, parece uma figura de romances de cavalaria ou simplesmente um marinheiro que tem como desejo secreto naufragar ao largo da Ilha dos Amores. No instante em que tento fixá-lo a sua silhueta esfuma-se instantaneamente e oiço uma marcha de botas sobre um asfalto que progressivamente se aproximam como se fossem mulheres e homens a se rebelarem contra a mortalidade, atrás de uma plateia surgem duas mulheres que pretendem resgatar uma bandeira branca com impressão a negro de um rosto de um dos piratas no Peter Pan. No palco do Teatrão apresentam-se Señoritas que seguram um adufe e marcam um ritmo festivo e rural mas de horta urbana entre o qual surgem sinos de arrebate, uma das quais chama-se Maria Antónia Mendes e é a sua voz que canta: “Gosto de viver despenteada”, a intensidade dos adufes mantém-se, “porque mais arranjada? Porque mais morena?”; “gosto de viver despenteada”; Sandra Baptista repete: “Gosto de viver despenteada”; ressurgem os passos da multidão como uma memória antiga; Maria Antónia Mendes: “Acelero e travo”, e perante o olhar de um nómada questiona-o: “Queres entrar?”. E no fim da primeira canção Maria Antónia Mendes dirige-se directamente ao público: “Boa noite. Sejam bem-vindos ao universo Señoritas. Bem-vindos ao Teatrão”. A seguinte denomina-se de “Acho que é Meu Dever não Gostar”, e encontra Sandra Baptista no baixo eléctrico e na guitarra eléctrica Maria Antónia Mendes, que domina mas é complementada pela primeira. Maria Antónia Mendes: “Acho que é meu dever não gostar, não gostar de armas”, mas há um paradoxo no seu discurso pacifista, “disparo em todas as direcções, disparo todas as munições”, e a guitarra sublinha estas descargas balísticas com o acentuar e acelerar dos acordes sublimando uma tensão quase angustiante; sobrevém o pulsar do baixo eléctrico de Sandra Baptista; “não gostar do que é feio”, e a guitarra eléctrica de Maria Antónia Mendes dispara, “disparo em todas as direcções”. As palmas eclodem e são educadamente recebidas pela Maria Antónia Mendes: “Obrigada”. A próxima canção tem o nome de baptismo: “7 Pragas”, com uma programação espaçada e o baixo eléctrico de Sandra Baptista propulsa sangue como um coração apaixonado, que instituem uma discreta mas acentuada dança para uma pista de mulheres diáfanas, que entoam palavra por palavra o percurso ditado por Maria Antónia Mendes: “Segunda-feira vou à missa. Terça-feira vou à bruxa, Quarta-feira seduzo o terapeuta, Quinta-feira vou à feira, Sexta-feira da feira volto”, e quando se sente deprimida é “ao fim de semana porque não fodes, enfio-me na cama”, este abandono é sinónimo de dor; o ritmo é mais curto como o golpe de uma ponte e mola mas não deixa de convidar a que os ouvintes dancem em volta de túmulos de néon: “Não sentiste a morte? Foi o dia da tua sorte”. Reintroduzem a métrica inicial sobre a qual canta Maria Antónia Mendes sedutoramente: “As sete pragas que me rogas, que me rogas vais pagá-las, serão a tua sorte, no dia da tua morte”, e o epitáfio é uma melodia assustadoramente infantil, “desaparece”. A quarta canção: “Solta-me”, tem uma percussão manuseada por Maria Antónia Mendes e o acordeão negro está preso ao tronco da Sandra Baptista que dedilha o seu teclado e botões enquanto abre o fole, “tenta andar nos meus sapatos”, que é tolhido por uma ruralidade com epicentro na noite, “veste-me”, e sobre o bater do bombo a voz de Maria Antónia Mendes descreve um homem que “abre o peito, respira de peito aberto”, e determina a esse intruso que a penetre, “rasga-me”, o acordeão responde-lhe num respirar trágico mas simultaneamente hipnótico, “tenta abraçar o meu mundo”, o dramatismo é sublinhado pelo acelerar do ritmo da canção, “solta-me”, e no imperativo dito alto: “Rasga-me”. A quinta canção “Confissão” tem uma programação distante e o acordeão é fúnebre e a voz da Maria Antónia Mendes reza e canta e associa-se a uma fé alicerçada na irreverência: “De nada me serve as contas que Deus fez”, não há qualquer arrependimento, “não é que me importe”; o acordeão perfila-se perante uma procissão das velas e marca-lhes o compasso, “quantas vidas ainda tenho? Consigo eu pagá-las em confissão?”, a melodia é uma força vigente que se impõe como um esteio de espinhos, “que me salve desta agonia um raio de luz”; “em desgraça desta vida dou-te a bênção tu dás-me a mão”, e o acordeão dengoso instaura uma perspectiva ampla sobre um circo fúnebre onde os palhaços são esqueletos andantes que divertem a morte, ecoa uma reza de uma multidão de mulheres: “Santa Maria reino de Deus….”. Na sexta canção “Confesso” a Maria Antónia Mendes dedilha uma guitarra eléctrica e a Sandra Baptista o baixo eléctrico e instituem uma textura pop-rock, a voz da primeira está presa à dor: “Confesso que pequei”; “quantas avé marias preciso? Quantas ave marias preciso?”, predomina a guitarra eléctrica que é de uma tonalidade aguda, “confesso que pequei, que gostei”, sobressai o rock, “quantas avé marias preciso?”, e o seu timbre aproxima-se do fado, “quantas ave marias preciso?”. A sétima canção, “Os Funerais são o Casamento dos Mortos”, é segundo Maria Antónia Mendes de cariz autobiográfico: “Foi precisamente aí que a gente se encontrou: num funeral.”. Domina o baixo eléctrico da Sandra Baptista que acompanha o canto magoado da Maria Antónia Mendes: “Os funerais são os casamentos dos mortos, casam sem par no cheiro das flores”, acompanhada pelo baixo e por uma programação que é um fluxo lento, “vão bonitos até, elas escondidas de grinaldas, eles viris nas barbas feitas”, sobre a calçada portuguesa húmida seguem, “jovens no meio das mães em procissão”, ouve-se uma trompete que poeticamente ilustra uma alma filha de duas mães. A seguinte canção “Medo”: “É dedicada a todos aqueles que sabem o que é um ataque de pânico”, mas assegura, “que isto é só a brincar”. O baixo eléctrico de Sandra Baptista é encorpado e destaca-se a voz da Maria Antónia Mendes: “O frio que te arrefece, os passos que te invadem, não te consegues mexer”, grita; “não toques no meu passado”, o baixo encurta a sua métrica e alinha pela pop, “medo? se não houvesse sombras, se não houvesse escuro”, “o teu medo?”, a guitarra de Maria Antónia Mendes rebela-se contra a harmonia do baixo eléctrico, “estás paralisado”, Sandra Baptista: “Estás paralisado”, e o silêncio contamina-as esotericamente mas Maria Antónia Mendes quebra-o: “Respira”. Palmas. Maria Antónia Mendes questiona o público: “Espero que não tenham tido um ataque de pânico”, e “na próxima música” realizou o “sonho” de executar “um solo, mas um solo só com uma nota”, e dedica-a a “quem sabe o que é uma coisa chamada ciática”. “Ciática” onde a guitarra eléctrica da Maria Antónia Mendes é pop-rock sustentada pelo baixo da Sandra Baptista; a primeira descreve um corpo: “Dorido estendido no caixão para aliviar a dor, vais mudando de posição”, a vertente pop-rock é dominante; “vou abrindo a nossa cama”; a narradora conta que “não sou muito inteligente, mas sou um bom recipiente”, e a sua guitarra eléctrica sola numa nota aguda de frente para a Sandra Baptista; “temos esta estranha forma de nos darmos sem nos darmos”; e repete: “Não sou muito inteligente, mas sou um bom recipiente”, e a cantora sola numa nota aguda mas desta feita ainda mais sustenida. A decima canção “À Mão Armada” tem uma programação synth sobre a qual se intromete o baixo eléctrico da Sandra Baptista e a Maria Antónia Mendes canta: “Antes de acordar sinto a raiva enferrujada”, o baixo e a programação remetem para um universo em que impera o negro sobre o negro, e o timbre da cantora é o de uma fadista perdida numa urbe em ruínas, “a minha vida cheia de regras antigas, numa gaveta fechada, nada tenho a perder”, como uma diva do bas-fond vive isolada, “não ouço, não quero saber”, mas há um rasgo de luz, “às vezes as palavras nada têm a perder”, “putas”, “nada têm a perder”. Maria Antónia Mendes apresenta a “próxima canção” que “não vão encontrar no disco [“Acho Que É Meu Dever Não Gostar”], quiçá, “foi feita há um mês” e “chama-se ´Sem Vida`”. Uma programação que se resume a umas banquetes no prato de choque e a Sandra Baptista introduz com o baixo notas repetitivas; Maria Antónia Mendes sofre com a rotina que a oprime: “Na hora de jantar”, em vez de se sentar, “arrumo a cama onde se vai deitar”; o ritmo implementado pela programação e pelo baixo de Sandra Baptista é curto e rápido; “ a agonia volta amanhã, a agonia volta amanhã”, a guitarra é como um desfibrador a tentar reacender um coração, “embrulho os lençóis”, a altura aumenta e é intensa, “a agonia volta amanhã”, e a cantora sola e irradia tensão, “cansada”, Sandra Baptista: “Cansada”; Maria Antónia Mendes: “Arqueada”, Sandra Baptista: “Arqueada”. Maria Antónia Mendes: “A agonia volta amanhã”. A décima segunda canção tem como premissa o jogo: “Então agora vamos brincar um bocadito?...”; a programação incide sobre um universo infantil onde domina o absurdo, o baixo de Sandra Baptista é másculo e adulto como se fosse um psicanalista a ouvir uma doente: “Eu sou a Alice, eu sou feliz, queres brincar comigo? Queres brincar com a Alice?”; a guitarra da Maria Antónia Mendes intromete-se no discurso do baixo eléctrico e impõe a sua ansiedade, “é para descer? Adorava saber, quantos metros cai até agora, quantos metros cai até agora”; Sandra Baptista sola e dá sobriedade à canção pop e Maria Antónia Mendes reintroduz a sua guitarra perturbante, “então venha mais gente”, a guitarra e o baixo eléctrico intercalam-se, a voz fica em suspenso: “Quantos metros cai até agora?”. Pausa. As Señoritas tocam os acordes da canção de trás para à frente mas a um ritmo acelerado, e a voz de Maria Antónia Mendes é aguda e angustiante: “Alice”, e grita: “IIIIII”, e a loucura abandona lentamente a Alice: “Cai devagar”, “no teu relógio tens horas a dar?”. Maria Antónia Mendes abandona a sua personagem e lamenta o seguinte: “Coimbra nós temos este problema convosco: O tempo passa muito depressa”, e, “vamos passar à nossa última canção”: “Nova” e “se conhecem esta música podem cantar connosco”. Tem como principio uma programação dengosa que é traduzida pelo acordeão da Sandra Baptista para um universo circense, “lutamos pela vida, lutamos contra o medo”, e o seu balançar de navio inebriado convida à dança, “viver bem, sempre nova”, mas, “com os pés para a cova”; a Sandra Baptista faz abrir e fechar o fole do acordeão resgatando arlequins e ilusionistas, Maria Antónia Mendes dobra o braço no ar como se estivesse a afrontar essas figuras que são fruto da ficção, “faço o que penso com amor”, e o discurso é politizado: “Quem não me segue que fique com a dor”, o acordeão ilustra um dobrar e desdobrar de ondas sob uma lua de fancaria, “meu amor traidor”. A sala eclode em palmas e as Señoritas encontram-se em pé a acompanhar a multidão e estão indecisas: “Querem um encore?”. A canção denomina-se de “Triste em Mim”, onde o baixo eléctrico da Sandra Baptista é uma sombra que vibra ao ritmo das notas negras, e a Maria Antónia Mendes tem uma voz de mulher num solilóquio enlutado: “Saíram de mim, triste em mim”, o baixo eléctrico acompanha-a por entre as ruas do Alto do São João, “em que os gritos dos velhos chegaram a mim”; e “em que os cães se calaram e o tempo parou”, ouve-se o tempo imposto por um metrónomo num fluxo sincopado; “não valho mais que uma formiga num carreiro”, há uma interferência por parte do baixo eléctrico a impor o distanciamento ao ouvinte; em spoken word Maria Antónia Mendes sublinha: “O ataque feroz de quando em vez”; “e o silêncio gritou (outra vez)”,e o baixo eléctrico de Sandra Baptista propulsiona as notas do refrão: “Algumas vozes podem parar o mundo, a bala estourou”. A plateia encontra-se de pé a aplaudir as Señoritas; Maria Antónia Mendes é peremptória: “Muito obrigado! Agora sim para acabar”, vão tocar uma canção de “uma banda que os mais antigos se devem lembrar”; “de uma banda chamada Sitiados”. “Amanhã” é sujeita a uma revisão por parte de um baixo eléctrico e de uma guitarra que exacerbam os acordes festivos, “um beijo a quem me faça sempre voltar”; e se fosse amanhã “que alguém morre nos braços do mar, alguém morre sem acreditar”, e o baixo acompanha o canto alegre mas de um anarca: “O Deus que me assiste já morreu”; e o baixo e a guitarra alternam-se num frenético e dilacerante de planos e contra-planos, domina o grande plano sobre um rosto de olhos azul-turquesa e cabelos louros a pender sobre os ombros que sorri timidamente e que canta: “É a esperança que resiste amanhã”, e nesse dia “ergo uma igreja a um Deus que me faça dançar”. “Alguém morre nos braços do mar, alguém morre sem acreditar”. “A esperança que resiste amanhã”. “Amanhã”. “Amanhã”. “Amanhã”.

Señoritas, Tour 2016, 8 de Outubro, Teatrão









quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Ensaios Sobre Literatura

As sombras instalam-se semanalmente como se fossem velhas amigas daquelas que usam dentes postiços e perucas de palhaço, que nos reflexos dos cromados que emolduram um espelho se revêem jovens e belas. Haverá arte mais tonta do que ver uma imagem que não existe, que é produto da concepção produzida pelo cérebro, mesmo que nesse reflexo surja o “eu” que é redutor pois corresponde a duas vogais a acasalarem. Inevitavelmente a metáfora é o único meio para me aproximar do “eu”, ao qual se exige que não cristalize como uma teia de aranha que cobre o meu rosto e o distorce numa máscara. No palco do Salão Brazil encontra-se o Bone Zone que poderia ser o nome de um ditador na Joy Division, mas somente corresponde a um homem de meia-idade magro, veste um fato preto e uma bota branca com uma pandeireta e a outra que é preta toca nos pedais; está sentado com uma guitarra eléctrica ao colo que debita blues e por vezes mescla-os com o rock, mas a repetição de estruturas estereotipadas transformam-no num músico desfasado da contemporaneidade Pop; as canções que roçam a criatividade são as que têm uma guitarra em loop e a de Bone Zone em tempo real. Quando este parte uma corda da guitarra; Victor Torpedo acorre e empresta-lhe uma outra e com a de Bone Zone senta-se no degrau que forma o palco e substitui-a, enquanto Bone Zone canta um amor frustrado, aparentemente está habituado a ser servido por um Rei. Bone Zone surpreende ao convidar o Pedro “Calhau at sax” e de seguida sublinha displicentemente: “It`s time for our sax player”; mas o espaço que dividem nunca é satisfatório porque Bone Zone requere-o maioritariamente e nessa medida não há comunhão. Bone Zone durante a sua actuação ainda se permitiu a meter a mão no interior das calças para tocar no pénis ou pontapear o seu copo para o público despojando o palco do seu carácter litúrgico. Quando acaba o seu tempo de palco não acede por duas vezes aos pedidos do Carlos Dias para que o abandone, tal comportamento apenas revela que este pobre e triste ditador deveria ser remetido para o esquecimento. No hall do salão avisto sob uma luz clara um Canibal de olhar ameaçador que parece vir desgastado do concerto do Bone Zone, não pede lume ou tão pouco se senta ao meu lado e desaparece para uma ficção do Conrad. As paredes brancas sofrem da falta de desenhos rupestres e de à superfície de canos enferrujados ou de tijolos que escondam ratos aficionados por um flautista infantil. Perante tamanha carência apenas me resta espreitar o concerto dos Alien Church que têm a Kart Morg na bateria de vestido de veludo preto onde atracam os seus cabelos de espigas selvagens. Na primeira canção citam o rock progressivo mas manchado pelo noise e a voz do Mr. Atkins é um eco processado em que não se entende o que canta, salienta-se como um elemento perturbantemente kitsch. A segunda canção é tão curta e desorientada que não dá tempo para ser devidamente avaliada. A terceira apresenta um twist rock, “twist”, “Why?”, que se metamorfoseia num ska tóxico destinado a consumidores de MD. A quarta tem umas maracas providenciadas pelo Mr. Atkins sobre o ritmo funk e a guitarra eléctrica de Jed Lic II deflagra em delay, e o cantor lê o Velho Testamento: “EIOOO”. A quinta é de uma infantilidade atroz qual nursery rhyme para adormecer ratos; gradualmente os Alien Church transformam-se numa banda de figuras fantasmagóricas. A sexta tem um ritmo dois por dois e a voz em eco do Mr. Atkins; e a gramática que implementam é sublinhada pelo sintetizador de igreja descrita no “Processo” de Franz Kafka. Mr. Atkins ergue os braços dançantes e no ombro direito consta um terço brilhante, levanta a Bíblia e evangeliza a plateia: “OOOO”. O microfone do Jed Lic II é tomado por Bone Zone que vocifera e esperneia como se estivesse a vir-se numa vulva de uma rã desenhada pelo Walt Disney. A bateria da Kat Mog e o baixo eléctrico de V. tentam acompanhar a cantoria do invasor que se faz passar por um diabrete puramente exibicionista. À sétima ressaltam cores negras providenciadas pelo baixo de V. que emoldura a canção numa janela gótica. A oitava parece desconjuntada ritmicamente algo que não a arruína, antes, devido à sua esquizofrenia parece uma tela pintada por Syd Barret que posteriormente a queimaria. A última canção dos Alien Church tem um órgão kitsch processado para num baptistério com painéis do Jeff Koons, o crescendo a que incorrem é uma unidade perturbantemente anti-esotérica que é sublinhada pelo theremin manuseado por Mr. Atkins. Posteriormente dada a violência da frequência rítmica associada ao baixo de V. visceralmente perpassam um campo de refugiados punks: “He he”; e sobre este tumulto o órgão essa voz cada vez mais perturbante sobressai e emancipa-se a guitarra do Jed Lic II num solo em delay no meio do público. “Wah”, a progressão é um elixir tóxico de tão negro e o theremin exaspera como um ataque de pânico, “oooo”, num fim épico. Acrescento ao silêncio mais silêncio num encaixe perfeito e acendo um cigarro para me abstrair da sua companhia, filho de tudo o é que efémero e que se revê num vazio intransponível e anseio pela anulação da consciência. Quando inspiro o fumo e o expiro formasse uma ondulação que desaparece consumida pelo oxigénio, aceno para uma figura distante que julgo conhecer de um quadro antigo mas não obtenho qualquer resposta, ela mistura-se com a multidão que espera pelos Subway Riders. Carlos Dias encarna em Carlos Subway e através da sua voz grave apresenta a família: “Victor Subway, Calhau Subway e Chau Subway e o nosso elemento mais bonito o Augusto Subway”, que se encontra atrás do seu sintetizador. A primeira canção “é quase parecida com a que temos tocado. As próximas têm arranjos novos que fizemos há bocadinho”. “Mono Stereo” tem como centro a repetição de uns acordes viciantes implementados pela guitarra eléctrica de Victor Subway, o saxofone de Calhau Subway insurge-se e a canção ganha uma dimensão dramática que é prolongada pela progressão. Carlos Subway: “Mono stereo”, e a tarola mecânica do Chau Subway infectam-na com violência. Calhau Subway: “Mono stereo”; transformam-na num contínuo repetitivo destrutivo com a ligação à terra da guitarra de Victor Subway, “mono stereo”, e o remoinho dissipa-se no auge da sua construção. Carlos Subway divaga: “Esta que se segue é uma história de amor falhada. Todas as nossas músicas são histórias de amor, esta música chama-se ´Adele`”; “´Adele` é em francês soa mais intelectual”, mas o teclado do Augusto Subway está bloqueado e dessa forma é incapaz de introduzir o respectivo loop. Perante este impasse Carlos Subway recorre a um dos “clássicos” dos Rolling Stones “(I Can't Get No) Satisfaction”: os acordes instaurados por Victor Torpedo não são decalcados aos do Keith Richards, introduz uma perspectiva mais negra e nessa medida ainda é mais visceral que o original; “I cant`t get no”; sobre estes surgem as maracas do Calhau Subway que são tão kitsch quanto latinas, e dança e canta como se fosse o Mick Jagger: “No, no, yeah yeah”; Carlos Subway: “Yeah, Yeah”. “And I try, and I try”; e a cadência mecânica do Chau Subway ganha preponderância e somente pára quando a tarola cai. A seguinte já fora anteriormente apresentada por Carlos Subway: “´Adele`”, que tem por base um loop do sintetizador sobre a qual se dispõem os restantes Subways, e há espaço para que a voz de Carlos Subway se exprima através de uma sedução incomensurável e que o seu corpo hirto sofra pela bela: “Adele, Adele, Adele”, como se estivesse sob o domínio de uma obsessão que o conduz para um falhado suicídio. A quarta canção tem por princípio uma sátira ao funk providenciada pelo teclado de Augusto Subway e pela tarola de Chau Subway: “Jamaica”; “hight so hight”, a oralidade de Carlos Subway remete para as vozes graves e intoxicadas dos jamaicanos que apregoam erva na praia às turistas em topless, e a guitarra de Victor Torpedo está tão pedrada que se ouve num eco distante. O porta-voz dos Subway Riders informa: “Não fazemos dedicatórias às canções”, mas abre uma excepção em relação a um amigo, “nosso que foi para outro sítio e vamos cantar esta música para ele”. Quem será? A quinta canção tem um ritmo pausado e uma melodia fúnebre que simultaneamente realçam um tépido e deslumbrante kitsch; Carlos Subway: “I love you so” e Calhau Subway responde-lhe: “Auaua”. Acentuam uma tristeza que de tão dolorosa que somente deve ter origem no absurdo Pop; Carlos Subway: “I love you so, I love you so”, determina ao público que se solidarize com a sua dor, “abraçai-vos”, “oooo I love you so”, Calhau Subway: “Ouuu”. Surge no palco Bone Zone que é discretamente corrido pelo Calhau Subway, que por este acto mereceria ser condecorado com a Ordem de Mérito. A sexta canção corresponde a três notas que como bolas de sabão eclodem no ar e Calhau Subway dá-lhes corpo de palavras: “Pupupu”; as três notas são tão kitsch quando desconcertantes: “Pupupu”, após a qual Carlos Subway esclarece que “estamos quase a acabar”. A sétima canção tem um beat repetitivo sobre o qual a guitarra eléctrica de Victor Subway introduz uns riffs semi-distorcidos que repetidamente promovem a escassez de felicidade e as maracas do Calhau Subway pigmentam-na de uma curiosa e delirante festividade kitsch; Victor Subway não pára de debitar o tal riff mas mais alto e mais rápido. Carlos Subway: “James Brown”, e Calhau Subway no saxofone sola numa efervescência discursiva desconstrutivista, “James Brown”, e Calhau Subway insere diversas vezes o microfone na boca do saxofone num felácio trans-rock. A última canção segundo Carlos Subway sofre do seguinte: “Não sabemos a letra”, e, “ainda por cima não é nossa”. O synth beat presume que se está perante o kraut e o rock advém da guitarra eléctrica de Victor Subway que é entrecorta com a de Calhau Subway arquitectando um núcleo inqualificável. Victor Subway abandona a guitarra e segura num microfone para o qual simultaneamente canta com o Carlos Subway: “Stereo”. Soam as maracas libertinas do Calhau Subway enquanto domina o synth beat do Augusto Subway e a anarquia encontra finalmente a sua definição na efemeridade conferida pela performance.

Subway Riders, Alien Church, Bone Zone, 4 de Outubro @ Salão Brazil