domingo, 26 de março de 2017

Elective Affinities

As luzes acesas do palco do GrETUA incidem sobre os Mendiratta -- composto por um baterista, uma guitarra eléctrica/teclista e um baixo eléctrico — evocam o virtuosismo dos músicos de rock and roll americanos da década setenta do século XX, que misturam com o psicadelismo; inquestionavelmente há lampejos de originalidade (mesmo que por vezes haja desequilíbrios nas dinâmicas), mas em outras canções evidenciam uma reverência perante os ditames da estética acima identificada.
O Vasco da Ganza é um Dj que transcreve sonoramente o seu apelido: sons suspensos e ou estáticos que aparentemente não progridem; quando impõe o beat surge m pendor desconstrutivista, perante este quadro sonoro somente há uma saída acender a tocha com erva da Estátua da Liberdade.
Os Subway Riders são um colectivo de psiconautas (bateria: Chau Subway; guitarra eléctrica: Victor Subway; teclado: Augusto Subway; saxofone/guitarra eléctrica/Voz/maracas/dança: Calhau Subway; Voz/performance: Carlos Subway), as suas canções são intervenções de um ecléctico iconoclasta: decompõe clássicos do rock and roll, vertem originais hipnóticos e ainda há um canto à capela do Carlos Subway que descarna o fado; o absurdo percorre transversalmente o decorrer do concerto e inevitavelmente são a antítese da lógica pós-moderna da canção pop para as massas.
José Pinhal Post-Mortem Experience (bateria+ teclado+ baixo e guitarra eléctrica+ trompete + voz) apresentam canções do malogrado José Pinhal com um equilíbrio pop deveras entusiasmante, à qual somam o kitsch que é uma memória predominantemente romântica e melancólica, roçam o soberbo.
O último a subir o palco é o cantor Claiana (com um cúmplice num Mac que introduz os beats assumidamente africanos) que exoticamente dá primazia às vogais (ampliando-as agudamente) e que anulam as consoantes; o seu domínio do espaço vazio transformam-no num performer improvável e nessa medida é de uma exuberância estonteante.

O João Faz Anos (MMXVII)—O Grandioso Baile, 24 de Março

segunda-feira, 20 de março de 2017

Tearing Down the Wall of Sound: The Rise and Fall of Phil Spector

Um som distorcido sai das colunas do GrETUA onde decorre a quarta edição do festival Aveiroshima2027, à minha volta estão diversas pessoas em pé que me impedem de identificar quem são os responsáveis pela música, provocam-me uma claustrofobia súbita e obrigam-me a sair para a sala adjacente, onde demando uma cerveja para me libertar da vertigem, respiro aliviado quando o álcool se introduz na minha corrente sanguínea; reentro na sala e o som parece-me mais alto-- para me precaver de um outro desequilíbrio sento-me na plateia— o responsável é François R. Gambuzat que tem uma voz grave e empunha uma guitarra eléctrica ao cirandar por entre o público, e Gianna Greco de cabelo encaracolado e de saia preta acima dos joelhos que toca um baixo eléctrico, debitam sobre programações rítmicas que remetem para um neo-industrial e ou pós-industrial que é dilacerante dada a sua repetição; após a qual François R. Gambuzat discursa sobre a vida árdua de um colectivo independente: não editam Cds, organizam os ensaios, estão juntos há quatro anos, marcam a digressão (irão tocar no Festival Músicas do Mundo em Sines); aproxima-se a Gianna Greco que sustém uma t-shirt preta com a inscrição a laranja “Putan Club”, apelidada de “pijama” e que é uma das suas fontes de rendimentos; este relatório entra em contradição com a música do dueto que é marginal e inquestionavelmente a antítese de uma locução economicista; “one more” e a canção é de uma violência inquietante-- a Gianna Greco sobe para a plateia-- por ser tumultuosa e o sampler exótico induz a um universo marroquino perfumado por haxixe, à minha frente encontra-se a italiana que controla o meu joelho nos seus, fixo o seu olhar com sombras num rosto redondo e na testa pendem caracóis negros, a sua selvajaria é tão sedutora que me cativa e anula a minha timidez, “aua”, e toca o baixo eléctrico como se fosse um artigo fetiche, não o oiço e tento imiscuir-me nos seus pensamentos e por instantes comunicamos num lampejo de luz invisível.
Os segundos convidados a surgir na sala obscura são os Holocausto Canibal, um quinteto de rapazes de preto com cabeleiras compridas, apresentam duas guitarras super-distorcidas e muito altas que formam uma parede sonora composta por punhais, quanto à secção rítmica é de criticar o baterista (talvez a bateria não seja a que está habituado), o canto do R.S é um gutural que impossibilita descodificar a língua que usa; no intervalo de um dos temas o frontman informa que: “Os Holocausto Canibal fazem vinte anos”; durante outra canção alguns fãs praticam mosh e os seus ossos embatem sobre a madeira num eco cavernoso, destes há quem tenha uma t-shirt elucidativa da sua rebeldia: “Fuck Me Jesus”; R.S olha para a plateia que se encontra à sua frente e sublinha: “Nunca estivemos tão perto do público”, e debitam um trovão ensurdecedor; a aparente escassa mosh irrita-o: “Têm medo da mosh? Agora xingue-se!”.
Dos djs destaco-- foi impossível ver o Ogata Tetuso-- o Guvibosch que parte de uma base sonora que por norma é festiva sobre a qual e insere um ritmo synth como se fossem congas que induzem à dança, destituído de preconceitos morais ou de outra ordem…
Dragão Inkomoda introduz um ritmo minimal e improvisa diversos e lúdicos sons que sucessivamente ora se encaixam ou se sobrepõe, mas sempre com o cuidado de construir uma narrativa sonora deveras elegante que se demarca do clássico princípio-meio-fim, produzindo imagens que somadas formam a big picture.
Dead Pirates Society tem um modus operanti de um terrorista que remistura clássicos da pop/rock, algo que aparentemente poderia ser démodé é de uma eficácia tão subtil quanto inteligente, as canções ganham uma nova perspectiva e nessa medida o seu set é de uma mestria atroz.

Aveiroshima2027, 18 de Março, GrETUA

In loving memory of Chuck Berry


sábado, 18 de março de 2017

Closing Time

A entrada da Ute Lemper no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, é antecedida por três músicos que se dividem pelo piano, contra-baixo e bandoleon que são aplaudidos pelos presentes; a primeira canção é um original de Tom Waits que é um blues associado ao jazz; subsequentemente transcrevem canções do Philip Glass, Jaques Brel, um autor do século XII, Kurt Weill, uma composição da cantora alemã com letra do escritor brasileiro Paulo Coelho, uma outra com letra do escritor americano Charles Bukowski, Bertolt Brecht, Hans Leip e Norbert Schultze, Charles Dumont e Michel Vaucaire (entre outros), segundo diversos géneros musicais, o blues, o jazz, vaudeville, a chanson francaise, tango e a música clássica (no arranjo de uma canção), por vezes estes são apenas desenhados para que o interior da canção seja diversamente estruturada, outras é redundante ao se apropriam somente dos seus clichés; Ute Lemper por norma fala antes de cada uma destas (isto sobre os acordes do piano) para as enquadrar temporalmente, ou informar quem é o autor que irá cantar, ou fazer um conjunto de considerações políticas e ou pessoal, algo que é pedagogicamente correcto mas sua constante repetição é obviamente entediante; a sua voz, apesar dos tiques de cantora de jazz (o seu virtuosismo nunca é excessivo), tem o poder de transformar as palavras nas diversas línguas (francês, inglês, hebraico, alemão) em suas e nessa medida transmite ao espectador um universo que marcou o século XX; destaco “Ne Me Quitte Pas”em que há mais espaço entre os instrumentos e se no original graça uma dor incomensurável no CAE ressalva uma delicadeza desarmante; fisicamente é magra e esguia e quando dança por vezes raia o ridículo, noutras (na sua maioria) é elegante ao enquadrar cada uma das canções num determinado contexto, dai advém uma teatralidade que emoldura o espectáculo e lhe confere um cenário familiar; o público comporta-se como se fossem alunos a ouvir uma professora que respeitam não pelo medo que ela poderia emanar mas pela admiração que lhe têm, somente na recta final murmuraram ou aplaudiram ao ritmo do contrabaixo; a ovação final é demonstrativa que estão satisfeitos com o espectáculo “Songs From The Heart”, e é no “heart” que Ute Lemper deve morar …

“Songs From The Heart”, Ute Lemper, 16 de Março

quarta-feira, 8 de março de 2017

A Última Valsa

As Señoritas são Sandra Baptista e Maria Antónia Mendes que sobem ao palco (instalado sobre um jardim interior) do Centro Artes e Espectáculos da Figueira da Foz; a primeira canção caracteriza-as como se fossem um grupo de música popular; mas a seguinte anula esse universo e coloca-as na urbe, Maria Antónia Mentes: “Acho que é meu dever não gostar”, tudo o que condiciona ou controla as pessoas; posteriormente evocam a dança mas com lampejos retro como se fundissem o presente e o passado em três acordes; “Solta-me” (“foi a nossa primeira composição”) perspectiva sobre a dor a que um sacrifício induz; seguida por uma marcha fúnebre em que a melodia resgata o universo circense numa paródia negra; o desafogo surge com uma canção pop/rock em que os versos se rebelam contra os altares com santos e virgens ditadores; quanto a: “Os Funerais São os Casamentos dos Mortos” , o fado é evocado mas segundo premissas que tentam quebrar com a ortodoxia a que está consignado; a seguinte discorre sobre a probabilidade de um ataque de pânico, e a matiz sonora que implementam implementa o paradoxo e retrata um estado de consciência alterado; reacendem o ceptro pop/rock em que há um solo de guitarra eléctrica de uma nota como se tal fosse algo de uma destreza impar da responsabilidade da Maria Antónia Mendes; “Ciática” de uma tensão pop/rock associada a uma voz sofredora: “Não sou muito inteligente, mas sou um bom recipiente”; seguidamente desenham uma pop elegante através da programação que a contextualiza num universo opresso; quanto a, “´Em Vida` não se encontra no Cd”-- de estreia das Señoritas: “Acho Que É Meu Dever Não Gostar”-- misturam a ruralidade com a urbe e é nestes pontos antagónicos que se revela a sua beleza; “Alice” é um retrato de uma mulher que julga que é uma menina e que tudo tem sentido se for construído segundo os seus desvairados desejos; “é a primeira vez que estamos na Figueira da Foz como Señoritas esperamos que não seja a última”; a penúltima canção tem uma festividade pop entra em paradoxo com a crítica do refrão: “Viver bem, sempre nova com os pés para a cova”; “Amanhã” dos Sitiados resgata a alegria e urgência do original, encerra o concerto com uma perspectiva sobre o passado mas a saudade é sobre o futuro que está nas mãos delicadas das Señoritas.

“Tour 2017”, Señoritas, 6 de Março