domingo, 5 de junho de 2016

K

As árvores são esqueletos com cem anos de solidão, prometem um silêncio que as contorna como um traço negro que as impedem de se exprimirem; somente o vento tem esse poder. Há um Bode no palco do festival Kamalhão em S. Silvestre, que executa um musical fantasmagórico e tétrico e medonho, as personagens que pululam são filhos do mal. O segundo convidado denomina-se “The Year; já alguém ouviu falar desta banda?”, é a questão pertinente de um dos músicos; têm uma forte vertente heavy, “tudo a saltar”, e anuncia “o nosso último single”, é muito metaleiro, “this place will turn into ashes”. “Vamos fazer poeira?”. Mas um problema técnico impede-os de prosseguir, e o cantor é assertivo e inteligente na comparação: “Aconteceu aos Korn [no Rock In Rio 2016]”; quando resolvem o empecilho; clama vitória: “Ganhamos aos Korn!”. Após o fim da actuação, há um coro de gralhas nas ramagens a cantarolar: “Kama, Kama, Kamalhão”. Ghost Hunt apresentam uma partitura em que dominam as espirais synth, que freneticamente ou lentamente arquitectam um universo profundamente abstracto, o nervo que os conecta com o coração é o baixo eléctrico. Numa das canções há uma voz humana que parece uma máquina de escrever a ditar para um escritor. Os últimos convidados da primeira noite na mata do Kamalhão são os D3O; um quadro em que predomina uma rugosidade Rock and Roll, alicerçada numa bateria monstruosa; acrescida de canções novas. O Fortuna é um narrador que divaga de ficção em ficção como um condutor embriagado com uma calibre 45 entre as pernas, rodam latas de cervejas no banco traseiro onde uiva um rafeiro, há solos épicos e a trip tem como destino um horizonte western Hollywood. Fortuna recoloca-nos na realidade: “Fomos ensaiar a Santa Combadão, mandar uma estátua abaixo”, de quem será?

Há uma neblina que está suspensa como um manto diáfano, que se transforma num frio incomodativo, mas não verga qualquer ramo ou caem folhas, a floresta é um caminho em que há sempre uma testemunha. O cantor dos Low Torque é educado: “É um prazer voltar aqui com outros…Não interessa o palco está maior!”. Apresenta uma canção como “uma baladinha”, mas na prática revela-se heavy. A seguinte “é mesmo boa para fazer amor à lareira”. O cantor/performer é exímio quando muda o timbre de verso para verso, como se fosse o diálogo entre duas personagens antagónicas, e quando se movimenta em palco este parece que reduz de tamanho. Desenterra um mito latino-americano: “Quem é que aqui tem medo do Chupa Cabras?”. A próxima é adjectivada desta forma: “Vamos tocar uma modinha; é aquela”, heavy modinha, que engrandece da prestação do performer. Os Tales of the Unspoken introducem marchas fúnebres; mas tudo se perde com as ordens militares do cantor: “Como é que é caralho! Tá-se bem?”. “É do caralho estar neste palco”. Uma das canções heavy “é do nosso novo álbum ´CO2`”, e o anúncio publicitário: “Aproveitem para beber um copo!”. Já suados, o vocalista confessa “que andam há oito anos na estrada”. “Esta música é para abanar a cabeça”, mas é dedicada especialmente “para quem deixou crescer o cabelo”. Os PSICOTRONICS introduzem o seu groove promiscuamente kitsch que encontra no triângulo encabeçado por Marquis de Cha Cha uma expressão oral dandy, coberto por um encanto de Poirrot. Quando as guitarras se cruzam o groove ganha contornos kraut rock, isto sobre uma moldura Pop; quando o baixo eléctrico do Calhau se intromete na profusão de riffs de Victor Torpedo, a beleza épica consuma-se. Bizarra Locomotiva é composta por três humanóides, um dos quais tem um body negro e uma máscara de elefante bebé, os cabelos artificiais pendem como se fossem um leque envenenado. A que se soma uma figura entroncada com uma t-shirt branca com a estampagem “Slayer”. Inscrevem uma descarga de distorção processada, que dada a sua constante enunciação corresponde a uma cenografia hipnótica para um teatro catóptrico. As personagens decorrem do Hiper-realismo de Adolf Wissel, ainda com ecos da Neu Sachilichkeit. O Rui Sidónio desloca-se por entre os seus colegas concentrando as atenções de um público em transe, por vezes meneia-se como se fosse um Minotauro, mas sem lhe ser necessário transmutar-se nesse ser antropomórfico. A sua voz é um elemento distorcido que discorre pelo verso: “tu e eu pele na pele”, dança abanando o tronco suado. As adolescentes movimentam-se como se não habitassem o seu corpo e os jovens procuram instalar a anarquia através da mosh. A violência sónica é de tal forma envolvente que é impossível fugir-lhe, “alheio às revoluções”; “que se alimentam” de nós. O performer abandona o palco e com a extensão do cabo do microfone contorna o público que entra em êxtase por se verem libertos do medo de ser português. Quando o sobe e fica estático, gestualiza e personifica o mal, canta/sussurra enigmaticamente para o microfone. Rui Sidónio não comunica directamente com o público, coloca o microfone sobre o coração, para não revelar os contornos íntimos do seu timbre falado. “Sudário de Escamas” conta com a presença de um monge beneditino encapuzado que ergue a Bíblia para o público, e Rui Sidónio canta como se fosse um terrorista místico e dessa forma se revelasse contra Deus; os Bizarra Locomotiva estilhaçam Este espelho.

Kamalhão Rock Fest, 3 e 4 de Junho, S. Silvestre @ Coimbra