terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Hamlet

Um anjo urina água benta para o interior de uma concha de pedra rodeada por uma vegetação luxuriante onde estou proibido de consumir os frutos das árvores que simbolizam o bem e o mal caso contrário o Mestre expulsar-me-á do Jardim do Éden mas como sou vegetariano elas são-me uma tentação assim como para os macacos que as podem comer porque são seres irracionais mas se fossem humanos seriam inimputáveis e tento obter uma perspectiva sobre a minha condição de discípulo que se surpreende com o nascer do sol e com o chilrear poético dos passarinhos e o esvoaçar de joaninhas que são tão belas quanto delicadamente kitschs e as borboletas de asas salpicadas de vermelho alimentam-se do pólen de um girassol e empurro sorrateiramente uma porta falsa no tronco de uma árvore; o Salão Brazil apresenta os Parkinsons e os Moon Preachers que são um dueto composto por Rafael Santos (voz/Guitarra eléctrica) e João Paulo Ferreira (bateria) e as suas canções têm uma matriz predominantemente rock pautadas por inúmeras dinâmicas que se subdividem em outras que têm o propósito de se compor e decompor e resultam num psicadelismo tão violento quanto intrusivo e que é perturbador por arrebatar a consciência mas o único senão é que aumentam de tal forma a frequência da guitarra eléctrica (quando algumas das canções se aproximam do epílogo) que anula o psicadelismo redundando em algo excessivo que funciona como um anti-climax porém a nota não deixa de ser a da excelência; e dou um passo e desço umas escadas em caracol que parecem intermináveis e acedo a uma sala com uma árvore de Natal a piscar com prendas nos seus pés de metal e o silêncio denuncia que estou sozinho e espreito por uma janela e há um lusco-fusco que não consigo identificar se pertence ao raiar de um dia se é que está a cair a noite e acendem-se velas que parecem estrelas ou mais parecem pirilampos que cirandam como se fossem anjos e persigo um corredor que tem um espelho no qual se reflecte o meu corpo vestido de negro a tentar avançar no espaço sem que tal verdadeiramente ocorra e surge uma multidão que parece intransponível que contorno lentamente e os seus rostos têm os olhos fechados como se estivessem a meditar sobre o futuro que está a chegar e sob os meus pés crescem focos de luz que me transformam num ser com uma sombra gigantesca que em cada passo se transcende num poder incomensurável e quando se apagam são substituídas por raios de sol que me lampejam de uma excentricidade luminosa que extravaso num clímax; os Parkinsons enfrentam a sala lotada e é Pedro Chau (baixo eléctrico) que discursa: “É uma data muito especial principalmente por causa de uma pessoa que nós amamos e que já não está connosco que é o Bruno [Bruno Simões (conimbricense) que fundou os Tu Metes Nojo assim como os Sean Riley & The Slowriders e que desapareceu em Lisboa o ano passado]” eclodem as palmas “amor amor amo e vamos dar um concerto dedicado a ele” e há um impasse e ouvem-se uns acordes da guitarra eléctrica do Victor Torpedo que ordena “o pessoal dos Ossos [denominação de um grupo de amigos e familiares que se reúnem num jantar para celebrar o Natal e do qual fazia parte o Bruno Simões] tem que subir ao palco para tirar uma fotografia” sobem diversas pessoas duas das quais com uma tarja branca com uma inscrição pirata e é com eles no palco que iniciam “Primitive” e que está cada vez mais lotado de figuras saltitantes em êxtase a cantar o refrão “oh baby is a long way to nowhere” e a seguinte “Angel In The Dark” é de uma selvajaria punk que é um dos elementos centrais da movimentação em palco do Alzheimer (voz) e do Victor Torpedo secundados na bateria pelo incansável Ricardo Brito e há “Streets Of London” durante a qual Alzheimer é a representação de uma pureza demente e “Nothing To Lose” é punk mas pejado de acordes kitschs provenientes do órgão do João “Jorri” Silva que gradualmente incorre num psicadelismo perturbador “where can my baby be?” e a “Gril From Another World” é de um canibalismo punk alucinante e é a vez do Victor Torpedo dedicar “Back To Life” ao “Bruno [Simões] e ao Zé Pedro [membro fundador dos Xutos & Pontapés que recentemente faleceu]” e o punk é contaminado pelo órgão do João “Jorri” Silva elevando-o à condição do psicadelismo que inspira uma satisfação sensorial e o poder sónico dos Parkinsons é de tal ordem indomável em “So Lonely” que as pessoas em frente do palco parece que entram num estado hipnótico que as faz vivenciar um espaço em que domina a catarse que se repercute na multidão e a anarquia instala-se e gradualmente se esvai e é Pedro Chau que encerra o concerto com uma nota distorcida e repetitiva como se estivesse a comunicar com o Bruno Simões; e observo um auto-retrato em que o meu rosto se encontra distorcido como se estivesse a vivenciar a mais dura das agonias sobre um fundo laranja que faz sobressair a minha amargura e sossego o meu coração dizendo-lhe que aquele não sou “eu” aquele é “outro” e obtenho a resposta com um desacelerar do seu ritmo e respiro fundo como se tivesse sobrevivido a uma catástrofe e num quarto num maple encontra-se sentado um homem de cabelo grisalho de pijama velho e sujo que fuma um cigarro e sussurro-lhe ao ouvido algo para o fazer abandonar a letargia mas ele somente sorri e ergue os ombros demitindo-se da responsabilidade por estar sozinho mas mesmo assim se pudesse seria seu filho somente para o fazer feliz numa noite de Natal como a de hoje e ausento-me para um outro compartimento de paredes de vidro com luzes estáticas que se multiplicam infinitamente onde me projecto e me divido num universo paralelo.

The Parkinsons + Moon Preachers, 24 de Dezembro, Salão Brazil, Coimbra.

P.S- A ceia de Natal decorreu no ODD ao som dos Vaginas Convulsivas que com o poeta Gigas agraciaram os presentes.
P.S- Feliz Natal.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

The Sunday Gentleman

Só um solitário ostenta uma rosa cor-de-rosa que perdeu alguma das suas pétalas ela representa-te no meu coração que bate mal de manhã à noite e mesmo que eu queira equilibrar-me sobre uma corda que bamboleia ao vento caio sobre um banco de areia e espero que a maré suba e me cubra com um manto azul que satisfaz a minha alma que se liberta com a maré e se sou mar sou escravo dos caprichos da lua mas se sou homem sou fonte de felicidade que irradio em cada palavra que partilho com uma figura ondulante e ao tentar alcança-la distancia-se cada vez mais como sucede quando me tento aproximar do pôr-do-sol e a noite cobre a minha casa em ruínas e oiço as portas a baterem à força do vento frio e sinto-me um sem abrigo na Avenida da Liberdade ergo um braço para ter a certeza se ainda existo ou se sou somente uma ideia brilhante na tua memória ou será na vossa imaginação que é um labirinto onde se encontra misturado o presente e o passado como uma fotografia de alguém que já morreu e não há uma montanha onde se possa fazer uma fogueira que arda até ao dia nascer como uma tocha ou farol que comunica com as almas errantes e acrescento uma jogada no tabuleiro xadrez as brancas são a vida as pretas portas com destinos incertos e dispo a camisa à procura de um cabide onde me possa pendurar e lamento que o armário esteja carcomido por bichos que se intrometem nos meus sonhos impedindo-me de sonhar consigo contigo com alguém que desconheço o paradeiro e valorizo uma paisagem onde há uns sobreiros iluminados por um Verão intenso que exala um odor a terra seca; o backstage do Teatrão tem sofás floridos e máscaras a pontuar uma parede e um piano vertical que é tocado pelo Nicotine a passear por canções pop da década de setenta/oitenta do século XX que nos faz rir e o Victor Torpedo discorre sobre o baixista dos Cavemen “esse cabrão toca tudo” e que “até participou num reality show e ele era uma das figuras mais populares, e quando ele saiu com uma gaja para jantar?” ri e rimos e lembra-se do Zé Pedro dos Xutos & Pontapés “essa morte tocou-me” e ficamos suspensos num silêncio consternado “era um porreiraço (dixit)!” e “cheguei a tocar com ele” e di-lo com uma humildade desarmante e somos informados que estarão à espera dos Jack Shits vinte pessoas algo manifestamente pouco para Coimbra não vos parece? Os Jack Shits correspondem a Nicotine (bateria) o Samuel Silva (guitarra eléctrica) e o Diogo Augusto (guitarra eléctrica/Harmónica/Voz) e a primeira canção "I Don´t Wanna Be Real" é predominantemente garage com laivos de um rock visceral que contamina “Lucy Pussy” com um acréscimo trash já “Sweet Billy Blues” destaca-se pela sua estrutura que inicialmente é rock de seguida garage e ainda blues com a harmónica do Diogo Augusto a planar sobre a massa semi-distorcida e a sua voz é de um Amish que se rebela contra a sua comunidade e “Strong” é um estilhaço garage com solos épicos do Samuel Silva e “I `m Just a Fool” é um capítulo acelerado e que se esvai através de uma agressividade incontida e o cantor apresenta-se “eu sou o Jack” e “ele é o Jack” e ele “é o Jack” e “nós somos os Jack Shits” e “Sex Beat” dos Gun Club é revista numa perspectiva trash e “Gloria” do Van Morrison é transformada numa trip catártica; e escaldam-me os pés e corro para a praia e a areia também arde e saltito desesperadamente sem encontrar a margem e o amanhã é para ti história e para mim é um sentimento que alimento e que me alimenta e me liberta e aprisiona e posso esperar pela manhã e pelo amanhã porque conheço um corpo que está desesperado por um raio de um radar que arrebate o meu coração que agora bate assim como assim ou talvez assim ou pouco importa ou mais ou menos assim e lentamente as pessoas passam à minha frente como se fossem figuras urbanas onde consomem os manequins e paralisam carros blindados em túneis de néon com louras de cabelos eléctricos penduradas em gruas vizinhas de arranha-céus e querias dançar e eu pedi-te para dançar e o paraíso é um passo doble ou uma poça de óleo e como te sentes quando te rodeiam as lagartas falantes e te sentes sozinha e se subirmos esta planície será Domingo e depois talvez um dia qualquer em que as amoreiras estejam em flor como o meu solitário e oiço dois homens a rirem-se de mim e apontam as suas armas contra a minha cabeça e são tolhidos por uma vertigem que os condensa em pedras de fancaria e colo mais uma fotografia tua na parede do meu quarto escuro para que um arqueólogo te procure para te informar que vivi para ti.

The Jack Shits, 20 de Dezembro, Teatrão, Coimbra.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Landscape into Art

Desloca-se lentamente para a janela e corre as cortinas amarelas e recosta-se e observa a paisagem campestre com pegas rabudas sobre galhos de árvores que estão a arrebentar as folhas e que conversam sobre o estado do tempo e lamentam que a terra esteja seca algo que lhes dificulta a procura de insectos e ela senta-se na cadeira de palhinha e acende um cigarro e o fumo sai da sua boca de lábios pintados de preto em círculos que se desarticulam com a brisa quente que emana do exterior e abstrai-se do quadro e tenta recuar no tempo quando ainda era adolescente e brincava comigo às escondidas e segredava-lhe que a amava mas ela ria num riso nervoso de quem tinha vergonha de me rejeitar e eu ficava preso a uma dor que me aprisionava e impedia-me de encontrar no seu abraço a vontade de me dar a sua mão que eu segurava e apertava como se lhe estivesse a pedir que ela me aceita-se nem que fosse por um segundo que para mim seria eterno mas largava-a e algo comprimia-se na minha garganta e os nervos secavam-me a boca e sentia uma miséria agravada quando se despedia com um sorriso de quem lhe agradava a minha amizade e nada mais e eu deslocava-me por entre ruas que pareciam descambar sobre mim e encostava-me a um marco do correio a desejar receber uma carta sua a desmentir o que escrevi e eu corresponder-lhe-ia com uma letra desenhada com os contornos de um inexcedível amor; na Casa das Caldeiras está a decorrer a festa de aniversário da cantora Ruby Ann que toma conta do microfone e apresenta os seus convidados “directamente da Alemanha os Marc & The Wild Ones” que correspondem a quatro músicos Marc Valentine (voz/Guitarra acústica-ritmo), Rene Rottmann (guitarra eléctrica-solo), Stefan Dürrbeck (bateria), Andy Hümmer (contra-baixo) mas este último não se encontra em palco pois segundo Marc Valentine “the original can`t make it” e em sua substituição está um português chamado Nuno Alexandre (um dos mais conceituados contrabaixistas dentro do circuito rockabilly e também jazz da Europa), e as canções têm uma estrutura em que a guitarra eléctrica do Rene Rottman secundariza a acústica do Marc Valentine e somente estes elementos conferem-lhes um estilo rockabilly adicionados a uma secção rítmica em que não se nota a falta do Andy Hümmer e a conclusão unívoca é que são de facto geniais na forma como transcrevem um imaginário rural americano mas em simultâneo o advento da tecnologia com a invenção da guitarra eléctrica e há um cânone que exploram de forma brilhante que é o do Elvis Presley seja na entoação aveludada com que canta Marc Valentine seja na indumentária que fez furor da década de cinquenta nos Estado Unidos da América do século XX e é esta elegância que os torna tão imprescindíveis porque prestam homenagem a um legado em que primava a rebeldia e em que os jovens estavam a descobrir o que era ser jovem numa sociedade segregada em que o sonho americano se cumpria para muitas famílias emigradas da Europa e o Marc Valentine declara “happy birthday Sue” e quando tem oportunidade dedica “I Love My Baby” original do Hayden Thompson “to Ruby Ann”, “I wish the best for my girlfriend” e que exacerba a vertente hillbilly do original que convida à dança “my friends all kown I don`t want nobody else”; e ela continua sentada imóvel e a paisagem tem umas nuvens suspensas que lhe parecem animais diversos que recordam os tempos que com a sua irmã discutiam o que pareciam cada uma delas e ignoravam o chamamento da mãe para irem lanchar e aproximo-me e acaricio-lhe o cabelo escuro como se estivesse secretamente a suavizar os seus pensamentos e ela sem tirar o olhar das nuvens aperta a minha perna magra e percorre-me uma felicidade incontrolável e beijo-a como se fossemos os jovens que se encontravam no recreio da escola mas descobria-a num banco sentada ao colo de um colega e eu fazia de conta que não existia e passava lentamente à sua frente e desaparecia para o interior do edifício e acedia à casa de banho onde vomitava o almoço da cantina e descarregava o autoclismo mas ainda boiavam alguns restos deglutidos pelo meu estômago e voltava a descarrega-lo para me ver livre das provas da minha fraqueza; e é a Ruby Ann que acede a cantar e com ela sobem ao palco um guitarrista e um baterista que se juntam ao Nuno Alexandre executam três canções a primeira é country billy e as restantes rockabilly com a sua voz a enunciar um timbre agudo que poderia ser de uma nativa da América com a paixão pela cultura dos Cadillacs cromados e pelos rodeos e pela paisagem agreste do deserto; e ao chegar a casa fechava-me no quarto onde deveria estudar matemática e as contas saiam todas erradas e eu desesperava e temia que iria ter negativa ao teste do dia seguinte e por vezes a música vinda do seu quarto vizinho levava-me a crer que o slow era o sinal de que estava a pensar em mim mas esta suposição era um mero escape à minha frustração e batia na parede para tentar obter uma resposta mas ela julgava que a música estava alta e desligava-a e o silêncio magoava-me tão profundamente que fazia bater o meu coração desordenadamente mas agora contrai-se tão harmoniosamente que parece que o que vivenciamos foi somente uma ficção escrita por mim e ela levanta-se e deita-se na cama como se fosse uma chaise lounge e olha para mim e eu olho para ela e encontro a adolescente que tanto amei e que me faz avançar em sua direcção… E quando regressa Marc Valentine com os seus dois comparsas aprofundam a vertente rockabilly em constantes e urgentes dinâmicas que emanciparam uma geração de americanos.

Marc & The Wild Ones (aniversário da Ruby Ann), 16 de Dezembro, Casa das Caldeiras, Coimbra.

sábado, 16 de dezembro de 2017

El Coronel No Tiene Quien Le Escriba

O caos é uma tempestade a que baptizaram de Maria que tem um rosto pálido como a face visível da lua que em tempos foi pisada pela primeira vez por um americano com um fato de astronauta e que exerce desde a criação do universo um poder estranho sobre a terra e que fez parte de imaginários tão diversos quanto os filmes de vampiros e as cantigas de amigo e os romances cor-de-rosa e a ilustrar livros sobre lobos famintos que uivam que uivavam que uivam e a madrugada lentamente desperta e conduzo um comercial que sobe uma montanha salpicada por tufos de neve que quando embatem no vidro suavemente são limpos pelo limpa vidros e sigo o trilho do alcatrão e os holofotes incidem num coelho imóvel cinzento que levanta a cabeça e paro e o animal mantém as orelhas levantadas e o seu olhar negro está cego com as luzes e movimenta lentamente a cabeça como se estivesse a medir o espaço à sua frente e saltita para fora da estrada misturando-se com a neve que o encobre e ligo o rádio e surge uma canção que me é familiar que tem um andamento lento e progressivo que se transforma em rock “... e chega a polícia bacteriológica com um toque de classe impõe a sua lógica e parte-se ao meio a cidade metade será caos a outra eternidade tem-se a vertigem a cor do vácuo comunicar sem som sentir ruído branco” (1); o Salão Brazil festeja a maioridade dos conimbricenses a jigsaw e a noite de hoje será diferente da de amanhã onde estarão outros convidados como o Pedro Renato e o Sérgio Costa no palco encontra-se João Rui (voz/guitarra acústica/banjo) João “Jorri” Silva (teclados/harmónio) com a Maria Côrte (violino) e o Guilherme Pimenta (bateria) e as três primeiras canções “To Whom I Shall Give My Blood”, “I`ve Been Away For So Long”, “Postcards From Hell”, versam uma folk pejada de cores fúnebres e se há alguns lampejos de luz são provenientes do violino da Maria Côrte e este negrume é aparentemente eliminado com a entrada em cena da Tracy Vandal para interpretar “Of Those Who Know You`re Right” com o João Rui e estabelecem um jogo de vozes antagónicos a escocesa exuberante o português profundo e as canções subsequentes “Letters From The Boatman”, “Life`s Like a Riverboat”, são acrescidas de uma outra voz a da Raquel Ralha e da guitarra eléctrica do génio Victor Torpedo e o baixo eléctrico do irrequieto Pedro Antunes e versam o americana inclinado para o rock (como centro inexistente) e as vozes complementam-se num jogo que parece estar a ser jogado do lado do risco e somente por isto são inexcedíveis na eloquência do timbre de tão dramática e destaco “Lost Words” original dos fantásticos Tiguana Bibles que é transporta para um universo predominantemente pop sendo esta a única do concerto com tal estilo e “New Man” é destinada à voz da Raquel Ralha que canta com uma voz grave quase scat a contrabalançar com a segura do João Rui e antes da seguinte canção a cantora observa “não é bom que as bandas de Coimbra se juntem e façam coisas em conjunto?” e “You`re The One I Want The Most” é somente desenhada e após a qual Raquel Ralha abandona o palco e a complexidade é representada pelos a jigsaw em “Make Straight The Way” que estabelece como ponto de partida o rock que tem na base o americana e que é por essa medida psicadélica e a folk é de novo delineada em “Dreams & Feathers” e “Crashing Into The Harbour” é de um dramatismo americana garrido com o violino de Maria Côrte fundo a obter a resposta da guitarra eléctrica do Victor Torpedo sobre um ritmo acelerado e “Whithout the Prize” consegue inexplicavelmente ir mais além do que a anterior mas com duas vertentes em simultâneo a fúnebre e a do nascimento de um ser vivo e “No More” é prenúncio de morte com o bombo a marcar o ritmo de um coração que não se quer dissipar no silêncio e o harmónio do João “Jorri” Silva é um ferro que queima dada a sua leveza espiritual e a voz é um ressoar de um homem que julga que está vivo com o violino da Maria Côrte e a guitarra eléctrica Victor Torpedo a enunciarem o espectro que se liberta do defunto e “God Was Sleeping” (com a Tracy Vandal a secundar o João Rui) parece um barco de papel que se entretém a navegar no mar morto e “One Right Lie” reaviva a americana atolada no rock e depois do João Rui ter apresentado o excelente elenco de músicos que acompanham a jigsaw e que dão pelo nome The Great Moonshiners Band tocam “Blame Me” com a Raquel Ralha e a Tracy Vandal e o João Rui a confessarem sobre o blues uma alma que divaga e se intrometem num imaginário distante de tão eloquente; e meto a primeira e de seguida a segunda mudança e ganho velocidade e acrescento a seguinte e tento descodificar os restantes versos de “Toxicidade” dos GNR e transponho-me para esse universo em que há um dramatismo que retrata um não-espaço que somente pode ser vivenciado através da imaginação “toxicidade num céu incerto vento morto a enterrar” e as curvas fechadas obrigam-me a desacelerar e persigo um nevoeiro que é como uma parede branca que transponho subsequentemente e a canção é finalizada e desligo-o e sinto o toque de uma mão na minha perna e ao olhar na sua direcção desaparece e perturbado tiro o pé do acelerador e procuro concentrar-me no percurso continuamente sinuoso que me encaminha para o cimo e do nevoeiro surge uma figura antropomórfica que sustenta numa das mãos um livro de folhas amarelecidas que quando me aproximo esfuma-se e tento lembrar-me o que me fez tomar a decisão desta viagem e não encontro uma justificação que satisfaça a minha memória é e era uma turbina e volto a mim e a estrada segue num túnel branco que se parece a um manto de pureza que apaga a visão do tal ser que não sei o que representa ou representava parece-me que esta conjugação verbal é que é a acertada e desacelero e curva após curva parece que estou a subir para um futuro que desaparece quilómetro após quilómetro num carrossel sem luzes a piscarem e nem os das sirenes das outras diversões consigo ouvir e persigo os pontos de luz à minha frente como se fossem estrelas que me orientam para o meu interior onde me diluo numa felicidade eterna.

Décimo oitavo aniversário a jigsaw and The Great Moonshiners Band, 15 de Dezembro, Salão Brazil, Coimbra.

(1)- Tema incluído no LP dos GNR “Rock in Rio Douro” (1992) com poema de Rui Reininho e composição de Zezé Garcia.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O Fósforo na Palha

No jornal de hoje há um anúncio curioso “homem com andropausa procura jovem que saiba ler e escrever e passar a ferro e cozinhar e lavar a roupa e tomar conta da minha mãezinha entrevadinha e que goste de música clássica e de ópera e que fale durante horas porque eu sou introvertido e assim o tempo passa mais depressa e que goste de gatos e de cães rafeiros como os meus dois filhos” e ao reler pergunto onde é que este idiota reside mas somente se encontra à disposição um número de um telemóvel ao lado do qual se encontra entre parêntesis “(não atendo números codificados)” e como tal a minha vontade de lhe telefonar com timbre de menina de alcofa fica frustrada mas mesmo assim ligo e oiço uma voz adormecida que deve ter uma cabeleira postiça branca “sim?” e parece irritado por ter sido apanhado em algo que havia previsto e emito uma voz cavernosa de velha habituada a fornos de lenha e a fazer a cama às vacas que as passeia para a ordenha durante a manhã e com as quais contorna a capela em ruínas vítimas de um incêndio demoníaco e oiço o “cavalheiro” a resmungar como se estivesse sem a placa dos dentes que devem encontrar-se submersas num copo de água na mesinha de cabeceira para que ao acordar não veja no espelho o rosto da morte; encontro-me no Hard Club em Gaia e tocam os argentinos Mueran Humanos que apresentam canções synth já que a pop fica diluída numa contínua torrente de beats nos quais é-me impossível detectar uma estrutura que as consigne a esse género (ou se calhar é essa a intenção do casal ela no teclado/voz e ele no baixo eléctrico) mas mesmo que tal seja intencional não resulta porque para além de ser entediante é irritante tanta falta de sentido estético; e o seu perfil de quem gosta de música erudita parece-me falso já a mãezinha fica bem com os pés à lareira quanto aos afazeres domésticos da “jovem” devesse acrescentar que seja activa na cama já que a passividade deve-o ter acometido durante toda a vida e esqueci de acrescentar ao seu anúncio que a “jovem deve ter entre os 35 e os 45 anos” não sei porque descarta a possibilidade de seleccionar uma com 25 anos talvez porque tenha medo de que alguém lha roube e se tivesse a morada enviar-lhe-ia um space cake para o seu casamento com os noivos no cimo de uma pirâmide de chantilly de mãos dadas a sorrir por sentirem uma felicidade esquisita e o anunciante desliga o telemóvel não se antes insultar a idosa “pró caralho!” e ainda tento oferecer-me como se fosse uma prenda a sair de surpresa do space cacke mas apenas oiço um som digital repetitivo; os cabeças de cartaz são The Horrors que correspondem a um quinteto de rapazes liderados por uma figura magra e esguia com uma cabeleira que lhe cobre parcialmente a cara e que dá pelo nome de Faris Badwan e desde a primeira canção “Hologram” é fácil denotar que se encontra no palco um cantor com um poder magnético que dificilmente se faz ouvir por entre o psicadelismo synth pop algo que o técnico da frente irá gradualmente resolver e que é um sinal predominante perturbante com uma cadencia mecânica distorcida “are we hologram? Are we visions?” a segunda “Machine” é um festim de referências com origem na louca Manchester com as suas raves regadas a ecstasy marcada por um ritmo gótico que assombra dada a sua beleza negra e no fim Faris Badwan dirige-se directamente ao escasso público que se dignou vir ouvi-lo numa noite fria de Dezembro “good night Porto” e a canção seguinte “Who Can Say” ressalva os mesmos apêndices que a anterior com um acréscimo de distorção mas não deixa de ser tão ou mais urgente e violenta com os strobs a ribombarem ao ritmo dos beats (algo que será transversal ao concerto) e Faris Badwan sobre um ritmo pausado é de um dramatismo atroz fala/canta: “And when I told her I didn't love her anymore/ She cried/ And when I told her, her kisses were not like before/ She cried/ And when I told her another girl had caught my eye/ She cried/ And I…”; a quarta “In And Out Of Sight” é de um romantismo gótico synth profundamente incisivo e é amordaçante de tão bela a seguinte “Mirrors Image” versa o rock mas com uma melodia soturna pejada de psicadelismo com um loop exótico a seguinte “Sea Within a Sea” é de uma virilidade slow negra que é seduzida por um psicadelismo synth e encontra o Faris Badwan na frente do palco a cantar curvado sobre a plateia como se fosse um vampiro sequioso pelas almas presentes: “So say I walk alone, barefoot/ On wicked stone tonight/ Will you leap to follow/ Will you turn and go/ Will your dreams stay rooted in the shallow”; a sétima “Weighted Down” é de uma languidez synth e que oscila indolentemente mas que é manchada pela guitarra eléctrica de doze cordas que sobressai negativamente quase anulando toda a sua beleza prog dark e quase e quase no fim os The Horrors decidem ilustrar a seguinte “Press Enter To Exit” com uma pop assertivamente elegante mas delineada para levar os adolescentes a usarem eye liner com a voz do Faris Badwan melodicamente poética de tão dramática: “What does it tell you when you change into a stranger?/ What words can never be denied?/ When does it start to turn the shade into a shadow?/ How does your life become a lie?/ Questions unanswered/ You walk into the storm/ Because there's no point in waiting now/ For the promise of a cur” e é encerrada com um solo de guitarra eléctrica que a eleva à condição de épica e a nona “Endless Blue” sobrevém num slow que discorre esvoaçantemente do sintetizador que é transporto para um plano onde o rock se enrola com o synth como se estivesse a ser emitido num ecrã a imagem de um sol negro a iluminar o dia já “Still Life” é uma coroa pop que encerra o fantástico concerto; mas regressam e “Ghost” é uma space lullaby tão etérea quanto profundamente psicadélica e “Something To Remember Me By” é uma belíssima e elegantíssima canção pop que é como uma antítese a toda loucura sónica que emoldurou o concerto e que o público ruidosamente aplaude hipnotizados por terem assistido a uma efemeridade dilacerante; e as páginas seguintes são anúncios de prostitutas que oferecem massagens ou passeios relaxantes em SPAs paradisíacos rodeados por tubarões famintos por carne humana que lhes irá saber à de porco e a página central dá conta de um pianista que se suicidou depois de lhe terem descoberto um tumor maligno no cérebro inoperável e a sua fotografia corresponde a quem esteve a vida obcecado por um teclado preto e branco com uma cauda negra que poderá corresponder ao hábito da morte e numa outra mais pequena o rosto da viúva de óculos escuros para esconder a alma marcada por uma dor repentina e procuro no Youtube as músicas que o fizeram feliz e há variações diversas tocadas como se estivesse a ouvir ondas de um mar de Verão que recusa o negrume da noite e que é de tal forma sedutor que as oiço repetidamente para me sentir arrebatadoramente vivo e questiono-me como será o impulso suicida que vitimou milhões de seres humanos e suponho que seja mais poderoso do que o da vida e como tal deve ser eliminado como se fosse uma erva daninha.

The Horrors + Mueran Humanos, 09 de Dezembro, Hard Club, Porto.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Manifest der Kommunistischen Partei


Noite de chuva em Coimbra onde irá decorrer no Teatro Académico Gil Vicente o concerto “Sempre Além—Um Espectáculo em Torno de António Variações” e o texto da folha de sala é da responsabilidade da comissão organizadora do colóquio: “Variações sobre António. Um colóquio em torno de António Variações” promovido pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e que explica o seguinte: “Sempre além de quaisquer fronteiras ou classificações, este espectáculo performativo e multimédia pretende convocar um itinerário em torno do percurso pessoal e artístico de António Variações e do seu tempo através dos seus temas mais emblemáticos e dos momentos-chave da sua carreira, num registo que mais do que homenagear ou prestar tributo, revisita, relê e celebra a sua obra singular” e os músicos que compõe esta celebração são inúmeros: Raquel Ralha (voz/teclado), Tracy Vandal (voz), João “Jorri” Silva (teclados), Pedro Chau (baixo eléctrico), Carlos Mendes (bateria), Miguel Padilha (teclados), Pedro Renato (teclados e guitarra acústica), Sérgio Costa (teclados e guitarra/ baixo eléctrico), Sérgio Nascimento (bateria), e ainda o irmão do malogrado cantor o Luíz Ribeiro (voz) e o seu irmão Jaime Ribeiro (voz) e a música que dá o sinal para a entrada de alguns dos músicos acima assinalados é “Toma o Comprimido” e o microfone é tomado pela Raquel Ralha que oferece uma profundidade estilística à “Erva Daninha” e “Estou Além” que citam os acordes das canções mas com arranjos actualizados que sublinham a vertente kitsch dos originais escusado será escrever que a Raquel Ralha tem uma voz tão bela quanto segura com um alcance que não faz ter saudade da do António Variações; sobe ao palco Luíz Ribeiro que elogia este: “Maravilhoso colóquio e concerto em volta do António Variações” e o tema que irá cantar chama-se “Curva Ilusória” que foi escrito “a partir de uma cantoria do António Variações” e que tem como fundo um piano melancólico com um verso assim: “No jardim da minha infância” e outro assim “não quero viver da saudade” com uma entoação minhota e se fecharem os olhos como eu o estou a fazer julgariam que o emissor seria o excêntrico António Variações mas se os abrirem como eu o estou a fazer veriam que o Luíz Ribeiro veste camisa branca e calça de flanela cinzenta portanto a antítese do seu irmão que também foi um pioneiro stylish cabeleireiro e a canção seguinte “Lodo” é antecedida por este testemunho “avançamos oito anos” quando o António Variações “nos anos setenta regressou da Guerra do Ultramar” e nessa altura “trabalhava num cabeleireiro na Parede” e foi surpreendido pelo irmão que o informou que “já tenho música para um dos teus refrões (dixit)” e os teclados inferem um dedilhar melancólico sobre o qual ouvimos a alma do António Variações “só perseguido pelo azar” e há um outro verso que causa espanto dada a sua beleza “águas paradas no rio em tempo de maré cheia” pois é arrepiante; surge o Ricardo Seiça que desempenha o papel de um actor com a personagem errada que diz “o António Variações é o barbeiro das palavras” que não passa de uma banalidade errónea porque o facto de ter sido cabeleireiro (e não barbeiro) não é algo que o tenha influenciado a recortar o português antes deu a termos populares um acréscimo poético e nessa medida consagrou-os à cultura pop e prossegue a tentar descrever displicentemente o génio do cantor minhoto; o Ricardo Seiça irá aparecer mais vezes mas não tirei qualquer apontamento porque as suas intervenções serão gratuitas e inócuas; surge novamente a Raquel Ralha que oferece à canção “É p'ra Amanhã....” uma entoação tão popular quanto o original e a música ressalva a sua memória kitsch; à escocesa Tracy Vandal calhou em sorte “Canção de Engate” e que é cantada em inglês e durante a qual há um divórcio entre esta e os músicos que transmitem a alegria de um engate numa rua do Bairro Alto mas devesse sublinhar que gradualmente que a cantora consegue enquadrar-se no ritmo acabando-a primordialmente; o Luíz Ribeiro toma a palavra e o que diz é emocionante “saudade de não estarmos com o António” que faleceu em 1984 vítima (ao que se julga) de SIDA que grassava entre “Braga e Nova Iorque” e que vitimou especialmente a comunidade homossexual e a canção que irá cantar é “um poema com uma viagem simbólica” e que se intitula “Então foi a Braga” e que tem uma melodia tristonha que retrata um périplo de comboio e a voz é similar à do António Variações como se estivesse novamente tão presente como quando ainda estava vivo; junta-se ao Luíz Ribeiro que introduz a próxima canção a partir de um mito “há quem julgue que o António Variações tinha só uma Diva que era a Amália mas não é verdade antes era a nossa mãezinha Deolinda de Jesus” o seu irmão Jaime Ribeiro que agradece à Universidade de Coimbra a homenagem mas acrescenta algo que não deveria sequer pensar “a vetusta Universidade de Coimbra” porque está a ofender quem está a enaltecer a obra do António Variações e o dueto “Deolinda de Jesus” desencontra-se continuamente porque um é lento e incisivo o segundo é meramente popularucho para além de estarem desenquadrados da melodia melancólica (em playback); e Raquel Ralha é voz de “Perdi a Memória” revista num funk kitsch que é arrebatadora já “Dar e Receber” versa o disco sound que faria corar os Abba por ser tão ou mais kitsch quanto as suas canções e a última “Sempre Ausente” é fúnebre e introspectiva como se estivesse a presenciar a viagem do António Variações para o além, e a plateia ergue-se dos cadeirões e ovaciona os músicos faltando os irmãos do homenageado; a carrinha da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian parava à porta de um prédio de quatro andares com elevador no qual descia para ver as novidades e requisitar um livro para me acompanhar durante as semanas de Verão passados num bairro marginal de Aveiro que o lia num quarto com uma mesa redonda com uma toalha vermelha enquanto a minha mãe passava a ferro as camisas do meu pai e cantarolava canções da sua infância passada em Caracas “ai que abandonaste la negra, no la escuchas a chorar?” que me obrigavam a parar a leitura de “Os Filhos da Droga” da Christiane F. que página após página me induzia a rejeitar um universo em que dominava a heroína e esta era tão estranha quanto nojenta mas que paradoxalmente me atraia por consumir a consciência da Christiane F. assim como o seu corpo esquelético que vendia para financiar o vício pelas ruas da Berlim ocidental que ainda se encontrava dividida pelo Muro que por vezes era emitido na nossa televisão a preto e branco e à sua frente num palanque o John F. Kennedy discursava para a multidão no inicio da década de sessenta "Ich bin ein Berliner” e a minha mãe relatava como decorreu o seu assassínio em Dallas pela mão de Oswald e não acreditava que tivesse sido este o autor mas “la CIA o el FBI” mas havia um outro grupo suspeito “la derecha cubana” e “la Jaqueline casó con Onasis para huir de esos criminales” e suspirava triste por o Johnson ter dado continuidade à guerra do Vietnam para engrandecer “el pueblo americano que transformó una generación de hombres sin piernas o de silla de ruedas” que apoiou “a Pinochet” que “que arrojaba a personas vivas al mar dejando a sus madres solas” e dava-me a ler o “Manifesto Comunista” do Karl Marx e do Friedrich Engels que havia comprado na livraria Havaneza na Figueira da Foz no fim de semana anterior para reler os fundamentos do comunismo mas que eu não conseguia passar das primeiras páginas porque a sua nomenclatura lexical era-me inacessível algo que a desagradava e eu sentia-me profundamente ignorante e substituía-o pelo “Asterix e os Normandos” e desejava um dia ter uma porção mágica não para agredir as pessoas mas para as fazer felizes mas a minha mãe achava que tal seria impossível “los portugueses están siempre tristes porque tienen miedo del pasado viven con miedo del pasado cuando Salazar mandaba a los PIDE a arrestar a los comunistas” e que se encontrava sintetizado em três palavras “Fátima, Fútbol e Fado” e parece que se questionava o porque de ter casado com um português “el amor es ciego Jimmy un día lo sabrás” e eu sorria como que a ansiar pelo dia em que me apaixonasse pela primeira vez e procurava na estante algo sobre o amor de preferência um guia mas somente encontrava o “El Amor en los Tiempos del Cólera” do Gabriel García Márquez no qual sucessivamente me perdia mas não desistia de ler mesmo percebendo vagamente a sua história e para colmatar esta incapacidade questionava-a sobre o seu conteúdo mas ela recusava educadamente ajudar-me “tienes que descubrir las herramientas para orientarte en sus palabras” e ao fim de uma página que me levava meia hora abandonava-o para acabar o “Astérix e os Normandos” e depois de jantar na mesa da sala juntamente com a minha mãe e o meu irmão esperava-mos horas para ver o “Monstro da Lagoa Negra” e colocava-mos os óculos 3D mas por muito que tentássemos nunca lograva-mos ver em profundidade e aguentava-mos até que o sono nos levasse a paciência enquanto o monstro procurava uma donzela num pantanal cinzento como se o amor fosse algo de tão poderoso que fosse responsável pela união de uma besta com uma jovem.

Sempre Além—Um Espectáculo em Torno de António Variações, 08 de Dezembro, Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Der Kitsch. Eine Studie über die Entartung der Kunst

Estou na sede da DRAC- direito de resposta associação cultural na Gala situada na margem sul da Figueira da Foz e que tem em cartaz duas bandas: Twin Transistors e os The Last Internationale; os primeiros apresentam um conjunto de canções que se inserem no desert rock mas não conseguem acrescentar algo que lhes consigne originalidade porque alicerçam-nas em redor dos seus clichés o que é deveras entediante e a única que vale a pena ser discriminada é a versão de uma canção dos Velvet Underground; a música que assinala a entrada em palco dos The Last Internationale é “The Revolution Will Not Be Televised” do Gil Scott-Heron e o seu ritmo é mimetizada pela bateria mas o baixo e a guitarra revertem-na para o rock e a partir deste ponto surgem outros em outras canções que reverberam um rock por vezes mestizado com o funk e o punk que tem origem especialmente na guitarra eléctrica de Edgey Pires que a seu lado tem uma cantora que versa a soul e que confere às canções uma personalidade estranha por ser um foco de luz que emana do jogo agressivo dos instrumentos musicais e ela apenas despe o casaco e encontra-se vestida de preto com um chapéu de abas e para além de assegurar a voz ainda toca baixo e quando é necessário a harmónica e a performance da dupla é suficiente para incendiar o público que se ajoelha perante a profusão de solos épicos por parte Edgy Pires e se deixa penetrar pela Delila Paz que canta por entre a multidão como se estivesse no palco e há uma versão do John Lennon “Working Class Hero” e uma outra do Neil Young “Hey Hey, My My (Into the Black)” a primeira é à guitarra eléctrica e com a voz soberba da Delila Paz a recuscitar o Beatle e a segunda é apresentada com um dramatismo rock que a engrandece e se poderia haver uma surpresa é a de a cantora convidar um membro do público para cantar “A Grândola Vila Morena” do Zeca Afonso mas que se esquece de um dos versos e a multidão aplaude o incidente e a banda prossegue o delírio de rock na roll como se o dia fosse supérfluo e o a noite eterna; sento-me na esplanada do Bar do Bruno situado sobre a praia do Baleal em Peniche e peço um chá que tem um odor suave e delicodoce e observo o mar pejado de surfistas à espera da onda perfeita enquanto o sol de Dezembro os ilumina tornando-os em diamantes negros que deslizam em ondas anãs e tento ausentar-me das conversas banais à minha volta assim como da de um casal que aparentemente estão presentes que bebem cafés como se a cafeína fosse ouro e leio “Der Kitsch. Eine Studie über die Entartung der Kunst” do Fritz Karpfen traduzido para português mas é mais chique usar o título em alemão não vos parece ou não vos quer parecer e não coloco o respectivo ponto de interrogação para me libertar das fronteiras que a pontuação institui e assim cabe ao leitor escrever a sua história e sou interrompido por uns americanos de fato de borracha que discorrem pomposamente sobre a sua surfada durante a qual dominaram a maré mas não consigo identificar de que estado americano são provenientes nem se são orgulhosamente apoiantes do boçal Donald Trump que é um terrorista de fato e gravata e com uma poupa que poderia ser surfada por qualquer aprendiz como os que tentam equilibrar-se em pranchas hand made que lhes oferecem uma aura de surfistas profissionais em circuitos internacionais e se tivesse uma longboard estaria neste momento a produzir a espuma das ondas que são como coroas efémeras com origem no poder do Posídon que mereceria uma estátua em bronze numa das rotundas do Baleal e releio a página em que o autor revela as diferentes facetas do kitsch e a sua premissa é a do pastiche que agradava aos pequenos burgueses que decoravam as suas vivendas com obras vazias de conteúdo somente porque ficavam bem com as cortinas amarelas e este ensaio datado do início do século XX é de uma actualidade atroz porque ainda domina em Portugal a ignorância nas elites que financiam artistas plásticos carentes de autenticidade e de originalidade somente porque ficam bem numa casa de bem onde se tratam por você como se tal os coloca-se numa redoma de vidro que os impedisse de serem vítimas da vulgaridade à qual a pobreza está associada e uma mulher pede para se sentar na minha mesa de madeira branca algo que cordialmente permito e lê um livro com mais de quinhentas páginas com o título “O Pavilhão Púrpura” do José Rodrigues dos Santos e levanta-se deixando-o como se fosse uma prenda envenenada em que cada palavra fosse uma gota de cicuta e reaparece e pega no calhamaço para adultos infantilizados e dirige-se para uma outra mesa sem agradecer o tempo em que o seu livro manchou a minha reflexão e peço mais um chá de tónico espiritual e substitui-o o livro do Fritz Karpfen pelo “A Câmara Clara (ensaio sobre fotografia)” com título em português para vos surpreender não vos parece ou não querem perceber e sentam-se umas adolescentes que conversam ruidosamente sobre a noitada que vivenciaram com capítulos memoráveis mas que infelizmente se dissipam da minha memória e há uma que recebe uma chamada telefónica do namorado que a entendia porque sente que ele lhe está a cercear a sua liberdade e por isso desdenha o seu amor e sinto o odor a cannabis e uma delas levanta-se rapidamente como se tivesse a decorrer um afogamento de um seu familiar e após minutos regressa com uma amiga que está de tal forma mocada que estira os braços para o ar enquanto se senta e pede uma cerveja “Bar do Bruno Craft Beer” e depois de beber pelo gargalo assobia o “Não sou o Único” dos Xutos & Pontapés composição do malogrado Zé Pedro e as amigas riem e o ensaio do Roland Barthes questiona a fotografia através de um discurso que parece uma confissão sobre a mortalidade e refere que a sua origem é o teatro no qual se encontram fundeados os princípios nucleares que transformam uma fotografia numa obra de arte e o pôr-do-sol atrai os olhares dos clientes que aproveitam para o fotografar porque assim se apropriam de um instante que lentamente se eclipsa e no Instagram procuro a imagem de uma mulher que não olha para a objectiva e sustém a mão esquerda sobre o seu queixo e a sua pele pálida contrasta com o seu cabelo negro comprido que enquadra o seu rosto eternamente belo numa melancolia que espelha a sua alma e que conquistou o meu coração.

The Last Internationale + Twin Transistors, 7 de Dezembro, DRAC, Gala.

Em memória do fundador dos Xutos & Pontapés o Zé Pedro e do “french Elvis” Johnny Hallyday.