domingo, 26 de julho de 2020

Esquisse D'Une Theorie Des Emotions

Apago o que escrevi porque era como um hit de uma banda pop que almejava o sucesso através de uma canção medíocre que perdura nas playlists das rádios locais um dia quiçá tenha possibilidade de reescrever as notas sobre esses dias de isolamento com a minha família em que descobri que a minha mulher não lia apenas se sentava em frente da televisão a consumir lixo doméstico não se incomodava com a sujeira alheia porque isso era da responsabilidade da mulher-a-dias e a argumentação era que se descartava a esse papel de servil estava concentrada a passar o tempo ao telemóvel com a sua melhor amiga e conversavam ao desbarato como se apenas tivessem o prazer exclusivo de partilhar os seus acasos sentimentais mais íntimos perguntava-me o que fazia neste apartamento com esta mulher em que identificava uma outra pessoa pela qual nada sentia ou talvez repulsa mas essa tinha que a ocultar para evitar que possa despontar uma zanga que nos separe nesta altura em que dominava a quarentena e os dias são por vezes interrompidos por questões que a perturbavam a principal era encontrar-se numa idade ideal para engravidar e referia-se a este assunto através de inúmeras variantes dia após dia como uma obsessão que poderia ter o poder de engravida-a mas o facto de ignorar quando acabará esta pandemia angustiava-a e impedia-a de processar a gravidez era recorrente ouvi-la a vomitar na casa de banho com uns enjoos ilusórios e de camisa de noite parecia que vestia roupa de grávida ah tanto desejava que a barriga crescesse para se sentir acompanhada na sua solidão orgânica e que daí surgisse a flor de lótus para que a pudesse regar no Verão; a banda de Coimbra From Atomic apresenta no Salão Brazil “Deliverance” o seu primeiro testemunho e contributo à música pop e o trio apresenta um primeiro conjunto de canções infectadas com um químico agridoce com inúmeras e sublimes progressões que remetem para algo etéreo mas substancialmente dinâmico dada a sua vibração que conduz a consciência para outros domínios até aí estranhos à sua existência quanto à segunda série de temas acentuam o rock e a pop num jogo que balança entre o abismo e o precipício evocados por uma voz tão fantasmagoria quanto sensual da Sofia Leonor para finalizar há que realçar que estas duas premissas aqui decantadas estão emolduradas por uma equação negra que simultaneamente lhes confere contemporaneidade e as agrega à década de oitenta do século vinte uma memória que é mais descartada na segunda leva de canções e por isso elevam o concerto a um patamar esteticamente mais glorioso; mas esta encontrava-se presa a uma malha de incertezas poderia ser que estaria mesmo grávida e que daqui a pouco eu estava a contemplar alguém tão breve na vida os primeiros espirros e o choro de três em três horas mas olharia para a minha mulher como um mero veículo acidental para procriar porque assim era o seu desejo desde que por acidente nos prenderam a estas paredes brancas com fotografias de viagens a lugares paradisíacos como Balí e a Islandia o estranho é que não me reconheço nessas memórias mas por outro lado tenho a certeza de quem eu era por essa altura a vivenciar rotinas estabelecidas pela sociedade como uma experiência única e nessa desintoxicação reafirmava o meu amor eterno aliás como o eterno do eterno nesse período escrevia umas quadras avulsas tão populares quanto desconcertantes que lhe dedicava cada sílaba molhada ou com acne fosse como fosse quem é esse tipo que se encontrava em Barcelona a passear de mão dada com essa mulher que me orientava pelas ruas góticas e fotografei as gárgulas para se um dia tal como o de hoje as possa rever num álbum em que imperavam os elementos arquitectónicos era frustrante ir ao encontro da sua predisposição para se silenciar para agudizar a minha angustia de que estes dias não tinham a rotina que vivenciei desde que tive consciência de que existia e se me encontrava ao espelho descobria pequenos cortes no meu rosto talvez amanhã nem repare que estava dramaticamente mais velho e essa irreverência dava-me ânimo para suportar a presença da minha mulher que de tão picuinhas aparentava ser absorvida por uma perfeição que era estipulada segundo um critério do qual determinava as regras do jogo psicológico e eu era o seu querido aluno predisposto a encarnar um bom aluno para que ela se sentisse feliz por se julgar uma princesa e este pedestal acalmava-a e suavizava a nossa relação desgastante somente o lugar-comum era-lhe passível de ser valorizado como raciocínio era fácil cativar a sua imaginação desde que estivesse associada uma época idílica onde pudesse reinar.


From Atomic, “Deliverance”, 25 de Julho, Salão Brazil, Coimbra.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

L'Amour de la peinture

Está a escurecer em Lisboa mais exactamente no Parque Mayer à porta do Capitólio na esperança que possa entrar mesmo que não tenha sido contactado pela produção liderada por André Tentúgal um realizador associado aos GNR ao registar para vídeo “Cadeira Eléctrica” e em DVD “GNR os Primeiros Trinta e Cinco Anos ao Vivo” (os GNR completarão quarenta anos em 2021) e desempenha essas mesmas funções no ELÉCTRICO programa que tem como formato colocar duas bandas em confronto directo e ao vivo e aos GNR calhou na rifa os Cais Sodré Funk Connection não fico surpreendido pelo meu nome e o do meu irmão não constarem da lista dos inscritos para fazer parte do show respondo a um questionário simples e por fim a minha interlocutora acrescenta que se faltar alguém teríamos esses lugares à nossa espera e após quatro minutos entramos no Capitólio uma assistente explica que o nosso lugar são umas cruzes brancas no chão das quais não poderíamos sair até ao fim de hora e meia de rodagem para posterior emissão na RTP e os primeiros a moverem-se nesse espaço temporal são os GNR e em “Efectivamente” a sua festividade tem como ponto convergente a pop/rock delineada para ser fruída a dançar se é pop inteligente é o de facto e que pretendo analisar é o seu cariz contagiante sem ser pegajosa e a poesia do poeta e voz dos GNR é um desprendimento atroz ao preconceito a seguinte “QUEM?” é um balanço pop melancólico que deflagra num psicadelismo que lhe oferece uma transmissão de esperança que é enternecedora de tão delicada e que gradualmente se insurge contra essa ilusão e ganha um rodopiar de carrossel conjugado por versos pejados de espírito assertivamente sublime e “Vídeo Maria” é revista numa actualização retro do funk pois tem reminiscência ao funk da Stax Records esta canção fez parte de uma revolução cultural pois é um hino pop perfeito que se imiscui num universo religioso ao associar Maria a um pecado original e o balanço dançante é arrebatador e a melodia viciante liberta-a ao se emancipar através do corpo de mulher observada por Rui Reininho o poeta sem estátua ou busto mascarado de Rui Reininho único e por isso imprescindível às nossas magras contas de figuras que possam ombrear com o seu magnetismo em palco “Dunas” perde a sua métrica de praia onde decorreu um amor adolescente e transcorre uma memória que por ser tão bela se torna idílica mas jamais se deva entender esta comparação com algo escapista antes pelo contrário a sua ressonância magnética é de uma força que impregna a música com imagens fotografias ou postais em movimento numa projecção intemporal e para “Morte ao Sol” é altura de entrar em cena a Selma Uamusse e a canção é engrandecida pela voz desta cantora que a transpõe para um domínio tão espiritual quanto revelador desse universo que é tão vasto quanto tal é possível para a natureza humana do outro lado da balança encontra-se Rui Reininho num contraponto que faz ressoar cada verso numa modelação que remete para a abstracção proporcionada pelo caos ou a anarquia mas que paradoxalmente é enunciador de esperança mas também da desesperança mas estes são um fio condutor que oferece à sua personagem que é o Rui Reininho uma profundidade psicológica que se irmana a roçar a perfeição com a da Selma Uamusse e declaro que os GNR o Tóli Cesar Machado e o Jorge Romão inscrevem um momento histórico para a televisão acompanhados pelo Samuel Palitos e o Rui Maia é porque ocorre algo tão belo que é do domínio do espiritual leve e denso que progride da pop para se prolongar ambientalmente para um garrote que a prende a um ritmo hipnótico somente genial; quanto aos Cais Sodré Funk Connection que intercalaram a actuação dos GNR fazem jus ao apelido e é esse o seu problema primordial o transporem o funk seguindo as coordenadas mais reconhecíveis com o uso e o abuso de um groove entediante de tão repetitivo permito-me acrescentar que os músicos primam por uma eficácia em que por vezes rompem as cadeias do funk mas que é tão episódico que não logram impô-lo como denominador comum e assim ocuparem um outro patamar que não o de uma banda de funk como haverá similares por esse mundo ocidental afora não devo nem posso esquecer o convidado desta comitiva do funk o Paulo de Carvalho e com o qual auguram alguma profundidade estéctica em “Mãe Negra”.

ÉLECTRICO (GNR + Cais Sodré Funk Connection), 9 de Julho, Capitólio, Parque Mayer, Lisboa.