domingo, 29 de maio de 2016

Sobre os Espelhos e Outros Ensaios

Sobem ao palco do Salão Brazil os GQA, constituídos por André Quaresma e Alexandre Valinho Gigas (Gigas), este segura o microfone através do qual comunica: “Boa noite; obrigado por terem vindo ao Salão Brazil”, para presenciar o evento denominado: “Sons da Palavra”. André Quaresma manipula uma turn table que se expressa digitalmente; o Gigas lê: “Vou continuar”, “é preciso dizer palavra”, “enquanto houver é preciso dize-la”, palavra, “vai ser o silêncio”, “silêncio”, “ali onde estás”. “Não posso continuar”. O sons synths ecoam intensamente. “Silêncio não se sabe nada”. “Vou”, sopra para o microfone, “que eu gritasse” . “De um deles de repente”. “Durante a sua existência mais forte”. “Pois o belo não manda mais porque não é mais do que o começo do terrível”. A vertente synth intromete-se na narrativa do Gigas, “ todo o anjo é terrível/Todo o anjo é terrível”; “todo o anjo é belo”, introduz-se o solo de uma guitarra sintetizada que encerra o poema. O André Quaresma troca de lugar com o Gigas; o pano sonoro corresponde a ondas dobrarem-se sobre uma praia invernosa. O André Quaresma diz os versos como se fosse um MC intelectual, “estas cicatrizes frescas todas as manhãs”. “Sou Augusto”, “luz diurna”; a tempestade sythn enuncia-se; “cada vez mais apertadas”, “sinceramente verdadeiramente nossa”, “assim vivemos”, “cabeça nas paredes” de papel florido. O apartheid rural: “Quem gosta de folclore não vem para a cidade”, “gente que nunca escreveu uma linha” nem tão pouco a snifou. O êxodo rural para as cidades impôs-se “à sociedade através de uma atitude ameaçadora”; o MC não consegue transmitir o escárnio que tais figuras lhes provocam, e redunda na comparação: “Como padrões para a vida”. “Amor”. “Não importa”, a sua voz não testemunha qualquer dor. “Não importa”. “De homem para homem”. “Arrumamos os lábios”. “Navalha aos olhos”. A tempestade aumenta de intensidade, e enquanto se dirige para a sua musa é incapaz de revelar o seu rosto aos presentes, “nem desespero que a minha liberdade”. “Excepto tu meu amor”. “Criança”. “Dois anos neste século”, fruto do “meu próprio fluxo”; esperma; “os vivos e os mortos”, “anos e anos ficarão por contar”. A introdução musical do próximo tema fica a cargo de André Quaresma, insere um ritmo denso que gradualmente se agudiza, surgem violinos e um grito de uma figura ausente. Gigas esclarece que é o “grito dos outros”. “As latitudes democratizaram o absurdo”; ouve-se um segundo grito; “as derradeiras guerras”, “tens que aguentar”, “realidade”, “agente”, “dos gatos”. “Um doce quente”, “lugares vagos para sempre”, “as luzes fluorescentes da noite”, e nas ruas “cantar a morte outra vez”. “Outra vez o balanço das cores” que representam “a humanidade sangrenta das melodias”. Gigas tenta libertar-se do: “Fim”. “Fim”. “Fim”. “Fim”. “É continuar”. “Fim”. Eclode um terceiro grito e de seguida ouve-se um timbre de um idoso; “fim”. “Fim”. “Morto no mar”. “AHAHHAH”. “Morto”. Estrebucha: “Fim”. “Fim”. “Fim”. O poema seguinte tem por inicio acordes jazz, que faz dançar no túmulo um ser “que não estava morto”, mas que “nunca viveu”, tão pouco “viu a causa”, imperativamente “morreu à beira da causa”, “na alta, na baixa, no meio”. “Ocupado a aperfeiçoar”. “Ocupado a aperfeiçoar”. “Sem discurso”. Inevitavelmente “à procura da causa”; prepara o caldo que é sugado por uma agulha hipodérmica, enlaça o garrote à veia do braço e injecta-se; posteriormente é “encontrado nos subúrbios de uma OD”. Será que “morreu cego, surdo e mudo?”. “Ele era a causa”. A música são uns seixos a roçarem um no outro e assinalam que Gigas vai relatar mais um poema: “A noite”, “tudo é negro, vermelho por dentro”, “as línguas rentes”, “tudo envolve os vermelhos dentro”. “A noite era vermelha”. “OOOO”. A introdução de um ritmo marcial enuncia a mudança de poesia; Gigas num lamento: “Yes you are”. “Ave-maria”, (“laços de divindade”), instalada em “vãos que são penhascos”, iluminada pela “luz dos logradouros”, “aquecem os corpos”, “uma ideia de naufrágio”, “da mesma raça”. “Emanam os pés que se desprendem da mesma rua”. “Um silêncio eterno”. “Respirar”. “Inteiro”. “Mortal”. “Como tudo o que importa”. “Então sou um rio sem medo da morte”. “Ave-maria”. É a vez de André Quaresma segurar o microfone e o Gigas lança um som sustenido digital. O Outono parece enquadrar a descrição: “Silencioso”. “Passam os carros”. A monotonia acicata-lhe “a vontade de fugir”; mas subitamente cai em si e procura a sua figura no espelho: “Errei, errei”. Reflecte sobre o seu rosto: “Nada disto é a minha vida”. A moldura sonora é crescente e sublinha a aversão do narrador pelo “dinheiro”, e como um peregrino desprovido de ganância sobre os bens materiais percorre “a simplicidade dos caminhos”. Desanimado não se encontra no reflexo: “Ao fim da tarde ficou tudo igual”, “ficou tudo igual”, na prisão perpétua, “na província”.

Sobe ao palco o Flak, senta-se e coloca sobre as pernas uma guitarra eléctrica ligada a pedais e a um Mac; introduz acordes pontuais e espaçados com delay, alterna as notas agudas com as graves. Fim. O músico introduz uma textura esotérica sobre a qual declama Tiago Gomes: “Mil saxofones infiltram-se na cidade”, acompanhados por “cem contrabaixos”, “quinhentos”, “avançando”, seguem “cinco generais congregados na galeria”, que levantam o braço aos soldados e sinalizam que “agora é a hora!”, do “ataque!”. A guitarra de Flak agudiza a perspectiva sobre o passado e revela um outro tempo indeterminado: “Vem noite antiquíssima”, “noite com as estrelas, lantejoulas rápidas”. “Saline”. “Para as árvores próximas”, e “apaga todas as diferenças de longe”, “e deixa lá uma vez”, “vagamente perturbadora”. “Noite reunida”, “no teu vestido trajado de infinito”. “Talvez porque a alma é grande o corpo pequeno”. “Noite dolorosa”, a “sabor de água”, “vem lá do fundo”, “intestinal”, “vem sobre os mares, vêm horizontes precisos”, “vem noite silenciosa e estática”, “(tranquilamente)”,“vem cidade maternal”. “Ficava”. “Porque tudo é falso…”. O segundo poema tem como princípio a guitarra de Flak, que é um elemento omnipresente que lentamente ganha uma estética que está relacionada com a rotina: “São horas de ir para casa fazer o jantar”, “e continuar a caminhar”, por entre “jornais, gravatas”, “pelo homem pela mulher”, “e os seus apressados movimentos pelas avenidas”; a guitarra é exuberante nas tonalidades do fado pop. Tiago Gomes dirige-se directamente ao público: “É um prazer estar aqui”, apresenta o terceiro poema, “Sweet Dada”. A guitarra manipulada por Flak em loop parece uma onda sonora, ouve-se o canto de baleias, “if it is a moustache”, “true”, “cute”, “general”. “Snakes”, “out of the envelope”, que dão lugar a um ritmo synth, “wings”; a guitarra transpõe o espectro tonal das baleias dentadas. “A supermarket”, “like a butterfly”, “true”, “everyone”, sobrepõe-se o ritmo synth, “moment”, “such a beattyful day”. “Eleonora”. A base sonora é tão envolvente quanto sedutora, “bizarre”, que gradualmente se aproxima de uma complexidade sonora épica, “bizarro”, “musicians”, “flowers”, “fingers”, “living is a lifestyle”. O quarto poema tem como preponderância a guitarra blues jazz-pop do Flak; sola sobre um loop lento, “newspaper”, “satellite”, “a canção do simplista”, com a guitarra a escalar a escala numa profusão de solos introvertidos. O quinto poema é “a história de um guitarrista que faz amor com uma guitarra”: É “ligeiramente explícita”. Flak maneja “a capacidade da guitarra e transmite ilusão”, “pelas ondas sonoras do seu grito”. A personagem snifa “um pouco de coca”, ao medir erradamente o perímetro circundante “cai sobre a guitarra”. É de madrugada: “Lá fora os camiões do lixo trituram o lixo”; a guitarra sola luminosamente; que é como os gemidos “de uma mulher”, “um broche”. “Yardbirds”. Sente-se anestesiado “não sinto bem os dedos”, levanta-se, “estava-se bem no chão”. “Brecht sabia que tinha talento”. “Na lírica dos seus discos antigos”. “Voguem”, “não tem importância”. O narrador olha para o corpo da personagem: “A coisa começou a inchar”, “cresceu”, mas “ele estava tão cansado” e como tal “não lhe apetecia foder”; a guitarra geme agudamente, “Jimi Hendrix”; “cona”, e “ferrou as cordas”, “como se estivesse a foder uma vagina a valer”; a guitarra de Flak inscreve-se no rock; “em cada esfregadela fazia a guitarra gemer”, e a “guitarra parecia gostar”; a guitarra entra em processo orgástico; “mordiscou-lhe as cordas”; e “no momento em que se vinha um choque eléctrico percorre” a sua coluna e “vêm-se no cimo da guitarra”, e o coito “terminou”; solo blues de Flak; “deitou-se de costas”, e “depois desatou a rir”. Tiago Gomes elogia o público: “Vocês aguentaram bem; já vi que é pessoal com a guitarra no sítio”; chama ao palco a dupla a Jigsaw, o Jorri senta-se ao piano e o João Rui tem a guitarra acústica ligada à corrente. Tiago Gomes informa: “Ensaiamos hoje à tarde”, e acrescenta que o próximo tema reporta ao “´Pela Estrada Fora`” do genial “Jack Kerouac”. Os três músicos instauram uma métrica lenta em crescendo, “Terry e eu olhamos as estrelas”, mas o tempo decorria à solta, “mañana era sempre mañana”, que seguiriam para o “paraíso”, tenta numa “cabine de um hotel” telefonar aos pais. Segue numa caixa aberta de um “ruidoso camião”, e embebeda-se acompanhado por marginais, “homem, homem, eu quase morri”; a música marca o compasso de um blues de cores negras; a viagem passa por “buracos”, “rios”. A certeza que o faz seguir viagem: “Mañana tudo estará bem”. Olha à sua volta e surpreende-se, “estamos em New York”; é mentira: “Bullshit!”. Acena para “os nossos amores pessoais”. “Planos de trabalhos específicos”. “Planos de trabalhos específicos”. “Planos de trabalhos específicos”. A música continua consignada ao blues negro porém carregada de um dramatismo crescente; na caixa aberta: “Terry e eu olhamos para as estrelas e beijamo-nos”. “Roda”. “Anywhere”. “I want to be…” na tua “mind”; Flak sola num lampejo de raios soalheiros a despedirem-se da Primavera: “I want to see the Niagara Falls”. “Trucks”. “Dust”. “Highways”; a canção intensifica o seu pendor lúgubre; “Palm trees”. “Moons”. “Burn”. “Cross the stars”. “My friend” Terry. “Weird tatoos, oceans of blood”, “today a little bit confused”; o Jorri repete as notas graves no piano oferecendo à narrativa uma tonalidade fatalista. “Road”, “empty sky”, “all in drugs”, “same kind of drug”, “I don`t need cocaine high”. A música cria um quadro do deserto Joshua Tree, com destaque para o poder sónico da guitarra de Flak, “addiction to move”, “like yelow light”, “is the beginning of a great invention”, “cities and planes”; há um crescendo por parte dos músicos numa métrica progressiva; “keep on moving”.“Sacramento”. “Ohio”, “cowboy song”. Tiago Gomes canta: “Dying”; a massa sonora é dramaticamente progressiva e sustenida; o Jorri com a mão esquerda toca nas teclas do piano e com a restante nas suas cordas sublinhando o seu carácter trágico. “I love creation”, “sun”, “easy”; canta, “burn me now”, enquadrando-se nos acordes negros; Flak sola umas notas western, “burn me now”.

Sons da Palavra: Flak e Tiago Gomes + GQA, 27 de Maio, Salão Brazil



segunda-feira, 23 de maio de 2016

Broken Music

O edifício do Salão Brazil na baixa de Coimbra está absorvido por um chumbo nebuloso. No palco o curador Carlos Dias do Mono/Stereo- O Maior Pequeno Festival do Mundo apresenta as bandas seleccionadas para a tarde: “Subway Riders; Mike Up; Ajigsaw; Surma”. “À noite; temos umas bandas porreiras”. Mas antes “vamos ter o nosso momento poético Gigas”. “Depois das sete as montras são mais íntimas/A vergonha de comprar não existe/E a luz toma mais brilho/E utiliza cada um dos objectos”. A perspectiva crítica sobre a sociedade continua, pela pena de um outro poeta: “É preciso controlar o habitante/ Quantos metros quadrados são precisos em caso de acidente/Que o seu pulso bata a um ritmo conveniente/O habitante é sempre uma criança; a liberdade condicional/Onde passam os domingos/É preciso controlar o habitante até aos limites extremos da paciência; mesmo à custa do seu indecifrável medo”. De novo toma os microfones Carlos Dias mas como frontman dos Subway Riders, que informa o público que vão contar com a “Paulinha [Nozzari] na bateria”, já que, “o nosso baterista [Pedro Chau]; que foi informado sobre o concerto, decidiu não vir”. A primeira canção é “uma música que nunca fizemos”, versão kitsch de “I Can`t Get no Satisfaction”, desconstruída pelas castanholas do Calhau e a guitarra eléctrica de Victor Torpedo. A segunda é surf pop e narra a estória de um “Pato”: “Ninguém gosta de mim”, sou o “Calimero, o pato louco de que ninguém gostaaaa”; reverberam as cores de Malibu em Kodak de 1960; “ninguém gosta de mim”, a corneta do Calhau responde ao patinho feio. Carlos Dias convida a subir ao palco: “Jorri que nunca tocou connosco”; e promete: “Vamos tocar uma música que é o nosso maior sucesso”. “Mono/Stereo”, o hino do festival é apresentado através de cores negras, que progridem até se tornarem radiosas, fruto da intromissão visceral das guitarras eléctricas de Victor Torpedo e Calhau. Carlos Dias resume a prestação “foi mais uma grande actuação dos Subway Riders!”. É a vez do regresso de Gigas: “Vou ler um texto da minha autoria”: “uma muralha de inimigos”; “já me entendi melhor a mim próprio”; “insisti nessa torpe ideia de luta”. Das janelas do Salão Brazil, “vagas de modorra que fingem ser cor”; “prefiro um turbilhão de erros”. Mike Up é encabeçado por Mike, que se faz acompanhar pela sua professora de musicoterapia Paula Nozzari; ambos na bateria; uma dupla em que predomina o jogo rítmico que permite a Mike criar o seu espaço na métrica; há muita alegria contagiante em palco, uma confiança extrema que é fundamental para qualquer músico possa crescer. Na segunda música são acompanhados por Jorri, Victor Torpedo, Calhau; iniciam numa toada tristemente infantil para gradualmente desenharem um blues frágil. Gigas agradece ao “Carlos Dias por me continuar a convidar”. E declama: “Uma rima aleatória de aragem”; “que nos encolhe à escala”; “uma suprema solidão”; “a penumbra pelos acidentes anteriores”; “torna-nos quase só uma alma”; “sobres as dunas, sobre as ruas”; “e à noite erguemo-nos contra a escuridão; “portas para o futuro”; “a morte é certa e o que interessa é o desenho do túmulo”. Fim. Gigas lê um outro poema: “Isto de uma inacabada beleza”; “canhões em palavra”; “de tolos de almas”; “esplendor de palavras”; “meu íntimo muito claro”; “de ser Deus”; “ser morte”. “Isto de uma solidão fúnebre acompanhado por todos vós”. “Merda”. “Da liberdade de cada um”. “A fumar a vida como um rio”. “Sol sol da tarde de todos os dias da minha aventura”. Jorri e João Rui sobem ao palco e é este último que toma a palavra: “(Boa tarde). Somos os Ajigsaw”; acompanhados por Victor Torpedo, Calhau e Paula Nozzari. A narrativa da primeira canção é substancialmente negra; seguindo uma métrica de conto western. A segunda afunila a perspectiva da anterior, sublinhada pela guitarra épica de Victor Torpedo. O João Rui dirige-se directamente ao “Carlos [Dias] que pediu um concerto especial e decidimos não trazer a Tracy Vandal”, pura ironia; de seguida informa que é “o aniversário da Tracy”. A terceira tem uma pulsão predominantemente rock, em que se destaca a guitarra eléctrica de Victor Torpedo e o baixo eléctrico do Calhau; a letra é uma narrativa obscura. A quarta trilha uma similar perspectiva rock; mas os Ajigsaw revelam-se através de uma verve visceral, um muro de insustentável beleza. A quinta é “dedicada a esta cidade”; mergulham numa delicadeza rock, por vezes frágil; e em crescendo intrometem-na num Rock and Roll; até ao fim. A sexta alicerça-se numa melodia slow com timbre predominantemente acústico. A sétima é um slow dramático, “bed of roses”, que progridem em crescendo até ao epílogo. A oitava tem um compasso dois por dois que instala uma lentidão que é seguida pelos restantes instrumentos, e gradualmente torna-se em algo complexo, desembocando no rock. A nona é adornada pelo teclado de Jorri, a bateria tem uma cadência lenta, e a intensidade viril é sublinhada pela guitarra eléctrica de Victor Torpedo. João Rui informa os presentes de que “deveria estar aqui a Tracy Vandal; e vamos desejar-lhe um feliz aniversário!”. A última tem uma reverberação Rock and Roll, dona de uma tempestade perfeita, a roçar o épico. Regressa ao palco o Gigas que não deambula à procura de uma garrafa de “gin”, numa “prateleira baixa”, encontra-a e “olho para ela”, precisa de “tempo”, e não domina o “espaço”. Subitamente “ergo-me com toda a segurança” , a metáfora: “Como quem tem sede de tudo”. Dá um passo: “Para o outro lado/Para o outro lado/Para o outro lado”. Do lado de lá “tem prazer, dor”; “o outro lado tem música”. “Vamos ser felizes naquelas horas certas”. “O outro lado não tem nada”. O Gigas educadamente informa que o próximo poema “é uma cena hardcore apesar de ainda ser dia”; e tão pouco é um hino à procriação: “Eu guardo um filho na prateleira visível da minha sala de estar”; o emissor deseja “que o seu silêncio me ordene a minha vontade”; no reflexo “guardo um cabrão no espelho do W.C”, e, “que o seu silêncio grite essa beleza gritante de volta”. A depressão é a “beleza de todos os dias”; “de todos os dias”. O Gigas expira para o microfone uma brisa invernosa, “frio glacial que se abrem-tas portas”; um fluxo “de sombras que definem todas as solidões”; a mentira “voltas sempre em cada passo”. A conclusão: “E arrastamos a existência em confronto com um universo inteiro”. Surma é a quarta convidada musical do Mono/Stereo, tem à sua volta duas mesas com diversos instrumentos digitais, e à sua frente um microfone tapado por uma pano florido. É a partir da perífrase que se inicia a primeira canção: um loop intercala com o baixo e com o teclado de onde decorre a melodia; o loop dá lugar a uma batida synth, violinos são aspergidos e rematam um edifico com pináculos. O deserto é apresentado com tonalidades ténues; Surma canta para o microfone e é tão esotérico quanto o canto das tágides do Tejo. A segunda canção toma por princípio um ritmo synth em crescendo com a voz de Surma a invocar uma paisagem abstracta, e procura uma resposta na guitarra eléctrica, num solo neo-blues. Débora Umbelino apresenta-se: “Eu sou a Surma; queria agradecer ao Carlos [Dias] o convite”. A introversão como expressão prossegue na terceira canção com uns sintetizadores kitschs, que afagam a guitarra eléctrica tocada por Surma, a sua voz divaga levemente; o recrudescer do ritmo é pautado pelo solo da guitarra. A quarta é a “cover de uma das canções preferidas; espero que gostem”. Um quadro lúdico dominado pelos teclados com Surma a cantar como uma soprano digital. A quinta com um pendor sythn substancialmente pesado, com os sintetizadores a emoldura-la; a guitarra sola revirando o rock. A sexta, com um ritmo afro beat convida à dança, o baixo eléctrico de Surma a ser um pêndulo exótico; que é posteriormente trocado pela guitarra eléctrica; e finaliza-a com um baixo semi-distorcido, num clímax vívido. A sétima canção assenta num break beat, a voz processada de Surma é a de um robot, com uma de sintetizadores em crescendo, “uuuuu”, não iludindo a distorção, “uuu”. Na oitava recorre à introdução dos diversos elementos até que o quadro fica completo e fixo no ar, um avião irrompe das malhas de metal e sobrevoa-nos sem destino. Carlos Dias esclarece: “Termina assim a primeira parte do Mono/Stereo”.

Gigas sobe ao palco do Salão Brazil com o rosto pintado de azul, sob os focos claros parece uma máscara africana de uma tribo antropófaga. “Os dias da corja”; um insulto inofensivo: “A lucidez é uma puta”; “que me escova os dentes quando tenho preguiça”; “aguardente fria”; “de um piegas qualquer”; “asmático”. “Prefiro jogar à roleta russa”; “dói-me os dentes de tanto espalhafato”. Os primeiros convidados da noite são os Alien Church, um quarteto encabeçado por Marquis Cha Cha e Johnny Luv, com a particularidade da bateria ser ocupada por uma mulher baptizada de Domka Torga. A primeira canção tem uma secção rítmica encorpada em crescendo, com o teclado a mimetizar um órgão de igreja, entrecortados pela guitarra semi-distorcida de Johnny Luv; o seu dramatismo cromático é iluminado por velas a arder em nome de uma promessa. A segunda canção desenha uma melodia fúnebre, mas sem os lampejos descritivos da canção anterior. A terceira tem uma estrutura complexa, um slow fúnebre para baile de máscaras, “to be”. A quarta é um jogo intercalado dos instrumentos, marcado por um baixo eléctrico e conspurcado pela guitarra fantasmagórica de Johnny Luv. Na quinta encarnam uma combustão repentina de um corpo humano, “I`m fading away”. Na sexta exploram ritmos dançantes, “alienation”; e quase redundam num ska fúnebre. A sétima é uma trip num carro fúnebre onde por vezes reina a cacofonia, “out”; a viagem parece interminável. O Gigas regressa para se expressar: “Embriaguez”; “o meu bem”; “o meu tecto”; “já não tropeço”; “pela primeira vez”; “sem risos de crianças”; “tortura”; “feita ao nosso corpo e à nossa alma”. “Ciência”; “violência”. “Árvore do bem e do mal”. “E isto acaba”. “E isto acaba”. “Acaba com uma debandada de pernas”. “Como se fossem anjos de fogo e de neve”. “Breve vingança da embriaguez”. “Assiste-me outrooutroutrooutro”. “Eis o tempo dos assassinos”. Segundo poema revela um homem “que pendura o chapéu”, que se “desloca pelo soalho da casa tua casa”, onde “reinam por aí os demónios”. “Sonhos”. “Sonhos”. Sou “um silêncio inacabado dentro de ti”. “O nunca tem sempre razão”. “És livre”. A segunda banda da noite denomina-se de Wipeout Beat, três rapazes diante dos respectivos Cassios. A primeira canção é uma marcha fúnebre com laivos de uma tétrica música clássica, assumindo o minimalismo como estética. A segunda tem a voz de Carlos Dias: “She`s a bad girl”, com os teclados numa proporção kitsch rock, que encontra destaque na guitarra eléctrica do Calhau; este submete-a a um corrosivo Krautrock através de um o solo incendiário. A terceira tem um beat synth, com os teclados repetitivos a serem decompostos pela guitarra eléctrica do Calhau; formam gradualmente uma massa sonora pós-noise, mas devidamente contida num wall of sound dramático; “I was dead”. A quarta é uma canção de embalar para jovens, “yes is true I love you”; “I give you all”; Kraut Yé-Yé. A quinta é um slow synth blues: “I`m so lonely I could die”. A sexta tem uma progressão synth com a guitarra eléctrica de Calhau a reforçar a sua vertente raw; Miguel Padilha: “I`m so furious”; Carlos Dias em falseto: “I`m so furious”. A última canção tem um beat dançante que progride paralelamente à guitarra de Calhau revelando Kraut noise. Gigas regressa ao palco para diagnosticar: “Ele estava morto”; “nunca viveu”; “à procura da causa”; “nunca viu a causa”. “ouvimos o choro das crianças do gueto”; “morreu à procura da causa”; “o seu corpo foi encontrado por toda a cidade à procura da causa”. Eu “na Praça da República”, “ele morreu à procura da causa”, “nos subúrbios de uma overdose”, “ele nunca percebeu que era a causa”. No segundo poema Gigas é “um rio que trepa”: “Os vãos são penhascos iluminados por pinhais”; “das janelas cerradas”; “peças de roupa se esquecem dos corpos”; “a solidão” pertence a “esses que tomam veneno”, “os olhos semi-cerram os cansaços”, “as pessoas emanam-se por entre a ramagem”, “de morrer muito”, “de âncoras no mundo”, o meu “coração é uma alameda vazia”, eu vou “desistir de terra firme”, a voz perde-se ofegante de dor. Os últimos convidados da noite são os 800 Gondomar, um trio que se divide entre o baixo e a guitarra eléctrica e por uma bateria. A primeira canção tem como ponto a distorção dos instrumentos com uma bateria furiosa, servido num bloco tão violento quanto um murro no estômago. A segunda tem um balanço pop mas que é abocanhado pelos instrumentos de cordas de arame farpado, as vozes intercaladas e em eco como o chamamento de um Belzebu sexy. A terceira é um carburante para cadáveres de jovens narcisos, com variações rítmicas e vozes dantescas: “AAA”. A quarta é punk, com a voz do baterista a dominar: “Não sei”. O coro dos irmãos do mal respondem-lhe: “O que fazer?”. A quinta adiciona ao punk visceral uma vertente trash, com variações rítmicas dilacerantes, “não sei dançar”, e um solo da guitarra é impresso em papel assinado pelo terceiro Reich, o baixo faz-lhe uma vénia e “1-2-3” e explodem num fôlego adicionando a um solo épico da guitarra eléctrica. O baterista faz um apelo ao público: “Temos aí uma cassete, ajudem-nos a comer”. A sexta e a sétima são irmãs simiescas, corrosivas como ácido a arder. A oitava é uma “música espanhola”, jogam com o salero da Andaluzia mas numa perspectiva de escárnio, “solo se vive una vez”. A nona encontra o baterista a cantar por entre o público, uma figura do mundial de futebol colega do Maradona quando snifava coca e revelava o seu génio, executam um blues tão heterodoxo quanto irreverente. Sobe ao palco o Carlos Dias: “Acaba assim o Mono/Setero”, mas os 800 Gondomar “vão tocar uma rapidinha”.

Mono/Stereo- O Maior Pequeno Festival do Mundo, 21 de Maio, Salão Brazil @ Coimbra

sábado, 21 de maio de 2016

M. Train

Bruce Springsteen com a guitarra a eléctrica a tiracolo sobe ao Palco Mundo do Rock in Rio Lisboa, antes que se apaguem os ecrãs que debitam publicidade, está à sua frente uma plateia de milhares de pessoas espalhadas num parque temático dedicado ao consumo, aos quais se dirige-se: “Olá Lisboa! Olá Portugal!”. “Badlands” tem uma cadência predominante Rock and Roll, com destaque para as guitarras e para a bateria que arquitectam uma estrutura imponentemente raw. O solo da guitarra eléctrica de Bruce Springsteen é sublinhado pelo saxofone; a E. Street Band ganha uma dimensão épica. Bruce Springsteen ergue os braços e despoleta outros tantos à sua frente, “OOOO”, “badlands”; durante a pausa a multidão ovaciona histericamente Bruce Springsteen e a E. Street Band; e determinam um fim rápido e simultaneamente agressivo.“No Surrender” é iniciada após a contagem crescente de Bruce Springsteen: “1-2-3-4”; domina uma dinâmica rock com o piano a remeter para o Rock and Roll, “close your eyes and follow your dreams down”. A seguir ao break da bateria Bruce Springsteen determina: “Portugal out of the streets”; as guitarras acrescentam uma urgência festiva à canção sobre as quais sola o saxofone, com as guitarras rematando-a visceralmente. Em “My Love Will Not Let You Down” sobressai uma tonalidade preponderantemente rock mas adocicada pelo piano Pop, a voz de Bruce Springsteen canta que: “I just can`t sleep”. “Just won`t keep”; “away”; solo do saxofone; “at night I walk the streets looking for romance”. Solo agudíssimo por parte do Bruce Springsteen; e os teclados Pop destacam-se da malha das guitarras eléctricas; e a bateria inscreve um solo épico; quando a finalizam recebem estridentes aplausos. Bruce Springsteen dá início ao quarto tema da noite “Cover Me” com a contagem: “1-2-3-4”. A E. Street Band incorre num blues mesclado com o Rock and Roll, “come on baby”, “cover me”, o baixo eléctrico ganha destaque sublinhando a perspectiva blues enunciada anteriormente, “cover me”. Bruce Springsteen sola numa vertente rock e obtém a resposta do seu parceiro nuns acordes blues. “Cover me baby”. Sobre a progressão Rock and Roll Bruce Sprigsteen sola; sentenciam um fim que é nada mais nada menos que épico. Estas quatro canções foram executadas em regime de quase non stop com o objectivo de cilindrar o ouvinte. Depois de uma pausa prolongada Bruce Springsteen e a E. Street Band introduzem os acordes da “Darkness on the Edge of Town”, que são desenhados pela parcimónia do piano romântico mas que é perturbado pelas guitarras semi-distorcidas. “Now I hear she's got a house up in Fairview”. Associam-se a um negrume que prenúncia dramatismo: “And tell her, there's a darkness on the edge of town/ Everybody's got a secret, Sonny”. O Bruce Springsteen sola a sua guitarra eléctrica como se fosse uma voz feminina, a bateria marca o compasso do drama, “where no one asks any questions”, o piano sobrevém a sublinhar na melodia o seu carácter de tragédia americana. A camisa e o colete negro de Bruce Springsteen estão suados mas aparentemente não está cansado e questiona o público: “Allwright! Are you hungry Portugal?”, e recebe uma resposta desordenada por parte dos portugueses. Bruce Springsteen sem a guitarra eléctrica empunha a microfone e a E. Street Band endossa os acordes de “Hungry Heart”, e o público entoa os versos: “Everybody's got a hungry heart/ Everybody's got a hungry heart”. Bruce Sprinsgteen incita-os a continuarem, “common!”, e desafia-os a cantar mais alto, “I can´t hear you!”. “Everybody's got a hungry heart/ Everybody's got a hungry heart”. A E. Street Band progressivamente torna-se cada vez mais presente, com destaque para o piano que representa a melodia alegre, subsequentemente sola o saxofone e Bruce Springsteen canta: “Got a wife and kids in Baltimore, Jack”, desloca-se pela passadeira e canta junto ao povo, “hungry heart”; o público com Bruce Springsteen: “Everybody's got a hungry heart”, uma guitarra eléctrica sola-rock sobre as notas melodiosas do piano. O saxofonista sola no palco e segue Bruce Springsteen: “Everybody's got a hungry heart”; é a vez de ressoar o Hammond, coro: “Heart, heart”… Já “The Promised Land” tem um violino que não se deixa esvanecer às mãos das guitarras rock, “driving cross the Waynesboro county line”; há uma progressão que lhe incute dramatismo e o coro responde a Bruce Springsteen: “Promise land”. “I get up every morning and go to work each day”. “Take a knife and cut this pain from my heart”. A pausa permite que a bateria surja isolada num lampejo épico, “promise land”, seguido pelo teclado, o saxofone ressoa enquanto persegue o Bruce Springsteen na passadeira, e a sua harmónica intromete-se na canção: “Blow away the dreams that break your heart”; as luzes brancas iluminam a multidão de braços a baloiçar ao ritmo rock; “I believe in a promised land...”; que é finalizada epicamente. “Out in the Street” decorre de uma bateria rock onde os restantes instrumentos se encaixam, exceptuando o dissidente e omnipresente piano. Bruce Springsteen tem uma voz rouca que canta: “Put on your best dress baby”; a progressão que a E. Street Band enceta é predominantemente rock. “When I'm out in the street”. “When I'm out in the street”. Coro: “OOO”. Público: “OOOO”. Bruce Springsteen: “Out of the streets!”. Público: “OOO”. Bruce Sprignsteen: “Yeah! Yeah!”. “When I'm out in the street, girl”. A violinista canta: “Out of the street”. Público: “OOOO”. Fazem um intervalo prolongado antes de tocarem “Downbound Train”. Bruce Springsteen domina a guitarra eléctrica semi-distorcida que é a guia da E. Street Band, seguida por uma bateria assumidamente pop, “our love went bad, times got hard”. “Don't you feel like you're a rider on a downbound train?”. As cores que emanam da E. Street Band são inconfessadamente Pop, “she packed her bags left me behind”; o Hammond adensa a melodia pontualmente; “last night I heard your voice”. Bruce Springsteen dolorosamente: “The room was dark, our bed was empty”. “Rain”. A canção seguinte “I'm on Fire” tem por base um groove do órgão em loop, Bruce Springsteen está fixo com o microfone no tripé e narra a vida de uma: “Hey, little girl, is your daddy home?/ Did he go and leave you all alone?/ I got a bad desire/ Oh-oh-oh, I'm on fire”. O baixo eléctrico destaca-se suavemente do groove dando-lhe profundidade e dessa forma institui a tridimensionalidade: “Tell me now, baby, is he good to you?/ And can he do to you the things that I do? Oh, no/ I can take you higher/ Oh-oh-oh, I'm on fire, I'm on fire”. O teclado serpenteia melodicamente sobre o groove repleto de uma contenção hipnótica: “Sometimes it's like someone took a knife, baby/ Edgy and dull/ And cut a six-inch valley/ Through the middle of my soul”. O psicadelismo enuncia-se através do ondular da melodia negra, a sua voz confessa: “Only you can cool my desire/ Oh-oh-oh, I'm on fire/ Oh-oh-oh, I'm on fire/ Oh-oh-oh, I'm on fire”. A “Atlantic City” é dominada pela guitarra eléctrica de Bruce Springsteen, em redor da qual gravita a E. Street Band numa cadência lenta; “in Philly last night”; “boys can do”; “the D.A.”; “promenade”; “put your makeup on fix your hair up pretty and meet me tonight in Atlantic City”; sobre a melodia tristonha intromete-se o violino da violonista que nada acrescenta de positivo à canção. “Well I got a job and tried to put my money away”. “OOOO”. Bruce Springsteen introduz o “1-2-3-4”, e o ritmo passa do slow rock romântico para um marcial, “meet me tonight in Atlantic City”, com a adição do violino incapaz de lhe introduzir o dramatismo, o crescendo rítmico enuncia o seu fim. “Darlington County” tem uma introdução country rock, as guitarras semi-distorcidas subtraem parcialmente o country e realçam o rock, “driving in to Darlington City”; e antes do refrão: “Sha la la, sha la la la la” com direito a coro: “Sha la la, sha la la la la”, resvalam para o pub rock; “hey little girl, standing on the corner”. Bruce Springsteen encontra-se a cantar junto ao público, oferecendo à canção um epíteto festivo; “our pa's each own one of the World Trade Centers”; “Sha la la, sha la la la la”; coro: “Sha la la, sha la la la la”. Na “Working on the Highway” sobrevém o pressuposto rítmico de uma batida alegre, que encontra ressonância na guitarra acústica do Bruce Springsteen: “Guys fresh out of work”; sobressai o country; “some looking to get hurt”. Há um crescendo em que o todo ganha dimensão sónica e é maximizado o country: “Working on the highway, laying down the blacktop”; e o violino ancora-a numa paisagem redundantemente country. “Johnny 99” é apresentada através dos acordes repetitivos da guitarra eléctrica de Bruce Springsteen que indicam que estamos perante uma canção rock, a sua voz é rude: “He got a gun shot a night clerk now they call 'm Johnny 99”. A E. Street Band emoldura os seus acordes: o piano é o representante de um tipificado Rock and Roll, assim como o violino ou a slide guitar, mas o saxofone é divinamente refrescante. Pausa. Sobre o batuque da bateria Bruce Sprigsteen canta: “Away”. “The bank was holdin' my mortgage and they was takin' my house away”. A harmónica de Bruce Springsteen introduz “The River”, toca lentamente a guitarra acústica e canta premeditadamente: “I come from down in the valley”; “when she was just seventeen”; a E. Street Band assume uma balada de tonalidades tristonhas; “We'd go down to the river”. “And for my nineteenth birthday I got a union card and a wedding coat”. Bruce Springsteen reintroduz a harmónica e tem à sua frente milhares de telemóveis ondulantes acompanhando-o no seu drama negro. O coro: “OOO down to the river”. Bruce Sprignsteen: “OOOO”. A E. Street Band debita mais aceleradamente a canção na expectativa de que o público responda mais assertivamente ao demando do líder. “OOO”. A canção que Bruce Springsteen escreveu com a Patti Smith “Because the Night”; tem um serpentear melódico instituído pelo piano sobre o qual Bruce Springsteen canta: “Take me now baby here as I am/ Pull me close, try and understand”; e a E. Street Band intromete-se em vão ao tentar inculcar-lhe um ceptro épico, a poesia perde-se no cântico rock: “Come on now try and understand/ The way I feel when I'm in your hands”; por instantes demonstram uma urgência de salutar: “They can't hurt you now/ Can't hurt you now, can't hurt you now”. E o refrão é cantado com raiva: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”; parece que a E. Street Band não acerta com o compasso e a melodia perde-se num frágil contorno. Redimem-se ao se apropriarem de uma densidade dramática, “the way I feel”; “can´t hurt you now”. “Because the night belong to lovers”. Bruce Springsteen insere um solo magistral que oferece à canção uma vertigem impossível de ignorar; é seguido pelo saxofone que sublinha o seu carácter épico; e o guitarrista da cartola sola enquanto rodopia e as luzes brilham e apagam-se e as palmas eclodem. Antes da canção “Spirit in the Night”, Bruce Springsteen encarna num missionário americano: “Can you feel the spirit now?”, resposta imediata da multidão: “YEAH!”. “Can you feel the spirit now?”. “YEAH!”. Bruce Springsteen levanta os braços e abana as mãos para que o público sinta a sua alma e baptiza-os com a cruz do Rock and Roll. “1-2-3-4”, o que parece um espiritual negro transforma-se num Rock and Roll, com o saxofone a solar de forma suprema; após a pausa domina o blues; os braços do público dançam aleatoriamente. “All duded up for Saturday night”. “I got a bottle of rosé so let's try it”. “And I'll take you all out to where the gypsy angels go”. “And they dance like spirits in the night (all night), in the night (all night)”. Há uma festividade nos acordes do refrão que sublinham a sua preposição soul: “Spirits in the night (all night), in the night (all night)”. A “Lonesome Day” é dominada pelo violino e marcada pelo compasso rock da bateria; a E. Street Band dá continuidade em crescendo à melodia que emana do violino e inscrevem uma festividade continuamente épica. “Everything I needed to know about you”. “But I didn't really know that much”. Após o: “If I can just get through this lonesome day”, a música ganha um fim libertário que contagia o público. “It's allright? It's allright? It's allright”. A “The Rising” tem o Hammond a repetir uns acordes tristonhos que são repetidos pelo violino e que em crescendo enunciam uma canção alegre; a batida da bateria tem o poder de inserir-lhe um pulsar contido: “Come on up for the rising/ Com on up, lay your hands in mine”. Coro: “Come on up for the rising tonight”. E ganham uma dimensão hiperbólica de pop-rock, “left the house this morning”, erguem-se os braços da multidão em comunhão com a E. Street Band. “Thunder Road” é iniciada pela harmónica de Bruce Springsteen e o piano ressalta uma melodia triste: “The screen door slams/ Mary's dress waves/ Like a vision she dances across the porch/ As the radio plays”. A balada ganha um contorno de drama com o acompanhamento do violino: “Darling you know just what I'm here for”; o público atento à sua lamúria entoa com Bruce Springsteen: “So you're scared and you're thinking/ That maybe we ain't that young anymore”. Somente Bruce Springsteen: “Oh and that's alright with me”. A bateria retira-a do seu reduto negro e remete-a para uma festividade manchada por um bucolismo lacónico, acompanha-a a E. Street Band erguendo uma tocha do Rock and Roll, e o palco transforma-se num quadro monocromático azul e ressaltam os solos das guitarras e do piano e do saxofone que sobressaem de forma épica. Bruce Springsteen agradece as palmas: “Thank you! Obrigado! Obrigado! Obrigado Lisboa! Thank you for asking us back”. A canção “Born in the U.S.A.” tem o Hammond como elemento que propaga a melodia que é marcada por uma batida espaçada: “Born down in a dead man's town/ The first kick I took was when I hit the ground/ You end up like a dog that's been beat too much/ Till you spend half your life just covering up”; a melodia do Hammond com a complementaridade da bateria corresponde ao refrão: “Born in the U.S.A./ I was born in the U.S.A./ I was born in the U.S.A./ Born in the U.S.A.”. A E. Street Band aumenta o seu ritmo e o que parecia ser apenas uma fatalidade da natureza humana, ganha uma dimensão de hino rock para os americanos: “Got in a little hometown jam/ So they put a rifle in my hand/ Sent me off to a foreign land/ To go and kill the yellow man”. Infelizmente das colunas sai uma constante distorção que compromete severamente a audição para quem se encontra a escassos metros do palco (como é o meu caso), que não é fruto de um problema técnico de algum dos músicos mas tem origem numa deficiência grave do sistema de som. Quando é corrigido Bruce Springsteen canta heroicamente: “I had a brother at Khe Sahn fighting off the Viet Cong/ They're still there, he's all gone/ He had a woman he loved in Saigon/ I got a picture of him in her arms now”. O público delira com a canção, levanta os braços e canta: “Born in the U.S.A./ I was born in the U.S.A.”. A vigésima segunda canção “Born to Run” é iniciada com um break da bateria, a heroicidade é inserida pelo piano que se impõe como denominador comum da melodia; o crescente é consideravelmente rápido com as guitarras a inscreverem-na no Rock and Roll. “In the day we sweat it out on the streets of a runaway American dream/ At night we ride through the mansions of glory in suicide machines”, o piano reintroduz os acordes heróicos, “sprung from cages out on highway 9”. O palco do Rock In Rio Lisboa incendeia-se quando a E. Street Band eleva a canção a uma alegria contagiante. “We gotta get out while we're young/ Cause tramps like us, baby we were born to run”. “OOO”. Por sua vez “Glory Days” tem as quatro guitarras (três eléctricas e uma acústica) associadas a uma batida sustenida; e a E. Street Band exulta uma gramática Rock and Roll para ser consumida num estádio de futebol; destaca-se o Hammond que acompanha a multidão a entoar o refrão. “I had a friend was a big baseball player”. “Saw him the other night at this roadside bar”. “But all he kept talking about was”. A E. Street Band sintetiza epicamente os acordes festivos: “Glory days well they'll pass you by/ Glory days in the wink of a young girl's eye/ Glory days, glory days”. Na vigésima quarta canção “Dancing in the Dark” ressalta o violino que com a E. Street Band edifica uma composição extraordinariamente eloquente; os acordes são rápidos e assertivos como se fossem uma locomotiva de vidro em chamas. “I get up in the evening/ And I ain't got nothing to say/ I come home in the morning/ I go to bed feeling the same way/ I ain't nothing but tired/ Man I'm just tired and bored with myself/ Hey there baby, I could use just a little help”. E no refrão o rock tem um ritmo dançante: “You can't start a fire/ You can't start a fire without a spark/ This gun's for hire/ Even if we're just dancing in the dark”. O saxofonista acompanha Bruce Springsteen pela passadeira e sola epicamente, enquanto a multidão bate palmas e dança; ao susterem o ritmo retomam os acordes magnânimes da canção. Antes de “Tenth Avenue Freeze-Out”; Bruce Springsteen dirige-se à multidão: “Lisboa!”, e esta responde-lhe: “EEEEEAA”. “Lisboa”. “1-2-3-4”. A melodia do piano é o fio condutor da canção que se sobrepõe ao ritmo que é meramente uma testemunha; “let`s go!”. Bruce Springsteen encontra-se no fosso que o separa do público, enquanto a E. Street Band inscreve um blues rock: “Teardrops on the city”. Coro: “Tenth Avenue freeze-out”. O ritmo que impera é pausado com requebros rock, quando a E. Street Band o acentua como que destroem a harmonia; e o piano sola, “oh, oh yeah,! Oh yeah!”. “Obrigado”. A “Twist and Shout” dos Beatles é-lhe reforçado o seu carácter melódico e rítmico, o público delira com o decalque; o palco emana cores claras que acentuam a sonoridade da década de sessenta do século XX em que inicailmente os Beatles delapidavam o património do rock americano. Bruce Springsteen acompanhado pelo saxofone a solar desloca-se para junto do público que entra em êxtase com a sua presença de lenda do Rock and Roll. Bruce Springsteen apresenta os músicos da E. Street Band e após a ovação incorrem na “La Bamba”, uma música popular mexicana da qual fazem uma versão popularizada por Ritchey Valens, “Lisboa you say..”. Bruce Springsteen assume-se um mito através da: “The legendary E. Street Band”, que por fim erguem os instrumentos na boca de cena, “thank you! We love you! Thank you Rock in Rio!”, abandonam o palco. Ainda sob as palmas e os assobios surge Bruce Springsteen com uma guitarra acústica, é iluminado por um foco branco que o torna minúsculo e gigante em simultâneo, informa que vai tocar: “One more for Lisboa”. A “This Hard Land” tem uma harmónica e uma guitarra que introduzem uma imagética rural, e a voz de Bruce Springsteen questiona: “Well, hey there mister, can you tell me what happened to the seeds I've sown?”. A intimidade que decorre da sua voz congrega as atenções do vulgo, como se fosse um cantor country foragido da pena de morte: “Where they fall from, from my hand back into the dirt of this hard land”, “fields”; e a harmónica transporta-nos para o universo dos agrilhoados ao álcool e às drogas que cantavam canções de embalar a musas que se prostituíam para ganhar a vida.

“The River”, Bruce Springsteen and the E. Street Band, 19 de Maio, Rock in Rio Lisboa.

In loving memory of Prince.