terça-feira, 7 de outubro de 2014

Peter Pan

Há um ecrã branco que cobre a boca de cena do palco do Coliseu dos Recreios sobre o qual são emitidas samples de imagens de figuras icónicas como por exemplo: Brian Eno; Nico; Siouxsie and the Banshees. Uma actriz reflecte-se no espelho e sublinha: “Face to face with the person you really are”. Uma declamadora entoa melancolicamente: “Waiting to die”. Nas ruas de Londres há inúmeros motins contra a “Witch” , “The Iron Lady”, “Scum”, “Margaret dead”. Um activista dos direitos dos afro-americanos discursa longamente. Surge um travesti que faz rir a plateia que se encontra a vê-lo no estúdio televisivo. Um cantor da chanson francaise canta e dança à volta do microfone como se fosse um chulo a suplicar a uma mulher que o ame perdidamente. Allen Ginsberg. O toureiro foge de um touro numa praça de touros latina ao som de “The Bullfighter Dies” incluído no último Lp “World Peace Is None of Your Business” de Morrissey. Os marginais New York Dolls emitem um punk kitsch e perguntam: “Are you looking for a kiss?”. Uma actriz diz com uma convicção insegura: “I`m a star”. O pano é enrolado de baixo para cima e as colunas emitem uma ópera, surge Morrissey com os seus cinco rapazes que envergam t-shirts com a inscrição “Fuck Harvest”, formam um retângulo no centro do palco como que a comungar de uma espiritualidade zen, deslocam-se em direção aos respetivos lugares. Morrissey em discurso directo: “Good”. “In a World with unprecedented violence”. As luzes claras iluminam as calças e a sua camisa branca com uns botões abertos no peito de onde salpicam uns pêlos onde baloiça uma medalha de prata. As guitarras pronunciam-se distorcidamente sobre uma métrica Pop, que consignam a “Queen is Dead” uma negritude de chá dançante em redor de um velório. “I say Charles don't you ever crave”, a voz de Morrissey é delicada mas incisiva, “Dressed in your Mother's bridal veil?”; o público é um coro negro que lhe responde: “OOO”. Morrissey: “I don't bless them”. O público ecoa: “OOO”. A densidade das guitarras é constante, intercaladas pela pontuação sustenida da bateria. Morrissey e o público delicadamente reclamam: “OOOO”. Morrissey: “Palace”. O ritmo altera-se para um Rock and Roll incomplacente e Morrissey empunha a sua mão aos fãs da primeira fila e um conjunto de palmas de mãos convidam o cantor a serem acariciadas. A progressão que encetam exorciza uma pigmentação presumivelmente negra para abater um aborto que é potencialmente um hominívoro que enverga uma coroa. O recrudescer da distorção emana uma carga de antidepressivos que colocam o paciente num universo onde há um bem-estar artificial, “Life is very long, when you're lonely”. Morrissey agradece a ovação dos portugueses: “Gracias”. A métrica que domina “Speedway” é sincopada e visceral por comprometer e subtrair prazer da dor, entrecortada pelas guitarras eléctricas em constante alternância, pontuada por um solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias. A voz de Morrissey: “Keeping me grounded”, procura sobressair da massa suja e delinquente mas abandona essa pretensão e isola-se da dinâmica distorcida em que se inscrevem os Fuck Harvest: Jesse Tobias; Boz Boorer; Solomon Walker; Matt Walker; Gustavo Manzur. “Can you see it in your heart?”. Após a pausa “Speedway” ganha uma outra máscara em que a distorção é contaminada por uns arrufos quentes do teclado de Gustavo Manzur e Morrissey abandona o seu isolamento e transfere do seu peito para o microfone uma angústia recorrente: “Keeping me grounded”. Boz Boorer desloca-se para a frente do público e descarrega a distorção que o transforma num homem máquina. “They weren't lies”. A bateria de Matt Walker transforma a canção num somatório das outras duas partes e a violência é agressiva mas contida sobre a qual surge um canto de pássaro tolhido por um eterno desencanto: “I've always been true to you, in my own strange way, I've always been true to you, in my own sick way, I'll always stay true to you”. A terceira canção “Certain People I Know” é iniciada pela bateria, e a guitarra eléctrica de Jesse Tobias introduz um riff distorcido. Boz Boorer com a guitarra acústica insere os acordes que sustentam a voz de Morrissey que é incapaz de segui-lo e inevitavelmente falha o primeiro verso de “Certain People I Know”. O poeta toma a iniciativa de parar os Fuck Harvest com um directo: “Wait”, enquanto faz saltar sobre o palco o cabo do seu microfone como se fosse o chicote de um domador de leões. “Certain People I Know” é dominada por um riff distorcido de Jesse Tobias sobre uma trepidação Rock, Morrissey através de uma voz grave canta: “And when I swing it”. A métrica afasta-se gradualmente do Rock para se imiscuir na Pop temperada com uma negritude diáfana. Apesar do verso ser profundamente irónico: “I trust the views of, certain people I know”, Morrissey ignora essa figura de estilo e canta friamente sobre a densidade cromática emanada pelos Fuck Harvest. O solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias sobrepõe-se agressivamente à melodia que destila veneno, a pausa apaga as luzes e quando surgem as brancas, “I do believe it's terrible”. “OOOO”. “OOOO”. Finalmente a canção é alienada por uma convulsão imposta pelo riff distorcido da guitarra eléctrica de Jesse Tobias seguido pelo do baixo de Solomon Walker e da bateria de Matt Walker. Palmas. Morrissey educadamente agradece aos estrangeiros que viajaram para o ver em Lisboa: “Obrigado”. “The Bullfighter Dies” é iniciada pela trompete de Boz Boorer e o seu timbre aproxima-se do usado nas corridas de touros que corresponde à “voz” do Inteligente que determina o início e o fim da lide. O acordeão de Gustavo Manzur fornece-lhe uma perspectiva de ruralidade da Mancha onde os animais são alimentados em nome do capitalismo. Associado a estes está o tempo da bateria de Matt Walker que é profundamente Pop, quando desaparece o acordeão sobressai a guitarra acústica de Boz Boorer a explorar um flamenco apátrida por ser profundamente kitsch. Morrissey é um estranho militante anti-tourada pois canta alegremente: “Hooray, hooray, The bullfighter dies, Hooray, hooray, The bullfighter dies, And nobody cries”. A acrescentar a esta equação Pop associada à World Music surge o solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias a desferir uma cutilada que tem a pretensão máxima de incorporar na canção a imagem do toureiro a ser colhido pela besta que luta pela vida. “Kiss Me a Lot” tem como principio o riff incidental de Jesse Tobias, insurgem-se trompetas heroicas que assinalam o surgimento de um exército composto por soldados britânicos que marcham em direção às Maldivas, quando desparecem levam consigo o contingente militar. O ritmo é espaçado e sustenta a lírica romântica que Morrissey sublinha: “I just care that you're there, and you will”. O crescendo da batida Pop instala uma perturbante negritude e quando surge o refrão: “Kiss me a lot, kiss me all over the place” há uma variação na métrica que relegam a canção para uma exactidão Pop monástica. A doçura de um convite que não é destituído de uma infantilidade desarmante: “Your mammy's backyard”. Por instantes os Fuck Harvest segregam uma pigmentação inquestionavelmente kitsch, liderada pela guitarra de Boz Boorer a reintroduzir o flamenco no concerto de Morrissey em Lisboa. As súplicas de Morrissey são ordens: “Kiss me all over and then when you've kissed me”. A vertigem é instalada pela guitarra solo de Jesse Tobias devidamente apoiada num crescendo sub-repticiamente Rock e unidos aportam a um épico fim. “I`m Throwing My Arms Around Paris” é a canção de amor sobre Paris para onde vogam as sereias para pôr um cadeado à voragem do Sena. A melodia adocicada é dominada pelo teclado de Gustavo Manzur conjugada com a guitarra acústica de Boz Boorer, o ritmo é uma cadência espaçada que estabelece a ligação entre o baixo eléctrico de Solomon Walker e a guitarra eléctrica de Jesse Tobias. Sobre os quais a voz de Morrissey transcreve uma entoação quase infantil de tão inocente: “In the absence of your love, in the absence of human touch”, a solidão é um ilhéu perdido na imensidão de um mar desfeito numa tempestade. “I'm throwing my arms around, around Paris because only stone and steel accept my love”. A canção é tolhida pelo solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias que se imiscui com a precisão de um conto infantil que induz o sono às crianças. “I'm throwing my arms around Paris because nobody wants my love”, o clarinete de Boz Boorer responde à tragédia do orador com solenidade e os Fuck Harvest progridem em crescendo. “Nobody needs my love”, as palmas do público acompanham as do tímido Morrissey que parece sentir cada uma delas como beijos que o resgatam da eterna clausura. Enquanto os Fuck Harvest gradualmente a finalizam Morrissey declara-se aos presentes: “I love you”. Palmas. “Thank you” e desenha uma vénia. A “World Peace is none of your Business” tem uma programação rítmica que é manchada pelo ritmo marcial do bombo, o público acompanha-o com palmas festivas. Morrissey entoa o refrão: “World peace is none of your business”. O solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias e o sombreado negro do teclado de Gustavo Manzur impõem à melodia Pop uma progressão para um espaço negro na escuridão. Morrissey canta como uma criança que usa a ironia para fugir à ordem estabelecida: “Oh, you poor little fool, oh, you fool”. Posteriormente ao refrão desfere: “Each time you vote you support the process”, após a pausa os Fuck Harvest sustêm em crescendo a melodia negra rebarbarizada no solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias. Pausa. “OOO”. “So many people in pain”. O público responde com palmas que acompanham a dramaturgia Pop, Jesse Tobias desloca-se à boca de cena e sobre o crescendo rejeita um solo febril da sua guitarra eléctrica. “No more, you poor little fool” a gramática tétrica da bateria de Matt Walker introduz laivos fúnebres. Morrissey com pronúncia espanhola: “Paz mundial”, as palmas do público perseguem o ritmo das de Morrissey. A natureza de “Istanbul” está infectada pelo baixo eléctrico distorcido de Solomon Walker e nesta premissa enquadra-se a bateria de Matt Walker num expurgar de dor constante, parece que os outros três elementos dos Fuck Harvest são meros figurantes mas na verdade procuram emoldurar a sangria da secção rítmica sem a pretender ferir. “When he was born I was too young” o narrador conta a história de um “father searches for the son” em “Istanbul”. O determinismo do minimalismo Pop é evidenciado através da exorbitação de um negrume espesso. Quando as luzes se apagam, surgem focos vermelhos que prenunciam uma tragédia anunciada nos jornais como exploração sexual de menores para deleite de burgueses tarados. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias introduz um solo distorcido oferecendo a “Instanbul” uma volumetria punk com fronteiras de arame farpado que rasga a inteligência da razão. Palmas. “Thank you”. “Neal Cassady Drops Dead” é alicerçada num ritmo curto sincopado que serve preferencialmente para que Morrissey cante numa métrica beat generation: “Bill Cassidy drops dead” ; “and Allen Ginsberg” ; “down in a barn” ; “Everyone has babies, babies full of rabies, rabies full of scabies, Scarlet has a fever”. “Junior full of gangrene, mine is melanoma”. Quando a bateria de Matt Walker quebra o ritmo sincopado, o verso: “Get that thing away from me” é cantado espaçadamente e após o solo sustenido de Jesse Tobias, Morrissey questiona-se: “Get that thing away from me, victim, or life’s adventurer, which of the two are you?”, a guitarra eléctrica de Jesse Tobias responde-lhe através de notas agudas. Morrissey vira as costas ao público e Booz Boorer através da guitarra acústica introduz o exotismo do flamenco, a progressão que encetam os Fuck Harvest é a condensação de uma violência contida como a força do contra fogo. Morrissey oferece a sua mão esquerda aos esfomeados da primeira fila e canta: “Lálálálá”. Palmas. “Obrigado”. Durante a pausa para a próxima canção designada de “Earth is the Lonelist Palnet on Earth”, Morrissey desloca-se para a direita onde se encontra o pianista e questiona-o em castelhano: “Nombre? Nombre?” e a resposta é dada nervosamente: “Gustavo Manzur”. O universo espanhol é descriminado pela guitarra acústica de Boz Boorer e o ritmo Pop é devidamente exonerado pela bateria de Matt Walker e Morrissey canta para entes distantes: “Day after day you say ´one day, one day`” e não se descobre na sala dos espelhos: “and you've got the wrong face”, “and humans are not really very humane”. A inversão do ritmo Pop para um outro mais agressivo que com a inclusão da guitarra eléctrica de Jesse Tobias impõem a transgressão Rock. “Earth is the loneliest planet of all”. “Time after time you say ´next time, next time`”. O solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias aumenta a intencionalidade dos versos de Morrissey e a guitarra acústica embriagada de Boz Boorer surge como se fosse um bombardeiro a despejar bombas sobre “La Guernica” de Pablo Picasso. Palmas. Uma jovem grita da plateia: “Smiths!”. Morrissey responde-lhe através do microfone enquanto se afasta da boca de cena do palco: “Why do you come here?”. No piano Gustavo Manzur dedilha os acordes de “Trouble Loves Me”, inicialmente são delicados e a espaços forte, o ritmo da bateria de Matt Walker é subtil e Morrissey canta uma preze numa cela que o aprisiona à invulgaridade: “Trouble loves me, trouble needs me”. O baixo eléctrico de Solomon Walker não se insurge contra o slow, sobre o qual Morrissey se retrata: “So, console me, otherwise, hold me”. O bombo é um coração a pulsar como que tolhido por um súbito amor correspondido: “Trouble loves me”. A guitarra acústica de Boz Boorer revela um despertar de cores que impregnam a melodia dormente de uma sóbria festividade, “Otherwise, hold me”. Os Fuck Harvest reviram os olhos e instituem o Rock e consequentemente suprimem a balada melancólica e com a conivência de Morrissey que eleva a voz: “See the fool I'll be”, são cúmplices ao realçar um organismo que emerge como negras lavaredas. Reinstala-se o ritmo tépido com as harmonias delineadas pelo piano de Gustavo Manzur, o solo da guitarra eléctrica de Jesse Tobias é um uivo solitário. “The wrong arms”. Após a pausa os Fuck Harvest introduzem a melodia Pop e Morrissey encanta: “Trouble loves me”, a progressão que encetam é um contingente delicodoce, “Otherwise, kill me”, instala-se uma contínua sublimação de um tónico que ora é um veneno ora o seu antídoto. “Can't get you out of my head” e os Fuck Harvest emancipam uma ordem com origem no épico. "Kick The Bride Down The Aisle" é apresentada através de um piano à laia de um órgão instalado numa igreja gótica flamejante, os sons metálicos dos pratos circunscrevem-lhe uma luminosidade corroborada pela guitarra acústica de Boz Boorer e pela eléctrica de Jesse Tobias e por fim o baixo eléctrico de Solomon Walker remata-a com uma tensão divinamente Pop. “I know so much more than I'm willing to say”. As propriedades que emanam os Fuck Harvest é uma candura que não ferra a pele, antes transferem um registo em que a lentidão é circuncisada pela guitarra eléctrica de Jesse Tobias. A denúncia: “She just wants a slave”. Morrissey dança numa contorção do tronco e lança os braços para trás num esboço de ave do Michelangelo desorientada no céu. Fisicamente Morrissey é alto e robusto, mas a sua gestualidade e o seu canto ainda remetem para o poeta enquanto jovem bombista dos Smiths. A camisa branca que Morrissey enverga está suada algo que confere ao seu peito felpudo uma masculinidade sexy. “One of Our Own” tem um início dominado pela guitarra áspera de Jesse Tobias associada a um rítmo contido de Solomon Walker resultando num harmónico opaco, aligeirado pela delicadeza da guitarra acústica de Boz Boorer. Morrissey canta romanticamente: “He died saving my life”, a cadência da Pop ganha tonalidades garridas de tão escuras. “Give me the gun, I love you”. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias impregna “One of Our Own” de uma incompreensível violência e o crescendo não se sobrepõe à dor de Morrissey: “Now I don't want to know tomorrow”. A guitarra eléctrica é irrepreensível: “I love you”. O solo distorcido da guitarra de Jesse Tobias é abstracto: “OOO tomorrow”. Jesse Tobias destaca-se da melodia dark Pop como fissuras a crescerem pelas vísceras adentro: “NOOO”. Solo de Jesse Tobias: “NOOO”. Quando surge a guitarra acústica de Boz Boorer é para remeter a décima terceira canção para um digno fim. Palmas. “Gracias”. Enquando executam “I`m Not a Man” as luzes apagam-se e são emitidos sons fantasmagóricos, a percussão embala um anjo puti num chapéu de palha a arder, “Cold hand”, a guitarra eléctrica de Jesse Tobias remete para um universo tétrico, “Well if this is what it takes to describe”, através da negação de “I`m not a man” Morrissey assume-se um Homem. A melodia é uma substância carregada de um kitsch pandémico não há antidoto numa drug store nem tão pouco na companhia de caixões usados. “Casanova”. O bombo de Matt Walker insurge-se pontuando-a com um repente indolente e as palmas dos portugueses ecoam, “I`m not a man, I'm something much bigger and better than”, palmas, a guitarra eléctrica distorcida de Jesse Tobias impõe-se numa métrica incidental, “Workaholic”. Os Fuck Harvest emergem num crescendo Pop ferido de lampejos Rock, a violência é aparentemente uma encenação sórdida instituída pelo absurdo de Samuel Beckett. “You are the soldier”. “OOOO”. E antes do verso: “I`d never kill or eat an animal”, há uma pausa que suspende a melodia das trevas e surgem as palmas do público que ocupam o vazio. O solo distorcido da guitarra eléctrica de Jesse Tobias é contínuo e em crescendo e o saxofone de Boz Boorer sopra como um louco a fumar brisa inodora. A Pop que inscrevem os Fuck Harvest tem nas veias morcegos que induzem ao suicídio, a exortação da progressão relega-a para o grupo das canções épicas. “Hand in Glove” tem uma concisão rítmica da dupla Matt Walker e Solomon Walker e o dedilhar da guitarra acústica de Boz Boorer apresentam uma harmonia Pop detentora de uma luminosidade clássica de uma tarde de Verão em Manchester, “Hand in glove, the sun shines out of our behinds”. Morrissey coloca o microfone sobre a boca e contrai o tronco para à frente e ergue a perna direita e debela-se com o passado.“Hand in glove”. A melodia ganha síntese no refrão cantado por Morrissey de forma teatral: “And if the people stare then, the people stare, I really don't know and I really don't care”. Há um domínio crescente da guitarra eléctrica de Jesse Tobias que tonifica “hand in glove” de uma perspectiva, “the good people laugh”, que perpetua uma agressividade contida conspurcando-a com uma leve inceneração, “how near you stand to me”. Enquanto Morrissey canta as estrofes do refrão dá costas ao público e baloiça as suas ancas sexys, a progressão Pop imposta pelos Fuck Harvest resgatam a melodia da melancolia. Morrissey enfrenta o público e despede-se através do verso: “and I'll probably never see you again”. Palmas. Morrissey discursa: “I `d like to make a suggestion to you. To this beautiful city; but first of all go to an art shop, and by a white spray, and you walk to the sea and see all the ads of MacDonald’s: and SHIT! NO!”. Palmas. Em “Meat is Murder” o palco é pintado a vermelho sangue de uma placenta de um golfinho, o slow é vilipendiado pela guitarra eléctrica de Jesse Tobias, surge o uivo grotesco de um animal a ser desmembrado por Francis Bacon. Sobre esta tragédia Morrissey canta/declama: “Heifer whines could be human cries”, enquanto é iluminado por um vermelho escuro como se fosse o lusco-fusco a incendiar o dólmen do Capitão Gancho, a melodia negra arrasta-se e percorre um labirinto decomposto por veias dilaceradas em vão: “This beautiful creature must die?”. A guitarra de Jesse Tobias é uma serra eléctrica a trucidar a “Virgem Maria” de Bansky, “is murder”, a cadência é fúnebre, “do you know how animals die?”. O verso que coloca os humanos perante a sua predação: “It´s not me why should I care?”. Morrissey desloca-se para o interior do palco próximo da bateria, o ritmo decresce, encontra-se estático de costas para a plateia, o ritmo aumenta com o despertar dos pratos a marcar o tempo na Terra do Nunca. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias é o elemento que se emancipa da carnificina e simultaneamente perpetua-a. Morrissey tem os braços presos às costas como se estivesse a ser fustigado por um chicote romano por ser o único Santo vegetariano, ouve-se a guturalidade minimal de animais a gritarem enquanto são retalhados para vestirem as louras nos Óscares. Na décima sétima canção “One Day Goodbye Will Be Farewell” Solomon Walker desloca-se com o baixo eléctrico distorcido em direção da plateia e destaca-se da métrica Pop imposta por Matt Walker, agrupando-se perniciosamente à de Boz Boorer, por entre as quais ecoa a voz de Morrissey: “And you will never see the one you love again”. A relação entre a Pop e a distorção é continuamente ressalvada, uma bipolaridade que é somente apaziguada pela reflexão: “I have been thinking, what, with my final brain cell”. “OOO”. O inconformismo de um rebelde com uma causa: “And when I die, I want to go to hell”. “OOO”. O ritmo desacelera mas a melodia continua a reflectir uma negritude alarmante “OOOO”. No fim Morrissey declara-se pela segunda vez ao Coliseu dos Recreios: “I love you” e abandona o palco. Quando surge Morrissey e os Fuck Harvest para executarem o encore são ovacionados. “Asleep” é dominada pelo piano dedilhado por Gustavo Manzur que segrega uma melodia lullaby. Morrissey encontra-se estático no palco sinalizado por um foco azul que o cobre da cabeça aos pés com uma tristeza infantil. Surge um mar com ondas de pétalas de rosas com caules pontuados por espinhos, as ondas quando embatem na areia desenham corações a sangrar nas trevas. Morrissey canta numa entoação que invoca uma doçura angustiante como que a demandar pela voz de sua mãe que renegou para encarnar em Peter Pan: “Sing me to sleep, sing me to sleep” e o público solidariza-se com o seu apelo. Morrissey não resiste ao elixir do sonho: “I want to go to bed”. Os arrepios percorrem a coluna vertebral do Coliseu dos Recreios, tombada perante o testemunho de uma beleza hiperbolizada através da delicadeza do piano de Gustavo Manzur associada à voz de Peter Pan que responde convictamente à mãe: “Don't try to wake me in the morning, because I will be gone, don't feel bad for me”. O piano reintroduz os acordes agridoces do refrão: “Sing me to sleep, sing me to sleep, I don't want to wake up, on my own anymore”. As notas do piano transferem uma tonalidade esotérica e a sua melodia liberta Peter Pan que voa em direção da Terra do Nunca. Palmas. O torpor agressivo que domina “The First of the Gang to Die” é afectado pela contenção dos Fuck Harvest a imporem harmonias Pop, das quais sobressai a guitarra eléctrica de Jesse Tobias que tem o domínio da melodia. O público bate palmas, a guitarra eléctrica de Jesse Tobias insurge-se através de um solo, “never been in love”; as variáveis dinâmicas entre os Fuck Harvest são de uma tensão continua como se fosse uma bomba a entrar em processo de parto sem nunca rejeitar o feto. Morrissey oberva um motim incendiando montras: “The first of the gang to die”. “Oh! Such a silly boy!”. A guitarra eléctrica de Jesse Tobias promove um solo continuo e suspenso revertendo a ultima canção de uma angústia dilacerante. A trompete de Boz Boorer derrama um desarmante solo que transforma filigrana em lágrimas de ouro, a partir do qual há uma progressão épica. “Hey, hey”. Caem pétalas da rosa mar sobre o palco e a maresia quente instiga Morrissey a despir a camisa castanha que havia vestido no intervalo que meneou o início do encore, atira-a para a plateia que se digladia por uma parte e ouve-se um grito em uníssono dos presentes. Morrissey compõe o seu tronco, do pescoço pende um fio de prata com uma medalha com o relevo do seu rosto magro e imberbe com óculos pretos e sobre a cabeça uma auréola Pop.


Morrissey, ““World Peace is None of Your Business”, 6 de Outubro, Coliseu dos Recreios @ Lisboa

Dedicado a Tracy Vandal, Samantha Hand e Rui Reininho.