segunda-feira, 27 de novembro de 2017

La chambre claire (Note sur la photographie)

Tarde de Sábado no Salão Brazil em Coimbra onde irá decorrer a terceira edição do mono/stereo— o maior pequeno festival do mundo que tem em cartaz durante a tarde o Carlos Subway, GAQ, Ruze e à noite o primeiro a subir ao palco será o Drunk Dancer seguido pelos Titanic e por último os Wipeout Beat; Carlos Subway apresenta duas canções no sintetizador a primeira é um sinal indie pop sonoro a seguinte para animar plateias em paquetes com decoração kitsch; GAQ são um duo de poetas que lêem os seus versos sobre uma palete com fundos que por vezes desequilibram os poemas e em outros quando as cores são menos carregadas os sobressaem e finalizam com um poema do William S. Burroughs “Electonic Revolution”; Ruze é um MC que vem acompanhado por um dj e por um outro raper e a movimentação do Ruze é constante mesmo que a sala esteja vazia e as suas canções têm beats predominantemente up-tempo e as suas rimas versam sobre a vida mas numa perspectiva em que impera a felicidade e a moralidade; Drunk Dancer corresponde a um one man band que usa a guitarra/baixo/voz e os insere numa mesa em loop e subsequente vai construindo as canções em tempo real e o resultado são estruturas antagónicas e por isso maioritariamente dissonantes mas há uma pureza infantil que as poderia denominar de free jazz caso tivesse passado pelo Hot Club ou Art Brut se tivesse estudado nas Belas Artes; Titanic correspondem a dois músicos um no teclado e o Marquis Cha Cha na bateria/voz e as forças entre ambos nem sempre estão equilibradas para além do resultado serem esquiços synth pop que mereceriam mais trabalho; Wipeout Beat debitam uma massa synth que canção após canção ganha um poder sónico dramático por vezes exacerbado com a guitarra eléctrica do Pedro Antunes e que é uma textura hipnotizante que liberta a imaginação e a transcreve para outros contextos onde o delírio é o futuro; à direita da direita reside a vantagem de ser vizinho de uma palmeira que parece um moinho e diariamente sento-me junto ao seu tronco e cruzo as pernas para meditar e ausentar-me da realidade mas por vezes sou interrompido pelas gaivotas a planarem sobre um céu cor-de-rosa choque e pela passagem de alguns cães com pedigree galardoados num concurso para misses de fancaria e há uma voz que dita um texto codificado que sigo como se fosse uma luz no universo que me guia por entre a floresta de figuras petrificadas que se despertam para a vida tal como o dia que está a decorrer e num canto iço o grasnar distante de alguém com fome e que ecoa ecoa ecoa e é substituída pela de um familiar ausente que se dissipa num esgar e mantém-lho a respiração num ritmo lento e sucessivamente sinto as ondas tão próximas que parece que estão a emitir de um búzio com uma mensagem enigmática e o vento sopra num ritmo onde balanço como uma anémona nas profundezas de um mar agitado que gradualmente se pacifica e leve levemente presente e distante num reflexo em que me encontro em contacto com a minha alma e nessa luz confesso os meus pecados que humildemente prometo não repetir e por segundos revejo os diferentes pontos que marcaram a minha vida como se estivesse a vê-los pela última vez para me libertar do mal com que me mancharam em palavras escritas e respiro num alivio e há uma felicidade que me preenche o coração que bomba lentamente e aumenta a temperatura do meu sangue que me irriga de satisfação e deixo-me pairar para além de uma linha imaginária onde me imiscuo num universo distante num tempo aparentemente infinito e comunico com forças tão bondosas quanto puras às quais dou as mãos e formamos uma cadeia que luta para emancipar o bem nos seres humanos e ao convoca-lhos promovemos uma mudança em que domine a paz e o amor e uma outra voz repete uma frase hipnótica que me transforma numa espiral na qual rodopiam as coisas supérfluas que se intrometem entre mim e a felicidade e que desaparecem e encontro-me num espaço com paredes transparentes e no centro sento-me a meditar sobre meditar e o cubo movimenta-se sobre si lentamente como se fosse o espelho do meu pensamento e forma-se um prisma na minha testa em que se consubstancia a minha alma que reside num corpo que se ergue e exagera-se numa equação abstracta que me transforma numa energia única que se insere na minha corrente evasiva em que subsequentemente incorporo e há algo que se intromete entre o meu ser e o meu corpo e funde-se num espírito tão esotérico quanto o amor.

mono/stereo— o maior pequeno festival do mundo, 25 de Novembro, Salão Brazil, Coimbra.

Em memória do Pedro Rolo Duarte.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Le Petit Prince

No Massas Club na Pedrulha vizinho de Coimbra está a decorrer o Mosher Fest—Chapter VI que contratou cinco bandas para esta noite e são as seguintes: Okkutist, Analepsy, Switchtense, The Parkinsons, Gwydion; os Okkutist estão a tocar o seu cardápio de distorção mas fazem-no de forma simplória acrescida de solos da guitarra imberbes mas quem atrai a atenção é um ser com um cabelo louro comprido metade pintado de verde e canta através de um som carregado de terror e no fim da música retira o cabelo do rosto pálido com os olhos contornados por lagoas escuras e do tronco surpreendentemente sobressaem uns seios cobertos de cabedal preto e na seguinte a sua teatralidade é tão hipnótica com a mão esquerda a tocar algo invisível no ar e a sua cara encoberta pelos cabelos dão-lhe uma perspectiva de criatura que nasceu das trevas e na qual quer eliminar a sua beleza e no fim da última canção de joelhos diz terrificamente: “Hail fucking Satan” quando passar a amar Deus poderá telefonar-me; Analepsy são um quarteto de cabeleiras metaleiras mas as suas canções são um continuo em que não é perceptível se há diferenças a assinalar para além de ser impossível perceber em que língua o vocalista/guitarrista canta já os meus apontamentos apontam para uma comunicação digna de um peru: “Glugluglu” se o matarem no dia do Natal e alterarem tudo que está de errado nas canções poderão crescer e tornarem-se em algo de facto apetecível para já são tão tóxicos quanto monótonos; as luzes do hotel estão apagadas apesar da porta se encontrar aberta e entro e na recepção entrego a uma mulher fardada de vermelho os meus documentos e que me entrega um cartão e no elevador e a sorrir tiro uma selfie sobre o espelho que descarrego no quarto para o Instagram e olho para a cama sem que encontre o apelo do sono e há algures folhetos turísticos sobre a beleza dos monumentos que Lisboa oferece ou as exposições do Museu Nacional de Arte Antiga e o silêncio é vilipendiado pelo eco dos ébrios que passam na rua e abro a janela para os ver a cambalear como se a calçada portuguesa fossem ondas de um mar flat adoraria dar-lhe swell mas felizmente não tenho esse poder e as conversas redundam num vazio sem sentido aparente que me fazem rir e quanto tempo estarão felizes talvez até que a ressaca os faça ver a vida com desespero e amargura ou se calhar estou enganado e a encarem sem amargura ou desespero e voltem a beber para se lembrarem de que somente assim se sentiam felizes e da mala de viagem retiro as camisas brancas com riscas azuis e as calças pretas e vermelhas e o estojo com os utensílios para a higiene diária e descubro o meu diário de viagem com os apontamentos sobre cidades europeias e leio-o como se não fosse o autor para obter distanciamento sobre o que senti ao ser discriminado em Heidelberg e ter sido amado fraternalmente em Bruxelas e ausente infelizmente ausente em Atenas e em Madrid senti-me em casa e poderia continuar a enumerar aleatoriamente outras cidades mas tal seria penoso para o leitor e como foi em Paris é uma pergunta à qual tenho resposta mas prefiro relega-lha para o passado e algures há alguns desenhos realizados pelo meu filho de seis anos e que tento descobrir o que cada um representa e orgulhosamente não consigo associa-lhos a qualquer animal criado por Deus mas parecem-me fruto de uma consciência em que somente existe o bem e o mal e como tal tudo lhe é limitado a um tempo aparentemente finito mas que se alarga dia após dia para compreender que as pessoas podem ser boas e más conforme o contexto em que estejam inseridas e para que descubra isto em si lia-lhe ao deitar alguns contos de fadas que lhe instigariam a imaginação e abrir-lhe-iam as portas de percepção a um universo paralelo onde poderia construir a sua própria narrativa há um desenho com fundo roxo de onde sobressai um rosto que me é familiar mas é tão redutor porque é-me impossível identifica-lha ou identifica-lho a minha mulher escreveu “o pai” mas não tem qualquer parecença com o meu rosto de trinta anos aliás nem daqui a cem anos serei assim e não percebo se sou bom ou mau mas somente acredito no bem como ponto de partida para acrescentar-me felicidade e é esta que quero que ele sinta sob o meu olhar para que o choro seja somente reflexo de uma capricho momentâneo e que o escuro seja seu amigo durante o sonho e que no banho brinque com submarinos amarelos e que o seu crescimento implique que nos amamos; Switchtense são uma máquina de punk/hardcore ao qual sabiamente conseguem alargar as suas fronteiras principalmente através da secção rítmica mas o foco deve recair no vocalista que é um cantor irrequieto e instiga a multidão de metaleiros a instituir a moshe como se fosse o líder de um batalhão de homens que somente se querem divertir absurdamente e exorcizar o stress dos dias carregados de rotinas e ainda é um relações públicas perspicaz: “Isto é o underground viver a música pela música”; The Parkinsons entram com ganas de conquistar a plateia vestida de negro e destilam o seu cardápio punk com origem em Londres através de “Primitive”, “Angel In The Dark”, “Body and Soul”, “Nothing To Lose” mas exceptuando os que se encontram próximos do palco e que cantam juntamente com o Alzheimer os restantes mantêm-se alienados como se a música dos Parkinsons tivesse uma peste que não lhes agradam porque lhes parecem que é carente de veneno e nem as investidas do Alzheimer e do Victor Torpedo sobre eles os fazem desistir do seu reduto constituído pelo metal e o guitarrista dedica a actuação ao “Malcolm Young” dos AC/DC que havia falecido hoje e se o público não adere os Parkinsons não se amedrontam e continuam a destilar as suas canções tão agressivas quanto marginalmente cosmopolitas e na “Bad Girl” Victor Torpedo convida um adolescente a subir ao palco e enverga-lhe a sua guitarra e fica atrás deste e ambos dedilham os rifs da canção e haverá coração maior do que um dos grandes senão o maior guitarrista da capital do rock?; Gwydion correspondem a rapazes alguns barbudos outros nem por isso vestidos com kilts e com pinturas de guerra nos rostos e as suas canções são uma mistura improvável de death metal + rock sinfónico + ritmos/melodias celtas que resultam em algo contraproducente mas a comunidade metaleira adora ao ponto da mosh estar largamente instalada assim como a dança aparentemente medieval algo que estranho porque este composto vai contra o fundamentalismo metaleiro e por outro lado entra em paradoxo com o desprezo ao excelente concerto dos The Parkinsons mas é verdade que estão muito bem ensaiados e que através dos figurinos implementam alguma teatralidade mas tudo o resto é arrepiantemente popularucho como exemplo dou a penúltima canção “Zumba” que se um dia estiver no Youtube ultrapassara “Despacito”.

Mosher Fest Coimbra—Chapter VI, 18 de Novembro, Massas Club, Pedrulha.

Em memória do Malcolm Young.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A Insustentável Leveza do Ser

O festival Lux Interior é da responsabilidade da editora Lux Records que tem como cérebro o Rui Ferreira que ao longo de mais de duas décadas editou predominantemente bandas de Coimbra como: António Olaio & João Taborda, Azembla`s Quartet, Belle Chase Hotel, Bunnyranch, D3O, The Legendary Tiger Man, M`as Foice, Ruby Ann & The Boppin Boozers, Sean Riley & The Slowdivers, Tédio Boys, Tiguana Bibles, Tracy Vandal, Victor Torpedo, The Walks, The Wraygun, Raquel Ralha & Pedro Renato, Ghost Hunt, The Millions, a jigsaw, Wipeout Beat, The Twist Connection, e a primeira de três noites do festival decorre no luxuoso Convento São Francisco na sala Black Box em que há que estar em pé ou sentado no chão para ver os The Millions (que apresentam o álbum de estreia “Internal Combustion”) que discorrem de forma canónica sobre a blues e a soul algo que é de desmerecer apesar da execução eximia das canções e destas as mais interessantes são aquelas em que o kitsch peja o blues de cores de néon cor-de-rosa e outro ponto negativo é a voz do vocalista/guitarrista que apesar de a esforçar não almeja destaca-lha logo está alienada; Gosth Hunt representam uma viagem espacial que por vezes é de tal forma opaca que fere o pensamento formal e assim obriga-o a redescobrir novos meios para se relacionar com a realidade através do synth e do kraut rock e de outros beats envoltos em véus perturbadores; a segunda noite decorre no Grande Auditório ao qual deveria ser-lhe retirado o “Grande” e substitui-lo por “Megalómano” em que é obrigatório sentar em cadeirões cinzentos e esperar pelos primeiros convidados a Raquel Ralha & Pedro Renato com o Jorri num teclado que apresentam “The Devil`s Choice Vol. 1” o primeiro CD editado hoje e que contém onze versões de autores como John Lennon, David Bowie ou Sioux & The Banshees, e as que tocam são marcadas por uma estranheza que incute perturbação mas como é de tal forma sedutora é impossível não prestar atenção à narrativa sonora que revela filmes tão densos quanto violentos e a voz de Raquel Ralha é o centro que domina tudo o resto mas não de forma autoritária mas de transcrição de um universo que até aqui estaria inacessível nos originais e ainda deixo a questão meramente retórica como é possível que uma mulher tão pequena quanto aparentemente frágil tenha tantos mundos no seu interior?; Sean Riley & The Slowdivers apresentam “Farewell” editado há dez anos e as diferenças são mínimas algo que não deixa de ser frustrante já que nos concertos há a possibilidade de melhorar os originais para que não sejam meras peças datadas e ou anacrónicas e há ainda a destacar a última canção (que não consta em “Farewell”) “Dilí” da autoria do desaparecido Bruno Simões e que é consubstanciado no pano atrás dos músicos com a alcunha “King B.” ensimesmada com uma coroa e que é a melhor canção do concerto e no fim os familiares do Bruno Simões deslocam-se à boca do palco e entregam buquês com flores brancas à banda que abraçada se emociona com a ovação em pé que celebra a vida e a obra do King B.; a terceira noite conta com os D3O e os Mão Morta que celebram vinte e cinco anos da edição do clássico “Mutantes S. 21” e os primeiros a surgir no palco do Grande Auditório são os D3O e o percurso que encetam é do rock and roll mas executado de forma visceral com as guitarras ora dissonantes ou angulares acrescidas de variações rítmicas abrasivas e a penúltima que deve aproximar-se dos seis minutos é iniciada com as palmas do público e a partir daqui deliberam uma complexidade rítmica/melódica que não faz parte recorrente do rock and roll e nessa medida é épica marcada pela a saída do palco do Toni Fortuna que caminha sobre os cadeirões como Jesus Cristo o fez sobre o mar da Galileia (sublime!); a entrada dos Mão Morta em palco é antecedida pelo instrumental “Shambalah” que encerra “Mutantes S. 21” e ao surgirem são ovacionados e continuam a apresentar cada uma das canções acompanhadas por projecções atrás dos músicos de B.D da autoria do Esgar Acelerado, João Martinho Moura, Marco Moura e isto enquadra-se com o facto da segunda edição do referido álbum conter esse meio de comunicação artística como bónus e as que se apresentam mais viscerais do que as originais são a “Até Cair” com uma opressão de garrote proporcionado pelas guitarras semi-distorcidas e a voz cavernosa a indiciar que está no precipício; “Instambul” por ser um mantra rock com reminiscências à cultura dos ácidos advindos da Índia e encabeçada pelos Beatles e que é de uma progressão psicadélica hipnótica; “Maria, Oh Maria” que é de uma densidade opressiva inapropriada para quem seja propenso a ataques de pânico ideal para os que queiram rebelar-se contra a infelicidade; “Berlim” é marcada por uma esquizofrenia hipnótica de tão perturbante com o Adolfo Luxuria canibal a usar o tripé como se fosse simultaneamente um cavalo e um pénis erecto e que a transcreve para o domínio do surrealismo e através da voz sufocante a personagem questiona-se: “Que faço eu aqui? Com as mãos manchadas de sangue?”; o muro das guitarras encontra o seu apogeu em “Amesterdão” numa hipnose induzida através de uma agressão incontida; “Barcelona” persegue um percurso de desvio e de marginalidade que pretende despertar as consciências alienadas; “Lisboa” é um confessionário ideal para quem tem como objectivo chegar ao Casal Ventoso onde dominavam as máfias da droga: “O dealer roubo-me a alma, raios partam oooo dealer” com diversas variações rítmicas que transcrevem a peregrinação pelas ruas de Lisboa para matar a ressaca de heroína: “Táxi Casal Ventoso”; antes do encore Adolfo Luxúria Canibal é sucinto: “É um prazer estar neste Festival Lux Interior porque é um festival com bandas de Coimbra, organizado por um grande amigo nosso”, e as seguintes canções não fazem parte de “Mutantes S. 21” como “Tiago Capitão” que é uma lullaby negra que joga com um ritmo fúnebre e simultaneamente marcial e que é substancialmente épica; “Fazer de Morto” é segundo Adolfo Luxúria Canibal “sobre as belas artes” que é tão viril quanto angustiante com vagas tonalidades pop; “Bófia” uma combustão que em bloco progride cortada por um solo de guitarra eléctrica perturbante e o Adolfo Luxúria Canibal rodopia como se estivesse possuído pelo poder de se insurgir contra a autoridade e instalar a anarquia e antes de a acabarem atira-se para o chão até que os colegas o retirem do seu reduto de vítima das fronteiras da sociedade e uma ovação encerrara o último concerto do festival Lux Interior; através das persianas a luz estática expande-se num padrão que parecem os olhos da natureza que me observam a escrever e a suspirar por uma musa tão distante quanto inalcançável que está omnipresente na minha vida desde que encontrei o seu reflexo no meu espelho e que me transmite uma desmesurada energia que se poderá comparar à felicidade e acendo o incenso que exala um odor doce que inspiro para me abstrair da incapacidade em dar continuidade à narrativa sobre umas silhuetas que sobem as ruas da Costa do Castelo e observam com atenção as portas dos carros na esperança que algum tenha as portas destrancadas e frustrados perdem-se nas sombras que os candeeiros amarelos evidenciam e apago o que escrevi e desesperado tento encontrar outras personagens que estejam inseridas num contexto mais feliz mas a felicidade é tão difícil de descrever porque pode ser tudo e o seu contrário e nessa medida é um paradoxo condicionado por diversos e distintos factores e procuro transcreve-lha através de uma frase que se encontra diluída num rosto que sorri como se estivesse grata por se encontrar acompanhada por mim e acaricio o contorno do seu rosto de soprano maquilhado para cantar óperas bufas e os seus olhos são pontos de luz que vibram de felicidade contornados por pestanas postiças que lhe oferecem um misticismo que encerram os seus sonhos e tento dar-lhe voz e o seu timbre é parecido com o de uma sibila que em cada vez que fala escreve um futuro no qual prospera o advir da felicidade e tento dar-lhe um corpo que se compadeça com a sua beleza espiritual mas tal é-me impossível porque estaria a torna-lha humana e o seu fulgor de pureza desapareceria para se tornar em algo vulgar e comum e fixo-a na minha memória como se fosse fonte de água benta que me suaviza a alma e lhe confere uma tonalidade roxa e acrescento umas reticências que apago para mais tarde reflectir sobre o resto da narrativa que espero que encontre na vida alguém como ela ou senão mesmo e somente ela e estou parado a olhar para o texto a avaliar a sua cadência que me parece que deveria ser uma torrente de ideias desordenadas para hipnotizar o leitor e faze-lho crer nos signos para que possa formar uma imagem da felicidade e através da qual se sinta livre para retirar a máscara que usa diariamente para suportar a rotina em escritórios assépticos ou em corredores com macas e doentes que desesperam por serem observados ou que esteja a conduzir transportes rodoviários por auto-estradas monótonas ou que tenha que dizer à esposa que a ama mesmo que tal não seja verdade ou que faça da inveja o ganha-pão e enfrente a vida sem a hipocrisia que graça por todo o lado e que é um lodo de onde não consegue sair porque tem medo do vizinho e do que este poderá ajuizar sobre o seu comportamento e por instantes perco a noção da narrativa como se fosse esta que mandasse em mim e determinasse o que devo escrever e que me proíbe de dissertar sobre a dor e a solidão que se encontram pulverizadas no meu coração que deixou de pertencer a um adolescente para bater no corpo de um adulto e nesta nova consciência emancipo-me com o rosto que neste momento vê o nascimento de um novo ser.

Festival Lux Interior, 9, 10, 11 de Novembro, Convento São Francisco, Coimbra.

Dedicado ao meu guru espiritual Christian Spaanenburg.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O Ano da Morte de Ricardo Reis

No Centro Cultural e Recreativo Valonguense em Antanhol irá decorrer o I Concurso de Bandas de Garagem – Asmusitec onde tocarão oito agrupamentos e o primeiro a concurso são os Floating Conformists que apresentam um conjunto de canções pop que tendem para um esoterismo que não se consubstancia dada a fraca execução salva-se a voz da cantora-adolescente que se inspira no canto das sopranos; The White Rino jogam com as guitarras eléctricas de forma substancialmente assertiva mas a estrutura das canções rock pecam por serem excessivamente repetitivas e extensas para além de estarem feridas de originalidade; Subconcious Terror (quarto lugar) vestem de negro e têm uma postura agressiva em palco e as guitarras distorcidas são um epicentro de raiva e de dor mas pouco ou nada acrescentam ao black metal; Dang (terceiro lugar) divagam pelo grunge e hard rock como se fossem clones de cada um destes géneros musicais; Bitoque apresentam um conjunto de canções que não se encontram devidamente estruturadas mas há uma que é iniciada com o teclado e que durante esse instante erguem algo substancialmente perturbante de tão esquizofrénico mas quando o baterista começa a cantar a letra é tão boçal quanto as dos Irmãos Catita ou dos Enapá 2000 e a magia esfuma-se e se a alterarem assim como o nome (que aliena a comunidade vegan e a vegetariana) e se concentrarem somente a compor canções rock psicadélicas poderão um dia almejar abandonar a garagem; Secret Chord (os vencedores do concurso) têm uma confiança desmedida e que é liderada por uma mulher com uma voz de cantora lírica das trevas elevando canções de rock gótico e que são apresentadas segundo um domínio sónico acima da média e ainda dedicam a sua actuação: “A todas as vítimas dos incêndios deste ano”; Red Candy começam a sua narrativa musical em L.A e de seguida passam para Cardiff e finalizam-na em Manchester e em cada uma destas cidades imitam uma das suas bandas emblemáticas; Harpia (segundo lugar) começam pela new wave que granjeou sucesso nos Police mas as seguintes são de um rock visceral digno dos power trios da década de setenta como os Cream e que são de facto de tirar a respiração a quem não esteja prevenido com tampões nos ouvidos e que são tão equilibradas quanto épicas cantadas em português e deixo como exemplo um verso tocante: “Para sempre vou amar-te/ Até a morte traga o fim” e como tal posso afirmar que vi o futuro do pop-rock conimbricense (mereciam ter ganho!); as figuras sentadas à minha frente numa esplanada parecem estátuas em bronze do Juan Muñoz que fumam compassadamente e cruzam as pernas e o sol ilumina os seus sapatos de brilhantina que reluzem e numa outra mesa há duas silhuetas que bebericam Coca-Cola com rodelas de limão e pedras de gelo e uma fala como se estivesse acompanhada pelo seu reflexo que a ouvia atentamente sobre o seu futuro no qual esperava estar realizada e os pombos passeiam-se num movimento de padres à cata de hóstias por entre a mesa de uma figura que desenha num caderno o seu copo e não observa as pessoas que passam lentamente sobre a calçada portuguesa e contornam a estátua do Luís de Camões e uma mesa é ocupada por um fato de domingo que tresanda a absinto que parece ausente e demanda um copo de vinho da casa para se sentir integrado na sociedade portuguesa e aparentemente terá adormecido com o chapéu de aba preto a divagar de heterónimo em heterónimo numa sucessão de personas que o multiplicavam sem que verdadeiramente tenha procriado e há uma brisa fria que advém do Tejo que me circunda numa divagação de tágide enamorada que embala o meu coração em lampejos de amor e que gradualmente me possui e sorrio sem que tenha a noção de que tal de facto tenha sucedido e volto a sorrir para ter a certeza de que estou feliz e tento concentrar-me nos passeantes que caminham lentamente em direcção ao Elevador da Glória ou entram para um eléctrico amarelo de onde ecoa o fado de um fidalgo campino e numa porta há um desperdício que estende a palma suja do lixo para uma turista que ostensivamente o ignora e sobe a rua uma figura com um penteado dos novos românticos e que gradualmente desaparece pelas ruas do Bairro Alto e reparo que as mesas ao meu redor são ocupadas por dois casais que falam em frequências desencontradas numa alternância que não revela se estão verdadeiramente a comunicar e tento isolar-me desta energia negativa que atentava contra a luz pérola de Lisboa que iluminava as sete colinas que representavam a espiritualidade que as tolhiam de uma beleza infinitamente invisível e parece que desapareceram de mãos dadas em direcção ao Chiado onde irão olhar para as montras com a moda da época e aproxima-se uma corcunda que me pergunta se estou disponível para lhe pagar uma imperial que simpaticamente peço ao rapaz que num ápice lha entrega e após bebe-lho num silêncio agradece-me e continua o seu percurso como se fosse uma montanha anã em movimento e oiço o relato de um jogo de futebol que grita golo das colunas de um táxi preto e verde com uma cruz de Cristo no retrovisor que se bamboleia ao ritmo do chão empedrado e pára e sai uma silhueta que veste os contornos perversos da noite perfumada de Cais de Sodré e os seus saltos altos esmagam as pedras da calçada como se estivesse ansiosa por despir a roupa do trabalho e passa por mim como se fosse transparente e acendo um cigarro e peço um cinzeiro que é depositado na mesa assim que o apago e o Ricardo Reis está a engraxar os sapatos e a olha para mim como se me conhecesse de um sonho de infância e que instintivamente retribuo e depois de pagar sobe a rua em direcção da Amélia que subjugava à marginalidade porque jamais lhe daria o seu coração pois pertencia ao Fernando Pessoa.

I Concurso de Bandas de Garagem – Asmusitec, 5 de Novembro, CCRV - Centro Cultural e Recreativo Valonguense, Antanhol.

P.S- Devo informar que fiz parte do júri.

Dedicado ao Juan Muñoz.

domingo, 5 de novembro de 2017

Até Que As Pedras Se Tornem Mais Leves Que A Água

O Texas Bar não tem carros estacionados ao seu redor que indiciem que no seu interior irão decorrer dois concertos apesar de faltarem poucos minutos para às dez da noite hora marcada para o seu inicio e para o qual terei que esperar até às onze e quarenta e nove minutos para ver os Me And My Brain e das cinco canções apenas três merecem ser recordadas porque não são meras estruturas sem uma lógica instituída e que jamais deveriam ter sido tornadas públicas as que se safaram têm um problema de originalidade acentuado e como tal não acrescentam mais-valias ao drum and bass ou ao trip hop com a agravante da voz em eco ser um elemento dissonante por na maioria das vezes não se perceber em que língua é que está a cantar num contínuo que não lhes acrescenta um elemento sensorialmente apetecível; The Telescopes são um quinteto que se expressa através de um noise que pretende ser espacial e consequentemente psicadélico mas este último é conseguido em apenas uma canção das seis que executaram em regime de non stop como se dispensassem as palmas do escasso público redundado em música depressiva para deprimidos e o revelador disto é a postura dos músicos que têm cabeleiras a encobrir-lhes o rosto e a movimentação do vocalista é de alguém que se encontra ausente e a sua voz apenas uma vez fez sentido e conseguiu comunicar o seu desespero sufocante e ainda roçaram o ridículo quando dois dos seus elementos estiveram a emitir sons directamente dos pedais com as suas mãos com a conivência dos restantes elementos durante pelo menos dez muito sofríveis minutos revelando que o noise não pode ser um decalque do produzido durante a década de setenta do século XX em Nova York por músicos de vanguarda para além de não terem um conhecimento aprofundado sobre a matéria dada a fragilidade estilística com que fora apresentado; resgato o álbum das fotografias do tapete de Arraiolos e sento-me num sofá castanho com espaldar em madeira e folheio-o e não há em mim um lampejo de saudade de quando era criança e ou adolescente numa festa de anos de uma vizinha que era tão bonita quanto a irmã e que tristemente emigraram para a Austrália acenando promessas que voltariam para descrever como é viver nos antípodas mas tal nunca sucedeu e numa quinta com um estábulo repleto de crinas que abanavam e relinchavam quando reconheciam o meu pai e a minha mãe que lhes iriam encher as manjedouras de palha e se algum estava lesionado receberia a visita de um veterinário e alguém calçaria os cascos de salto alto às éguas e de sapateado aos machos para bailarem por entre os obstáculos que saltavam elegantemente num calculado suspiro e sonhava ser como o meu pai um cavaleiro com a sua princesa a passear por colinas e prados verdejantes onde floresciam os amores imperfeitos que perdiam as pétalas às mãos de um pastor que orientava o rebanho de ovelhas com a ajuda de um cão da Serra da Estrela e na última pétala a flor dizia-lhe que o seu amor seria correspondido e que poderia cantar-lhe à janela uma cantiga de amigo que ela viria à janela e acenar-lhe-ia e prometeria cumprimenta-lo à porta da capela e fazer-lhe-ia companhia enquanto o padre faria a liturgia e numa fotografia a preto e branco estou ao colo do meu pai disfarçado de Pai Natal a montar um jumento que urrava com medo das luzes intermitentes da árvore de Natal e entregava-me à minha mãe que ria de macacão com bocas-de-sino e depunha-me no presépio e era visitado pelos reis Magos com a suas oferendas exóticas que aceitava como se fossem uma bênção e uma estrela com uma cauda de fogo preso sustinha-se sobre as nossas cabeças e corava-nos com uma felicidade que parecia eterna e num outro dia ouvia a minha mãe a trautear as canções que marcaram a sua vida e eu imaginava em que espaços é que se encontrava e com quem os havia partilhado e se eu já existia ou era somente um desejo secreto da sua condição de mulher que partilhava a sua atenção com todos os animais da nossa quinta e há uma outra fotografia com vários homens e mulheres sentados em redor de uma mesa de pedra que sorriam para a objectiva que tinham como cenário uma paisagem naturalista e eram servidos por senhores com papillon que limpavam a lágrima de fancaria que escorria pelo gargalo da garrafa de vinho tinto e uma criança atirava uma bola de golfe para o fundo da piscina e mergulhava para testar a apneia e quando chegava à superfície gritava de felicidade por ter atingido o objectivo de salva-la do fundo azul e os casais rejubilavam com a sua proeza e erguiam os copos elegantes que tilintavam em lampejos de sinos de anjos que perpassavam os seus corpos emanando uma energia que os revigorava e os prevenia de não se surpreenderem com os pormenores que a vida lhes oferecia e numa outra na porta da igreja Matriz encontro dois idosos que ladeiam um casal que se havia casado que sorriam como se fosse o dia mais feliz das suas vidas e os noivos beijavam-se e ouviam as palmas dos amigos e familiares que festejavam a sua união benzida pela igreja católica e de seguida entravam para um carocha com fitas e escritos a baton nos vidros que arrastava latas provocando um ritmo alternado que ecoava como se fossem badalos ocos e por fim encontro-me sentado numa mesa de madeira escolar do Estado Novo a ouvir a professora da qual não me recordo o nome mas que erguia a régua quando alguém não sabia de cor a tabuada como sucedeu num dia que quase me fez sangrar a palma e saltar as lágrimas à frente dos meus colegas que sorriam amedrontados por serem as próximas vítimas.

The Telescopes + Me And My Brain, 3 de Outubro, Texas Bar, Amor.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Cronica De Una Muerte Anunciada

O festival Aveiroshima2027 celebra o Halloween com dois concertos: Ângela Polícia e os Estado de Sítio e com uma dupla de djs Fulano 47 e Señor Pelota, a primeira convidada é um MC com um PC que derrama beats que se encaixam na perfeição na melodia criando quadros de um dramatismo muito bem conseguidos mas o senão são as letras que versam na sua maioria sobre a discriminação racial, a alienação, o abandono e a luta de classes que são de facto muito pobres porque o MC não conhece o seu real significado; Estado de Sítio são um quarteto que tem uma adolescente na bateria algo que contrasta com a posição agressiva dos restantes membros que debitam uma distorção incontida e tremendamente alta e o cantor grita slogans contra a sociedade consumista e as suas canções têm nomes como: “Porcos Fascistas”, “Pobre e Rico”, “Raça Alienada”, “Olhos de Merda”, “Heróis sem Pátria”, “Olho por Olho”, que são testemunhos de uma perspectiva de rejeição punk aos ditames impostos pela sociedade na qual estão inseridos e que instalaram a desordem no público; o Fulano 47 e Señor Pelota apresentam um set partilhado em que divagam pelos diversos meandros da música de dança; há algo neste cofre que não consigo identificar ou parece uma máscara chinesa ou do teatro grego e ao retira-la analiso com atenção os seus contornos e o enigma mantém-se como se fosse uma máscara mortuária que encerra os segredos da morte e pergunto-me a quem pertencera e ao averiguar que género de alma a habitou surge um rosto lívido de olhos fechados que sorri num milagre que é uma energia que se apropria do meu corpo e uma convulsão cresce a partir do meu estômago e propaga-se num tufão que me dilacera como se fossem as pás de um helicóptero a raspar o musgo nas paredes do meu coração que o perturbava de amar e a cortar o meu fígado embebido em cerveja para resgatar o amor e o intestino estava ferido por uma nódoa cancerosa que alastrava silenciosamente pé ante pé e ensaio coloca-la sobre a minha cara e parece que foi moldada por alguém que havia acariciado os contornos inanimados do meu rosto na penumbra de um quarto com cama de dossel num trópico onde as melgas eram mechas à procura de sangue e as palmeiras sustinham cocos que desmaiavam ao meio dia e haviam espectros a brincar na areia que pareciam crianças assassinadas por pedófilos e a tartaruga que lentamente cavara na margem um buraco para parir e de seguida se fez ao mar cumprindo com os ditames de Deus que censurava o aborto assim como o abandono de um recém-nascido que o meu amor sustinha nos braços e o emergia numa água tépida com pétalas de rosas vermelhas que perfumavam a brisa quente e cantava uma ladainha para o adormecer num berço com estampados de coelhos azuis e amarelos que cheiravam a urina de lobos que em alcateia se deslocavam por uma floresta negra onde apenas brilhavam os seus olhos numa sobreposição de caracteres que anunciavam que a presa estava próxima e poderia ser qualquer um de nós e tento retirar a máscara da minha esfinge mas sou vencido por uma força oculta que me impede de aceder à luz do dia e conjugo os diferentes tempos verbais e sou o passado e tacteio o vazio para me assegurar que as paredes ainda são de papel com borboletas a esvoaçar e a pousar em papoilas e que os móveis são de fancaria carcomidos pelo caruncho e os quadros têm X num horizonte onde vagueiam espíritos consignados à marginalidade e os corredores alongam-se e o chão é um declive que me empurra para o fundo de um esquife e sobre a sua pedra tumular brincará à macaca a nossa filha e a minha mãe levará a tristeza para me recordar que estou à espera que alguém me liberte desta máscara púbere e possa dar-lhe novamente a mão e dizer-lhe que serei eternamente o seu menino e não acrescento dois passos à minha descida e tento vivenciar episódios em que triunfei na vida mas eram tão escassos que se diluíram na minha memória e se escondiam atrás de biombos chineses a arar a terra e a transportar o arroz xau xau sobre as cabeças para o celeiro de bambu e lamento que a minha frustração me tolde sobre um estrume de vacas leiteiras e tento chorar mas estou tão seco quanto uma múmia egípcia e sou proibido de parar por Deus e gradualmente a escuridão é cada vez mais densa e penso no meu amor a rezar por mim num sopro de ave Maria que oiço distantemente e que me alegra e ao recuar há uma chama que me absorve para um espaço onde reina um ditador que com um martelo de orelhas bate numa porta de vidro que estala e aponta na minha direcção e no imperativo obriga-me a avançar e do outro lado sou um ponto de luz no universo.

Aveiroshima2027, Halloween Special, 31 de Outubro, GrETUA, Aveiro