quinta-feira, 25 de junho de 2009

Blue Velvet

A lua envolve Coimbra exalando um perfume suave e intenso que se cola à pele lentamente. Circunda a arquitectura repleta de rugas impostas pelas estações, que durante o ano, se passeiam pelas ruas. A fuga é um acto falhado. O fado é o travo de um trevo que dá sorte por ser diferente dos seus idênticos, crescem à sombra das árvores centenárias do Jardim da Sereia, que a noite esconde, por ser um pulmão marginal. Acendem-se as luzes e a música, é um instrumental de contornos rock and billy, quando os brancos tomaram de assalto o blues e lhe deram um tempero mais agressivo, menos rural e consequentemente citadino. Entra uma mulher de franja, que lhe esconde os olhos e atira o rosto para o mistério que o conceito de beleza encerra. O seu corpo robusto, é vestido por uma seda de alças preto, que a cobrem somente até abaixo das ancas, as meias de licra calçam uns sapatos de salto alto metalizados. A sua voz é tão suave quanto volátil, “I now my faith”, “give a litle of your heart”, com as guitarras a deflagrarem em distorção, e o contra-baixo juntamente com a bateria a se justapor a este dueto. “It`s against the law”, “these kind of love”, “to feel the way, I feel about love”, com um ritmo marcial e as guitarras a ocuparem o espaço deixado vago pela voz para adensar a fatalidade da canção: “It`s against the law!”. “I `m coming home”, é a promessa, cantada por Tracy Vandal, é um convite irrecusável, atrevam-se a ouvir este canto e estarão próximos de um lar doce, doce, doce e febril, “don`t waste my time, I`m coming home.”. “And your blood is going cold tonight, bye (train), bye (train), bye (train)”, o início desta canção é pautada por um ritmo lento que nos mergulha num vácuo, mas as guitarras elevam-na para uma outra dimensão, como se um par de facas a esquarteja-se em pontos sensíveis e a perpetua-se para o épico, “goodbye train, he `s going to take you home.”. “There `s a place where lovers go, to cry their troubles away, and call it, lonesome town, where the broken hearts stay”, tão aveludado que se se entornasse sobre uma mesa seria um vinho espirituoso, degustado de olhos fechados veríamos um reduto onde o infinito impera. Tracy, “you are the first people to hear this song”, é a única canção que segue uma métrica pop, fugindo ao escrutínio das guitarras, “I don`t care anymore”, “I don`t care anymooooore”, “there is no escape in our lives”. O segundo instrumental leva Morricone a incendiar as suas pautas e dançar com uma amiga ao abrigo de uma lei que impõe à natureza o seu trágico circuito de renovação. “Lost words” é apresentada numa frequência mais lenta à sua congénere tocada inicialmente, Tracy, aproxima-se da boca de cena, senta-se, canta, abre as pernas, canta, fecha as pernas, e de joelhos desloca-se como uma escrava a cumprir uma promessa por uma santa: Blue Velvet?

“Child of the Moon”, Tiguana Bibles, Teatro Académico Gil Vicente, 24 de Junho.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sinestesia

Entram os cinco músicos que acompanham Mayra Andrade no seu périplo por Cineteatros e salas de congressos, como sucedeu em Aveiro. Mayra, tem uma tez mulata e um corpo de nenúfar, mas que em vez de seguir a maré, impõe ao mar, o ritmo das correntes, a sua silhueta é de uma sensualidade desarmante. E o seu canto é de sereia que encantou Camões, e por ela, ofereceu aos portugueses a Ilha dos Amores. É o êxtase. A loucura. O crioulo oferece ao seu canto uma perspectiva enigmática, com a repetição de argumentos, percebemos que há uma ausência, que comparativamente ao fado, é semelhante. O público que enche o Teatro Académico Gil Vicente (TAGV) em Coimbra, grita: “És linda”, ou, “és a nossa bandeira”, com resposta da Diva: “Uma bandeira, é muito quadrada”, a rainha é um arquipélago de beleza e de sensualidade. Acompanhada por um duo de guitarras, um, é mais rock and roll, o outro é Pat Meteny, o que em algumas canções é um timbre descabido. Curiosamente, o outro guitarrista, pega em cavaquinhos, e fá-los soar a guitarra eléctrica, em guitarras e fá-las chorar, é o suspeito numero dois, o responsável por uma segunda voz. O baixo é um negro de camisa psicadélica, calça luvas, o seu dedilhar é de veludo, num diálogo directo com a Diva, comunica, não se impõe, é a reverência perante a Rainha de África. Ela é a Ilha de Cabo Verde, que à capela iniciou o concerto, e finaliza-o entregue a uma ladainha encantatória, é a beleza que se concentra num palpitar que sentimos, mas que não conhecemos, a pluralidade e a determinação do verbo, é o substantivo da profunda estupefacção; seja, o jogo dos percussionistas que palpitam como chagas de lava a irromper da terra de Cabo Verde, desta dualidade sobe à vida poética uma geografia exótica, apesar da aridez da paisagem cabo-verdiana. É de uma extrema simpatia para com a Celina da Piedade: “Vocês conhecem a Celina da Piedade”, as luzes acendem-se do TAGV, para Mayra Andrade contabilizar os que conhecem a acordeonista de “Rodrigo Leão”. A canção que assinaram em conjunto, é uma narrativa parisiense, mas falta a Celina no palco, para ela apertar a sua concertina e elevar a estética da canção, para o seu centro. Após o encore, surge Mayra Andrade, a Rainha de África e exala o seu timbre inqualificável, que concentra a sua energia no microfone e gradualmente, afasta-se do mesmo, num scat, inqualificável, poético poderá ser, é virginal, termo que qualifique ou explique o divino.

Stória, Stória, Mayra Andrade, Teatro Académico de Gil Vicente, 10 de Junho

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Autopsicografia

Os Livros Ardem Mal é a designação a encontros com intelectuais, ou, artistas, que se realizam no foyer do Teatro Académico Gil Vicente,(organizado pelo departamento de Letras da Universidade de Coimbra), numa cidade afectada por uma temperatura proibitiva. O convidado é o poeta e cantor dos G.N.R, Rui Reininho, vestido com uma camisa escura e ganga azul, calçado de sapatilhas cinzentas. “Já li alguns livros ao longo da minha vida”, a ironia é acesa pelo Rei, “não sou bairrista, não há canção mais bairrista do que o fado”, sobre, “os jornais ardem mal, eu sempre disse, sobre a crítica, é um acto único.”. Sobre ao facto de lhe ser, “difícil gostar de histórias novas”, quando era ainda criança, “espreitei o Borges”, através dos Círculos de Leitores era, “um sonho aqueles livros chegarem à nossa casa”, “os contos do Edgar Alan Poe”, “esta história dos livros é uma paixão”. Queimar um, “livro é o gesto mais atroz e revolucionário. Dar um pontapé na T.V, apagar a rádio. Mas queimar um livro é preciso coragem!”. “Um amigo meu, que enlouqueceu prematuramente e que foi anestesiado pelos freudianos, dizia: ´todo o pensamento universitário tem tendência para impor a mudança, mas na verdade, tem como objectivo que nada mude`, ahahhah”. Quanto à poesia, “não é para ser lida do princípio até ao fim”, “as minhas líricas comon & anas não têm pretensão, mas que subam ao povo, como diria o Homem Pedro de Melo”. Sobre Andy Warhol: “Ele não tinha a vontade de distinguir a baixa da alta cultura”, a ligação entre o artista plástico e o narrador pop é, “era escrever sobre nada”. O tema, “Bem Bom” das Doce, surgiu numa, “brincadeira, vamos fazer desta maneira-- estas obrazinhas tornam-nos prisioneiros-- com um arranjo à Marques de Sade, para que não fosse o ar de travesti das Doce.”. O Rei chegou a traduzir, “`Sodoma e Gomorra`, até ao primeiro volume é interessante, ele depois escreve numa de papel higiénico”, mas, “todo o meu trabalho tornou-se inútil. Tenho várias traduções que não aconselho, do final da década de 70, durante a qual era editado tudo o que era acabado em ismo”. Sobre o Teatro o trabalho do actor é, “para mim é assustador, repetir adnauseaum, até à exaustão”. Resume o mito: “Acho uma estupidez uma pessoa suicidar-se e não continuar vivo.”. Já quanto o predomínio do português nas suas composições: testemunhou uma conversa entre dois adolescentes, numa esplanada em Tentugal, quando estes viam um cartaz dos G.N.R: “`Não vais ver esses gajos! É uma pirosada do rock cantado em português!`”. Não alinha ao lado daqueles que acham que a nossa língua é “incantável, impronunciável, se pensarmos naquelas obras em alemão, ouvimos peças maravilhosas”, depois, “estudei os desvios fonéticos. Wolfgan, tem uma postura alemã, depois na fase pedreiro livre vai buscar o italiano.”. Na Galiza é interpelado pelos amigos, “Reininho, coño, se tens grupos tão bons porque coño, cantam em inglês? Sentem-se uns colonizados?”. Sobre a sua escrita refere que, “fui-me controlando ritmicamente”, “eu sou um poeta mas ninguém acha isso! Eu procuro as palavras certas, por vezes acordo com diferentes fonemas, já me inscrevi em japonês, em russo.”. O método de trabalho que prefere, “Camilo José Cela: ´quando a inspiração chega encontra-me a trabalhar`”, quanto ao meio, “o computador é bom, por vezes para apagar.”. O “inglês fere-me”, o que mais o impressionou foi o facto de ter visto, “o povo timorense a ser chacinado. Aquela gente a dizer ´Avê Maria Cheia de graça`, não diziam: ´Help me!`” , “em Macau ninguém fala português!”. O seu amigo Pedro Choft disse-lhe que: ´Não gosto muito de rock é um bocado estúpido. Mas se calhar o rock é o último refúgio da poesia`”, contudo, poderá ser muito fácil reduzir a escrita a um "´Obladi, Oblada` de Lennon/Macartney, mas há um poder encantatório que as palavras podem ter.”. Cita, Pedro Mexia: “´O homem não tem pretensão de ser um poeta per si`”, e confessa, “gostava de ter um busto numa rotunda e as pombas defecarem sobre mim, ahhahah.”. E sublinha que, “não há obras menores, somente as obscenas”, sobre os G.N.R, “a nossa função era gozar com toda a gente, e rir de nós próprios. Os surrealistas, no dia em que Paris caiu nas mãos do De Gaulle, os surrealistas, vieram para a rua”, dar vivas ao nazismo. “A Anar Band teve vários equívocos, o Jorge da Chaminé, tocou violoncelo connosco, em 1977 na Figueira da Foz”. O pecado preferido do Rei é: “Vanity is my favority sin.”. Numa entrevista na TVE, perguntaram se os G.N.R eram “pop ou rockopop?”, El Rei: “Si creo que és popRockopop`, tipo Zapatero e companhia, ahahha.”. “É difícil ver o Elvis em Las Vegas, todo aquele super-herói gordo. Dói-me vê-lo”, canta, “are you lonesome tonight? Talvez por isso tenha criado esta personagem da Companhia das Índias, tenho feito mais Cine-teatros, que para mim é difícil porque as pessoas estão sentadas, que foi durante anos um acto de indiferença.”. O que sucede a um Rei Sol? “Uma pessoa com a prática ouve vozes”.

Os Livros Ardem, Rui Reininho, Teatro Académico Gil Vicente, 1 de Junho.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Ama Romanta

As colinas de Lisboa estão suspensas sobre um calor nocturno, iluminadas por a Lua que se exibe timidamente, que é gradualmente absorvida pela cidade da Mensagem. Sei Miguel é alto, magro, o cabelo escuro e espesso, pendem-lhe até as sobrancelhas, exibe um rosto sério e marcado pelas noites de desassossego, tumultuosas, belas, angustiadas, eléctricas, solitárias. Tem um brinco que parece o dente de uma baleia, que lhe dá um aspecto de corsário pronto a esquartejar os peitos palpitantes das ilhas virgens, as sandálias mostram pegadas que marcaram as ruas escuras e velhas da capital. Sei Miguel é um trompetista que conjuga delicadeza com silêncio, apoiado numa banda de três músicos: precursão, trombone de varas, e guitarra eléctrica, criam a base para o músico comunicar, seja através do precipício da leveza introvertida, socorrendo-se da surdina, ou, quando a retira, da extroversão. Por vezes dialoga com algum dos seus músicos, mas predomina, a sua dupla personalidade, que por entre os acordes que jogam por assimetria, e, ou por oposição, une as sete colinas, que são heteronomias de uma geografia acidental, é a poesia da conjugação de um quadro cénico que perturba as ruas alicerçadas no fado. Sei Miguel é o trompetista de uma contemporaneidade cinética, que mantém as raízes no jazz, mas que se encontra numa verbalização independente. Palmas. Ouve-se a sua voz, após meia hora, de concerto no Lounge: “Obrigado. Quando se toca uma peça nova pela primeira vez, há sempre um aspecto técnico, que posteriormente desaparece.”

Sei Miguel, Lounge, 28 de Maio.