segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A Selva

O centro cultural de Oliveira do Bairro é de uma volumetria imponente e a sua arquitectura sobressai sem que se sinta o seu peso sobre a envolvência e o nome é Quartel das Artes Dr. Alípio Sol o apelido “Sol” é por si curioso porque este encontra-se substituído por uma “lua negra quando mata” como Rui Reininho cantará na “O Arranca-Coração” que irá ser tocada pela segunda vez desde que no ano passado fora lançada com a biografia oficial dos GNR “Os GNR—Onde Nem a Beladona Cresce” pois anteontem tocaram-na no Luísa Todi em Setúbal numa sala esgotada onde estrearam “Do Lado B” que começa com “Decapitango” e o cenário é um pano iluminado que reflecte sobre um palco vazio que irá variar durante o concerto para além do Rui Reininho (voz e maracas), Tóli César Machado (teclado e acordeão) e Jorge Romão (baixo eléctrico) estarão Samuel Palitos (bateria) e Paulo Borges (teclados e harmónio) e surgem os músicos e iniciam “Saliva” que tem um meio tempo que contorna os versos e lhes incute um poder inexcedível de tão belo e este tempo perpassa “Reis do Roque”, “Vídeo Maria”, “Bellevue” infectadas com variações melódicas por parte dos teclados do Tóli César Machado e do Paulo Borges responsáveis pela evocação de um psicadelismo sub-reptício que coloniza os sentidos e os deixam sorverem uma felicidade controlada, e a “1991” que devo ter ouvido pela última vez no Estádio de José de Alvalade há 25 anos atrás tem diversos pontos em comum com a versão que consta no álbum “Rock In Rio Douro” mas aprofundam a tonalidade fúnebre que gradualmente se transforma em algo dramático que a coroa com a adjectivação de épica, e o romance vivenciado por dois adolescentes é exposto devidamente em “Asas” em que encontra um vislumbre lampejante da pop, “O Arranca-Coração” com um andamento delicado de lullaby para fazer adormecer crianças que têm medo do escuro e que é hipnotizante, e o psicadelismo pop é da responsabilidade de “Las Vagas”, a surpresa “Mau Pastor” é uma trip comandada pelo acordeão do Tóli César Machado infectada por um psicadelismo rural em que a natureza é moldada pelo poder do sol no mínimo eloquente; a minha avó saiu para o Casino Peninsular onde é recorrente encontra-la numa cave fumarenta onde metia notas de escudos numa máquina em troca da sorte ou do azar algo que entrava em contradição com a austeridade que implementava na sua vivenda com vista para a Praia da Claridade em que tudo era contabilizado como se a sua rotina somente fizesse sentido a controlar o movimento dos seus filhos e netos que não paradoxalmente a perturbavam e a deprimiam e por muitas piruetas que desse era constantemente desconsiderado e se ganhasse ao meu primo no xadrez ela nunca me dava os parabéns antes amuava e desaparecia para junto da criada que cozinhava a esquizofrenia e se me prontificava a passear o pastor alemão ela ficava preocupada com a eventualidade do animal desaparecer e quase sempre tinha vontade de o levar ao mar e instiga-lo a entrar pelas ondas para se afogar mas depois seria incapaz de adormecer com a imagem do seu focinho castanho e preto a uivar por socorro e teria que o ir salvar para evitar o ostracismo da minha avó; “2/3 de Água” e “Tirana” são intervalos pop pois quebram com a narrativa musical carregada de psicadelismo, e já “Pronúncia do Norte”, “Voos Domésticos” e “Sangue Oculto” são células que aparentemente dependem umas das outras quanto a “Sete Naves” é um epílogo tão flamejante quanto poderá ser a felicidade que repara na vida como se esta fosse continuamente apetecível e as últimas “Dançar SOS” e “+ Vale Nunca” jogam por contraste uma é profundamente triste por o narrador se encontrar acompanhado pela solidão a outra impõe que haja uma criança no interior de cada um de nós; e ninguém tinha coragem de a criticar ou de lhe explicar que o seu comportamento não era o de uma avó mas de uma estranha que se fazia passar por avó com a boina ou o chapéu de aba verde com plumas de gansos estéreis e uma écharpe e brincos de vidro porque havia vendido os de prata e os de ouro com rubis para jogar na roleta russa no Casino do Estoril onde gastara a herança do seu pai e que adorava visitar pois delirava com as palmeiras anãs e os palacetes nos quais conviviam os membros da realeza europeia que via nas revistas cor-de-rosa ou na Nova Gente e por vezes comentava com a empregada a elegância destas personagens que ria sem ter a noção exacta do que falava a sua patroa e quando se sentava na poltrona da sala a somar e a subtrair as suas horas de trabalho ficava com um rosto tão perturbado quanto entristecido e depois de muito rabiscar assinava um cheque com menos tempo do que aquele que a pobre trabalhara durante a semana a passar a ferro a lavar as escadas da entrada a limpar a cozinha a arejar os quartos e a lavar a roupa no tanque e a pendurar a roupa a fazer o almoço e o jantar e a coser as colchas de bilros e ao passa-lo para as mãos da Amélia fazia a contabilidade que lhe convinha e a pobre aceitava sem protestar porque não sabia ler ou escrever e os números eram entidades tão abstractas quanto inacessíveis e ao entrar em crise existencial mal saia do seu quarto com a fotografia dela com o meu avó a preto e branco sozinho sobre a parede branca e o roupeiro guardava os vestidos que marcaram a sua vida como o do baptismo e o da comunhão ou do seu casamento e os que envergara para cada uma das vezes que vivenciou a passagem de ano no Pátio das Galinhas no qual dançou com o meu avó como se fosse a última vez e na penumbra lamentava-se por desejar ir ao seu encontro mesmo que este tenha morrido há anos ou contava histórias repetidas em que era sempre a heroína e folheava “O Homem que Olha” do Alberto Moravia e reflectia sobre as potencialidades da observação que inconscientemente havia desenvolvido ao longo da sua vida e outra vez adoecia sem que estivesse verdadeiramente doente e ia à Farmácia Gaspar aconselhar-se e quando chegava a casa fazia um cocktail de comprimidos que lhe anulavam a vontade de beijar o meu avó e adormecia deixando escorrer um fio da saliva pela sua boca de dentes postiços e lábios vermelhos enrugados de tanto apostar na morte e um dia entre tantos outros visitava-a diariamente para lhe fazer companhia na sua casa já não a Amélia e o cão ou a restante família e certificar se jantava a sopa dos pobres e se não se esquecia de seguir a tabela de medicamentos entre os quais uns se destinavam para o seu coração debilitado que lhe tirara forças para sair em direcção do Casino Peninsular e relatava os episódios da sua meninice passada no Rio de Janeiro onde o pai fora proprietário de diversos terrenos e a viagem transatlântica que tanto a maravilhou e a lenta atracagem no Cais das Colunas e antes contemplara o Terreiro do Paço como se fosse uma miragem e o terço de pau santo aplicado sobre a cabeceira da sua cama era da Amazónia onde havia piranhas e cobras de vinte metros que deglutiam vacas com hastes de veados ou bandos de macacos que saltavam de árvore em árvore à procura da fêmea com o cio e sorria inebriada e chorava silenciosamente por causa do seu passado aventuroso que era uma ficção e também sorria com um nó na garganta surpreso por se ter inspirado na “A Selva” do Ferreira de Castro que dormia ao lado do copo com água na mesinha de cabeceira que a obrigava a ir à casa de banho e vagarosamente passeava de camisa de noite pelos longos corredores e beijava a aliança do seu marido ou dava a mão aos pretendentes que o pai lhe consignou e rejeitava-os com um abanar de leque irrequieto e mexia delicadamente na grinalda para a endireitar na sua cabeleira de menina pintada pelo Noronha da Costa e pairava em redor da sala e no quarto gradativamente regressava para a fotografia ao lado do amor da sua vida.

GNR, Do Lado B, 28 de Outubro, Quartel das Artes Dr. Alípio Sol, Oliveira do Bairro.

Dedicado ao Alberto Moravia, Ferreira de Castro e ao Noronha da Costa.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

As Naus

Encontro-me na Pena freguesia de Coimbra no Centro Cultural e Recreativo da Pena onde irá decorrer a Festa D`Anaia e no cartaz desta noite prontificam-se seis conjuntos: Destes 3, Wipeout Beat, Dalla Marta, The Twist Connection, The Dirty Coal Train, The Sunflowers; o concerto dos Destes 3 decorre num palco (Palco Efervescente) junto a um bar e a sua música remete para diversas bandas de hard rock das décadas de 70/80/90 obviamente do século passado e as canções estão devidamente ensaiadas e com qualidade sónica mas há uma questão que lhes é transversal a sua unidimensionalidade devido à falha de rasgos de originalidade; Wipeout Beat (Palco Efervescente) apresentam o seu compêndio estilístico em que há um domínio dos teclados arcaicos adicionados a uma guitarra eléctrica visceral e a vozes que parecem ilustrativas de almas kitschs, e as novas canções abandonam o lo-fi para um psicadelismo synth que deve ser acompanhado de ácidos com rostos da Minnie e do Pluto; Dalla Marta são responsáveis por abrir o palco principal (Palco d`Anaia) e o nu metal com apontamentos electrónicos preso aos cânones instituídos por bandas americanas do início dos anos 90 com a agravante de cantarem em português algo que é postiço, mas conquistaram o povo; The Twist Connection (Palco d`Anaia) derramam o seu rock and roll que é de tal urgência que os projecta para um patamar de excelência com a vantagem de terem Carlos Mendes na bateria e na voz e que é um frontman que se engrandece em palco como se este fosse o viveiro ideal para habitar eternamente e isto tem ligação com o seguinte: quando há um inesperado corte de energia ele não para de tocar bateria e é acompanhado pelas palmas da multidão e quando reaparece retomam a canção no preciso ponto onde haviam sido interrompidos (impagável!), e se na recta final faz diversas declarações de amor à música e à vida que são de facto sentidas e se alude aos amigos que vieram expressamente para o ver é porque conhece o valor da amizade e quando se atira do palco e aterra de joelhos no meio do público e canta é porque está a personificar uma personagem que é maior do que a vida, a nota é de tal forma positiva que há que qualifica-los como o melhor concerto da Festa D`Anaia como a seguir irei justificar; The Dirty Coal Train (Palco d`Anaia) instituem um garage em que as canções são curtas e agressivas mas que dada a similitude impõem uma única perspectiva para além de alguns desajustes entre o baterista e os outros dois guitarristas que são inadmissíveis, há a destacar a líder de vestido e por cada vez que roda e movimenta as suas pernas com pés em saltos altos pretos ganham uma dimensão de beleza que podem ser qualificadas como as mais sexys do rock and roll por aqui semeado; The Sunflowers (Palco d`Anaia) versam pelo punk rock com tonalidades profundamente sujas e que são de uma eficiência atroz mas não ultrapassam estes pontos e acrescentar-lhes algo sufocante para além de não almejarem comunicar com o público apesar da mosh; alguém havia dito que tudo o que ela via à sua volta existia para lhe engrandecer o ego alimentado por um hábito maldito que a perturbava quase diariamente ou que a sua tatuagem era dedicada ao 666 que manchava um dos ombros algo que paradoxalmente convivia pacificamente com a Cruz de Cristo que bailava no seu decote pronunciado que eu acompanhava com o olhar e media o tamanho dos seus seios e disfarçava o sorriso nervoso que denunciaria tal ousadia e o seu rosto de boneca sevilhana retribuía-me a simpatia e esticava o dedo de aranhiço com unha de gel para o interior do copo com whisky e as pedras tilintavam no vidro fumado e perturbava o silêncio contaminado com rock and roll vertendo observações que lhe pareciam pertinentes e que pontualmente encontravam ressonância na minha cabeça e para disfarçar este distanciamento abanava-a como os cães que os portugueses colocavam no banco traseiro de carroças movidas a gasóleo e ela acreditava que estávamos a ter uma conversa algo que a deixava radiante por encontrar alguém atento à sua divagação filosófica sobre o vestido de noiva que desejava vestir num dia que seria único e irrepetível ou assumia que havia dias em que não conseguia sair da cama e distraia-se a comer pipocas e a ver a Quinta dos Famosos e pegava no telemóvel e votava no seu favorito como se estivesse a faze-lo para as eleições legislativas e remexia os olhos azuis que brilhavam com tanta tecnologia e por vezes fazia um intervalo na esperança que eu tomasse a iniciativa a convida-la a abandonar a mesa do Café Académico em Coimbra porque estava com saudades dos seus primos de Buarcos e do pai que fora tripulante de um Dory e quase ficou sepultado no gelo num entardecer em que caiu subitamente o nevoeiro e da mãe que cozinhava para os restaurantes salgados de carne camarão e delicias do mar de bacalhau e dos irmãos gémeos que eram modelos que se despiam no calendário dos bombeiros voluntários um era o Junho o outro o Julho e perante a minha inacção acendera um cigarro que ardia devagar como se de cada vez que ela o pose-se na boca um novo pensamento surgiria e levá-la-ia a contar o seu percurso académico do qual tanto orgulho sentiram os pais que expunham a sua fotografia numa vitrina com a capa a bengala e a cartola de palhaço na Queima das Fitas de Coimbra sobre a sua cabeleira loura ou abanava o tronco mas os seios não saltitavam e sorria e perscrutava-me através de um olhar de lado e passava discretamente as mãos sobre as pernas tão elegantes quanto depiladas para acomodar as meias de vidro pretas num gesto ostensivamente sensual que perturbava a minha personagem fria e distante de quem estava acompanhado por uma paciente num divã de psiquiatra e ao apagar o cigarro sugeriu que estava numa de seguir para o Bairro Norton de Matos para se encontrar com uns amigos e demos um salto no tempo e estacionamos contíguo a um prédio com uma escada lateral que nos dava acesso a uma porta com um corredor que nos obrigava subir umas escadas sujas e gastas e fomos recebidos por uma família de africanos que nos convidaram para a cozinha que na mesa tinha cristais misturados com Vitamina C e ela enrolara uma nota de cinco euros e snifava-os de uma só vez para bater melhor no seu cérebro de princesa e acreditava que os pescadores sentados nas ameias da muralha de Buarcos a coser as redes estariam a bordar o seu vestido para o dia em que tanto desejava casar na Capela da Nossa Senhora da Conceição com o seu noivo armador de navios de pesca em Aveiro e empunhara-me a nota e coloquei-a na narina direita e inspirei uma nuvem rica em carbono que me transformava numa personagem em que somente conhecia os impulsos mais básicos e a luz apesar de ténue marcava-me o olhar como se fosse uma chama tão próxima quanto distante e ela comprou uma grama de cocaína e deu-me a mão e fizemos o percurso inverso mas que me parecia disfuncionalmente geométrico e o carro arrancara e o seu rádio é tecno próprio dos carrinhos de tuning e as ruas molhadas pareciam que espelhavam ouro da Gold Strike e no vidro as escovas diluíram a chuva miudinha num rasto de cauda de cometa perdido no espaço e os semáforos piscavam rapidamente e ao rolarmos sobre a estrada do campo pus-lhe a mão sobre a teia de vidro e apertei-a e ela sorriu mas não retirava o olhar da estrada estreita e larga iluminada por dois focos perpassados por sémen que nos encaminhavam para um labirinto barroco em que o tempo era tão excessivo quanto sufocante que me queria sacrificar à vida e por instantes abandonei o meu corpo e regressei à porta da minha casa na Figueira da Foz e na garagem ela estacionara o carro e ao entrarmos na sala minimalista as luzes surgiram num repente que quase me desequilibraram e habilmente liguei o aquecimento central e os Kraftwerk irromperam das colunas de válvulas e sentia cada beat como se fosse o do meu coração intoxicado e se fosse uma estátua ficaria eternamente sentado no sofá preto a vê-la dançar como uma bailarina numa caixa de espelhos que despia as alças do vestido vermelho e se aproximava sorrindo e eu corria o fecho e ela afastava-se a abana-lo como se fosse o pêndulo de um relógio de pé antigo versado em sensualidade e somente com a lingerie preta decretara que viesse na minha direcção e saltou lentamente como se fosse uma aranha da Louise Bourgeois e a sua língua entrava-me pela boca e a sua saliva era uma mistura indefinida de fármacos com tabaco e whisky e que se enrolava livremente pela minha orelha e um fio quente eléctrico percorria a minha coluna que acendia o meu libido que ela apalpou e retirava-o das calças e depois despiu as suas cuecas e susteve-o nos lábios vaginais e devagar penetrei-os e estalaram as molas do sutiã e os seus seios e a Cruz de Cristo saltitavam indefinidamente na minha boca num ritmo seu meu…; no segundo dia é a vez dos Salvador D`Alice; Eduardo Martins; Senhor Doutor; Mighty Sands; Samuel Uria; Flying Cages; Les Lullies; Salvador D`Alice (Palco d`Anaia) apresentam um compêndio de quatro canções com estruturas diversas que são anuladas e ou acrescentadas do jazz, rock, rock progressivo, blues, o problema que as enfermam negativamente é a inexistência de uma narrativa sonora em que haja uma base que faça a ponte para cada um destes géneros por vezes feridos por dinâmicas desajustadas; Eduardo Martins (Palco Efervescente) apresenta-se com uma guitarra acústica ligada a pedais que lhe dão um psicadelismo ténue e que se destacam daquelas que partem exclusivamente da guitarra e do dedilhar que remete para um academismo com origem em autores da música clássica mas que infelizmente não é devidamente aprofundada; Senhor Doutor (Palco d`Anaia) é um jovem consciente da sua persona que canta sobre a rotina dos sentimentos amorosos própria para uma novela que nunca irá para o ar, porque há uma fragilidade na pop com pretensão de ser kitsch para além de não conseguir transmitir emoções através da sua voz que esteve inúmeras vezes desafinada mas que paradoxalmente cativou o público e ainda há uma outra agravante é a pobreza estilística das suas letras que são de um vazio arrepiante e como exemplo posso dar o seguinte: “Havia de mudar a sopa amanhã”, e nem a participação especial do Samuel Uria o retirou do atol da mediocridade; Mighty Sands (Palco d`Anaia) são emissários do universo californiano da década de sessenta e que é apresentado com uma delicadeza que os infecta de uma beleza vintage que cria quadros em que há palmeiras que ladeiam ruas com mansões e ou vivendas de subúrbio onde viveu na adolescência o Phil Spector que tinha o dom da melodia e que se cruzou com os Doors e outras tantas bandas que hoje são icónicas, ideal para serem ouvidos numa ilha onde domina exclusivamente o pôr-do-sol à frente do qual o namorado beija a namorada como o fazem dois dos músicos duas vezes; Samuel Uria (Palco d`Anaia) faz-se acompanhar por um partner ligado a um teclado e a música pop está devidamente articulada com as letras que são consideravelmente melhores do que as do seu amigo Senhor Doutor, e as mais compridas são substancialmente melhores do que as curtas nas quais o tondelense não consegue encaixar a voz no beat mas já quando a guitarra eléctrica encontra a percussão a qualidade da sua prestação sobe, porém tudo se desmorona quando pede palmas e estas eclodem e de seguida censura-as: “É pá vocês batem palmas a tudo!” e a constante e irritante vénia entre o Samuel Uria e o Miguel Ferreira no intervalo das canções é ridícula e boçal, e após terem ensaiado um combate de boxe receberam uma ovação que os coroou com um falso triunfalismo; Flying Cages (Palco d`Anaia) na substância configuram uma banda indie pop com melodias muito bem desenhadas e de teor sónico apreciável para além de estarem sintonizados com agrupamentos similares do estrangeiro e é esta relação que os prende a uma tipologia que se limita a ser um espelho mas o que lhes é exigível é que o recriem e lhe ofereçam sangue novo, o público delirou; Les Lullies (Palco d`Anaia) convocam o garage nova-iorquino que tem estruturas rítmicas cruas e as vozes são anúncios publicitários para conduzir os dementes a consumir a demência dos outros e esta turbulência repercute-se nos presentes fora de si.

Festa D`Anaia, 21 e 22 de Outubro, Centro Cultural e Recreativo da Pena, Pena.

sábado, 7 de outubro de 2017

Sífilis Versus Bílitis

Acendo mais um cigarro e em vão tento ler uns rabiscos indecifráveis e socorro-me de um rascunho de uma peça de teatro: “Ao reflectir sobre as lápides cultivadas aleatoriamente num jardim de almas num comício de surdos-mudos, revejo-a a desfilar num carro de vidros fumados; e a ser carregada pelos amigos e familiares que em passo lento encaminhavam a minha mãe por entre ciprestes viçosos, e a deitavam ao lado de uma cova húmida para onde os coveiros a desciam suportada por cordas; e a terra ecoava sobre o caixão na esperança remota que acordasse do seu sono profundo…”, atiro a peça no tampo da minha secretária negra e tento produzir uma raiva suprema que incorporo e segrego lágrimas que não consigo fazer correr pelo meu rosto e pouco a pouco como se estivesse no funeral da minha mãe elas vogam sulcando-o de um brilho de dor transparente; a sala do Teatrão encontra-se vazia à espera dos fãs de TAV Falco que nasceu nos Estados Unidos há muitas décadas atrás e que se faz acompanhar por um quarteto de músicos que se denominam de Panther Burns e se dividem entre a guitarra eléctrica, baixo eléctrico, bateria e teclado, vestem fatos escuros e há dois que usam óculos escuros, e introduzem um instrumental que é como uma passadeira vermelha à entrada em cena do TAV Falco (guitarra eléctrica/voz) que é de uma elegância extrema e que é recebido com entusiasmo pelos presentes; e as canções variam entre o rock pejado com calor californiano derivado às guitarras com as que remetem especificamente para o fim da década de sessenta do século XX; a pose de TAV Falco é a de um crooner exasperantemente sóbrio quanto profissional pois nos intervalos criticava o estado dos seus monitores que o incomodavam; e ainda discorrem pelo blues e pela pop mas sem caírem em clichés antes revelam um universo alternativo que se poderá entender de vanguarda para além de estar associada a uma marginalidade que lhes conferem uma decadência dandy; TAV Falco ora canta ou fala de verso em verso não se percebendo por vezes o que dita esta alternância algo que revela estranheza outras misticismo como se o que narra fosse ditado num código que transpõe universos em que não domina o idílico; e por vezes os diversos géneros musicais acima assinalados são polvilhados com pó kitsch e assim eliminam qualquer eventualidade de se transformarem numa caricatura do passado; apago o cigarro e acendo um outro e fumo-o e improviso um galã numa telenovela da América latina ao qual acrescento um tom poético ao telefone que não agrada às antenas de televisão, (“sim?”), “Conchita ´OIGA` you do the smack” (1), e sem que a minha contracena responda acrescento: “Let's say at half past seven I want you back” (1), e tento acrescentar sedutoramente, ”All right?” (1), e sorrio tristemente perante a submissão da minha mulher que me venera e que obedientemente me retribuía o seu amor de cores outonais; olho para o retrato do meu pai que tinha por hábito levar-me a um estúdio para as fotos para a caderneta escolar, e sugeria ao fotógrafo que eu era um excelente modelo que contrariado aceitava a sugestão, e colocava-me à frente de um telão onde duas velhas vestidas de folhos brancos bebericavam chá num jardim com ilustres begónias e sapinhos das Caldas embrulhados numa renda de filigrana a saltitarem na relva como se fossem mais leves que o ar, numa geladaria pedia um gelado a uma senhora gorda de bata branca e touca na cabeleira que sorria enquanto passava a língua pelo chocolate e pela baunilha (e agradecia à minha mãe a felicidade que me estava a proporcionar), e fecho os olhos e coloco as mãos juntas sobre o peito e sou um anjo que está a efectuar o milagre da multiplicação dos pães e a Sua mão abençoa-me por ser tão misericordioso para com a miséria humana, e estou de fato de banho deitado num leito de mar acompanhado por uma sereia de cabeleira loura postiça em bikini cor-de-rosa que transmite uma estação de rádio com música ligeira que besunto com bronzeador para mudar a emissão, e sentado num cadeirão junto a uma lareira de tijolos de burro castanho ladeado por uma árvore de luzes que piscavam o Natal esperava que o meu pai a desce-se e me oferece-se a bola de cristal que tanto desejava pontapear num campo de futebol na Praia da Claridade, a minha avó batia palmas entusiastas perante o seu conjunto de lençóis na cama de pregos para enfrentar o Inverno que era a sua prisão; o concerto está a decorrer com segurança algo que incute confiança ao TAV Falco que gradualmente se familiariza com a multidão disposta à bajulação; e ainda apresenta uma canção de dois minutos com as guitarras num rock visceral; e durante uma outra TAV Falco meneia a pélvis timidamente como se estivesse a homenagear o Elvis Presley; e deste parece que executam uma canção de trás para à frente que é de facto genial; e o kitsch surge numa outra e remete para os bares de prostitutas de Tijuana amadas pelo Jack Kerouac no “On the Road” mas que não é redundante (antes pelo contrário); e o rock and billy é disposto segundo o seu cânone mas manchado de um negrume que a torna épica; TAV Falco apresenta os Panther Burns e questiona se estamos familiarizados com o “Missipi River” e as duas canções que se seguem são trips com mezcal e cocaína numa bandeja casquinha num cenário com vista para uma estrada que se alonga ou diminui conforme o nível de intoxicação, memoráveis; e quase a encerrar o concerto que está no limiar das duas horas de êxtase e de supremacia estética, TAV Falco abandona a guitarra eléctrica e somente com o microfone entre as mãos canta como se fosse um cantor de blues num exercício inebriante de tão sedutor; as palmas que estão a ecoar apesar da violência serão sempre escassas para homenagear TAV Falco; e personifico um poeta que está num pontão sentado num sofá a ler “Sífilis Versus Bílitis” (2), e que tentava poema após poema esquecer os dias de sol que divagaram por entre nuvens incertas e para mitigar a solidão beijo um careto com dentes lavados de fresco, (“sim?”), “All right?”(1), o vento contorna os nossos escafandros para enfrentar um calendário que teima em prosseguir por entre destroços de um aquário com serpentes e virgens num somatório de coincidências improváveis, e num espelho encontro o meu rosto difuso para dizer-lhe que “eu” não sou uma personagem mas uma miríade iconoclasta que se revela ao olhar dos que tentam identifica-la como se “eu” fosse eu.

TAV Falco and Panther Burns, 6 de Outubro, Teatrão, Coimbra.

Dedicado ao meu guru Rui Reininho.

(1)- "Hardcore (1º Escalão)" (Rui Reininho, Miguel Megre, Vítor Rua) incluída no álbum dos GNR “Independança” (1981).
(2)- REININHO, Rui, Sífilis Versus Bílitis, Lisboa, Quasi Edições, 2006.


quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo

Desconheço em que espaço me encontro a rabiscar palavras pretas sobre fundo branco as quais são reflexos turvos do seu rosto de sibila que traduz em cada olhar sobre a realidade a moldura de um romantismo pejado de pétalas vermelhas num pontilhismo que lhes oferece um distanciamento no qual é perceptível destrinçar o mistério da sua aura de anjo que caiu por acidente numa terra que não estava preparada para a albergar no seu seio julgo-a iluminada por uma luz artificial que lhe confere uma cor de lustros areados por um roberto vestido de mordomo como se tivesse sido bronzeada por um sol escravo das estações do ano e ao pisar as ondas do mar o seu corpo é sucessivamente transcrito para o ritmo da maré que o refaz e o desfaz num jogo desordenado que lhe confere uma efemeridade eterna que somente é reflexo da sua beleza alheia da natureza humana; acabei de sair do Pátio onde decorreu o jantar de aniversário do Carlos Dias ou Carlos Subway (militante nos Wipeout Beat) e da fã número num dos Subway Riders Dulce Coimbra, transporto uma bateria preta e a rádio debita uma voz que repete “cena” e “imagina” uma metanarrativa absurda que me tortura e desligo-o paro à porta do Pinga Amor e descarrego a bateria que os Subway Riders irão utilizar daqui a pouco; e desta vez Carlos Subway (voz), Victor Subway (guitarra eléctrica), Calhau Subway (maracas, saxofone, voz), Chau Subway (bateria), Augusto Subway (teclados) fazem-se acompanhar por João Pedro Viegas Subway (saxofone), e as canções são sufragadas segundo critérios diversos: a composição/decomposição, minimalismo e o seu contrário, o jazz versus o rock, o romantismo kitsch, a pop e o anti-pop, o dub e o techno; umas são citações de clássicos da cultura anglo-americana outras originais que por vezes são tão pastiches quanto hipnóticas tecidas com a vertigem sob o olhar dos tímpanos, há a destacar a visceral performance do Carlos Subway tão enraivecida quanto um cão alemão de crómio a orientar um rebanho de judeus para a Capela dos Ossos; se é ela à janela a meditar sobre o silêncio que é a energia do nada e no vazio cresce uma flor carnívora no meio de juncos policiada por espantalhos que a aprisionam num sombreado intermitente soprado pela aragem diurna e creio que está à minha frente a questionar-se sobre os efeitos nocivos do tempo em que tinha que enfrentar os alçapões de um palco onde julgava que era a musa de um dramaturgo do absurdo e tento acariciar o seu perfil que se esfuma mas mesmo assim desenho com o dedo no ar o seu sorriso tão cândido quanto delicado que me transmite a totalidade do seu ser e que por ventura um dia terei o talento de descodificar.

Subway Riders, 4 de Outubro, Pinga Amor, Coimbra.

Festa de aniversário do Carlos Dias e da Dulce Coimbra.