domingo, 23 de junho de 2019

O Triângulo Mágico -- Uma Biografia de Mário Cesariny

Parece que tento alcançar algo que desconheço a sua forma e conteúdo pode ser o que bem entenda uma maçã ou um canivete suíço ou a cabeleira despenteada de uma velha de papel tenta-me risca-la da minha memória e espalha-la pela minha casa com sala mortuária onde se nasce e se morre consoante as estações do ano rubrico documentos sobre estatísticas como se fosse um respeitável funcionário público mas aparentam diários de um desconhecido que em tempos se fez passar por mim que por vezes encontrava no espelho a fazer a barba ou a procurar as cicatrizes delinquentes tento lê-lo mas a letra é ilegível mas esforço-me por descodificar esses dias separados por fronteiras movediças imersas num nevoeiro que se solidificava numa opacidade que esquartejava o meu cérebro tentava representar-me numa peça vaza de conteúdo e que me incutia a mortalidade que supunha numa sobreposição de impulsos que actuavam paradoxalmente subjugando a minha energia a um nível zero ou menos um ou dois numa variação continuamente negativa que me emergia um circuito de funesta e provável frustração que somente poderia ser mitigada pela ausência e a realidade era um tédio que era uma imersão no desencanto; Big Sandy & his Fly-Rite Boys são um quarteto da Califórnia liderados por Big Sandy homem de poupa e guitarra acústica a tira colo acompanhado por um contrabaixista e um guitarrista de guitarra eléctrica e um baterista que se encontram sobre um palco na Praça do Comércio em Coimbra à frente da CoolaBoola Colab (que se define da seguinte forma: “Co. de conceito ; Co. de cooperativa; Co. de co-Laboração; Co. de companhia; Co. de co work; Co. de concepção; Co. de Coimbra; LAB de laboratório de ideias; LAB de laborar; LAB de laboratório de experiências”) que é a promotora deste espectáculo e de outros como o que se realizou no dia dezanove no Salão Brazil pelos Colton Turner & The Melows e ainda Portuguese Pedro nesta mesma praça no dia vinte e este ainda irá tocar antes de Big Sandy e os seus rapazes algo que perdi por atraso rodoviário quanto aos californianos são visceralmente rockabillys mas com um travo de alguma latinidade que projecta uma América multicultural e consequentemente racial são músicos exímios porque fazem jus a uma herança que tem como ponto de partida uma linguagem rural que se transmutou para a urbanidade e que alterou radicalmente uma cultura predominantemente segregada que através da música encontrou uma ponte para uma outra forma de liberdade que até aí era inexistente esta é a revolução que Big Sandy enaltece e que é ora rocker ou um crooner latino mesmo que isto possa ser visto como um atentado ao rockabilly e não posso esquecer a beleza e a envolvência da voz da Ruby Ann ou a hillbilly prestação do Portuguese Pedro e ainda a quase tempestiva saída do palco do Big Sandy porque um jovem havia tentado agredir uma jovem e que provocou um pequeno tumulto no público; digo que alguém está a contemplar a paisagem mas esta afirmação carece de veracidade pois ao meu redor crescem outros que como eu se mantêm atentos às folhas que atiro para o interior de uma lareira que arde e o vento levará esses restos mortais como se cada um fosse carne da minha carne sangue do meu sangue através deste sacrifício mudo de pele tal cobra e irrompo subnutrido e com sede de leite materno e da carícia paterna se chorar talvez sejam satisfeitos os meus desejos se me calar voltarei ao útero ligado a um cordão umbilical que me alimentava com amor e onde persistia um contínuo escuro que se assemelha a um paraíso perdido algures no Mediterrâneo este é o último dilema da minha vida orgânica que me submete a uma pulsação cardíaca que perpetua-me como ser vivo mesmo que queira manda-la parar jamais respeitara a minha ordem o coração é um órgão que é um rei ou deus do diabo que alimenta um sistema de maquinaria do século XXI que transforma o eucalipto em papel isto é sonhos em pesadelos tento esquecer-me do seu batimento para inverter esse resultado e alcançar a maçã e entrega-la a uma estátua que se faz passar por uma odalisca algo que lhe atribui um exotismo decadente de objecto de puro prazer e perante o seu mutismo entrego-me em cada gesto desatento ou verbo perverso e expressivo oiço portas a rangerem se fossem gatos e isso seria perfeito mas tal é tão utópico que quase me faz parar a narrativa sobre a minha escrava que com outras se diverte a brincar às escondidas ou a assaltar as bolsas de prata que escondem o bilhete de fugida para um avião ou um comboio que se desloca furiosamente para o interior de um túnel com louras dependuradas por cordas enroladas ao pescoço que quando estavam vivas seduziam instantaneamente os homens debilitados e amestrados por mulherezinhas pobres de tão ignorantes mas não sei quem foi o responsável por este quadro aparentemente destituído de simbolismo talvez tenha sido alguém sem coração e por isso destituído de razão é possível que sejam meras bestas que ditam a desordem e um mal-estar nos grupos de feministas que lutam contra a instrumentalização da mulher tornando-a num objecto sem conteúdo.

Big Sandy & his Fly-Rite Boys, 21 de Junho, CoolaBoola Colab, Coimbra.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Devotion

As mãos querem correr para fora da sensibilidade ou da possibilidade de redigir um testamento onde constem os desperdícios dos dias e a reciclagem dos sentimentos ou transformar o fuso horário num outro domesticado segundo esse ditador que é invisível e que poderia ser uma larva ou insecto ou talvez a lagarta a abandonar o casulo para se transformar numa bela borboleta de asas multicoloridas que ao esvoaçar é tão leve quanto poderão ser os pensamentos que se libertam do jugo do ditador rude e atroz parece de ficção mas não o é reclama para si o que pertence a esta gente suja e gasta sentada à borda da fronteira entre a fome e a miséria há lutas algures no meio de militares contra militares fascistas contra fascistas e cada um tem o seu ditador um magro o outro um velho desgraçado que transmite a sua doença venérea aos escravos da sua herdade que lhe parece o seu país não há futuro neste ou com este outro ser do mesmo poço fundo repleto de seres microscópicos se regressa-se o que deveria ocorrer como se fosse algo inevitável deveria suceder e se tal se cumprisse que fosse enquanto se aparelha um ser bicéfalo com cornos e outras decorações do domínio da imaginação do senso comum e se fossem mortificados dos braços tatuados com rostos de canibais e o resto entra-se em autocombustão a justiça estaria a se instituir como denominador entre os rebeldes que esfomeados se insurgem contra o preço milionário do pão e as migalhas para os pombos têm o preço da cocaína que passeiam num quietude de figuras de um museu da natureza e o bem-estar mas esqueléticas e com falhas na penugem por vezes irrequietas num arrulhar de pássaro solitário que esfomeado patrulha a varanda que se abre para um azul que teima em se empalidecer como se através da negação surgisse algo diferentemente belo mas aparentemente é um dia igual ao anterior com sangue nas ruas desta cidade de paredes feridas por balas de um calibre que vai além da sua proporção e que simbolicamente representam a violência que se divide em diversas e perniciosas manifestações a mais violenta é a tortura dos fascistas sobre os fascistas; a proposta para esta noite fria de Junho é a união de duas entidades naturalmente distintas os GNR ligados à corrente eléctrica com A Banda Filarmónica de Matosinhos-Leça da qual é presidente o Rui Reininho que teve a amabilidade de os convidar para abrilhantar o concerto e estes apresentam um medley que começa pelo hino da RTP e pelo meio tocam “Maria Faia” música popular para um público que cantarola as letras das canções e ao fim de vinte minutos desta temática surgem os GNR que se fazem às “Asas” e ouve-se o sustentáculo da filarmónica que enaltece a beleza da canção assim como sucede em “Popless” e esse papel é de realçar nas canções predominantemente lentas haverá em outras que tal é diminuído quase ao mínimo como se estivessem somente a decora-las mas ganha-se numa performance sonora vibrante por parte dos GNR que jogam entre si a pop em “Efectivamente” ou “Mais Vale Nunca” e o rock psicadélico de “Las Vagas” e ainda reggae em “Mosquito” e o dramatismo pop em “Morte ao Sol” e a eloquente por ser naturalmente épica “Pronúncia do Norte” a versatilidade estilística é representativa de quase quatro décadas a reafirmar novas fronteiras à música à passagem dos mutantes GNR; que mesmo que confessem a verdade dos seus actos jamais serão absolvidos deste sacrifício em que a vítima geme e chora antes de ser manietada com mãos de ferro com uma corrente presa aos pés de cimento e que empurram para o interior de uma piscina de água salgada e alguém salva-o e deixa-o na borda à espera que se desequilibre e ouvem-se fogos a estoirar ao longe surgem focos de fumo sobre as cabeças dos revoltosos que descodificam-no como focos que se elevam ao céu num transferir de almas que somente sobem e nada desce nem um raio de sol parece que repentinamente escureceu porque alguém correu o pano do teatro italiano onde as marionetas jogam xadrez contra damas numa imagem que representa o que se transmite das ondas de revolta que assolam as estações de televisão manipuladas pelos fascistas e minada de comunistas e o povo aparentemente serena na expectativa de que o fio que os prende ao silêncio que seja finalmente talvez um dia cortado e se tal suceder que seja como o sempre foi um novo fascista que institui as suas leis que se regem segundo os seus estados de alma ou pelos caprichos decadentes da sua consorte que consome o tempo a mima-lo a trata-lo por pai a paparica-lo e a dar-lhe tautau ou a roubar-lhe a constituição para analisar as alterações introduzidas pelos assessores de multinacionais de produtos de origem animalesca em vias de extinção.

GNR & A Banda Filarmónica de Matosinhos-Leça, 10 de Junho, Senhor de Matosinhos, Matosinhos.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

The Nick Adams Stories

Há um sonho que é mutante e que se repete sem o encontrar reflectido na minha rotina de pedinte de palavras ou coleccionador de números se tal algum dia será possível parece que estou à espera do táxi mas mais uma vez nesta semana deixei-o passar não tinha o dinheiro para a corrida e a alternativa seria caminhar para o centro dos centros comerciais mas por outro lado quem teria a cordialidade de me transportar e por ver-me assim isto é sem alternativa tinha que arriscar a primeira opção algo que se equiparava a horas ao sol e ou à chuva quando esta era miudinha não sei que idade é que tinha nessa época talvez ainda deveria ser adolescente ou talvez na terceira idade porque me recordo que as pessoas tinham muita repugnância quanto à minha pessoa que julgavam suja e a cheirar mal algo que recordo com dor e pesar tão ferido quanto discriminado mas era tão-somente o reflexo do que me circundava que transformava o meu exterior em algo redutor e que no seu centro interior mantinha-se vivo o adolescente que por vezes se movimentava de forma oposta às minhas decisões de adulto por muito que me custe cala-lo em nome de um ideal de vida em que os sonhos são meras rotinas existencialistas e que talvez haja harmonia entre pares e seja celebrado mais um aniversário de casamento cada uma das etapas a percorrer parecem funestos encontros religiosos perante isto não consigo perguntar-me porque é que me tornei num utensílio subjugado a estatísticas e outras formas de estudar o comportamento humano e era consultado por diversos especialistas que redigiram extensas cartas a questionar-me sobre a veracidade dos meus cálculos que eram citados no Ministério da Educação; se fosse outra pessoa a surgir em palco essa seria Flak vestido para o Woodstock acompanhado por um grupo extenso de músicos virtuosos que se imiscuem no rock predominantemente psicadélico com solos épicos pela guitarra eléctrica de Flak ou mergulham no interior de uma pérola em que se vislumbra uma pop que remete para o lo-fi e se por vezes é prog esta é vilipendiada por uma turbulência rock que lhe é superior em poder sónico mas além disto há Flak a cantar como se estivesse a se revelar pela primeira vez; Diabo na Cruz são um retrato de dois ou mais universos um dos quais é ao cancioneiro popular português mas desconheço a proveniência da mesma apesar da guitarra braguesa que toca o cantor que está a substituir o lesionado Jorge Cruz e esta toada resume-se ao compasso dos bombos e a diversas e vagas divagações predominantemente estéreis por exemplo na música celta depois há a pop e rock e algum prog rock que resultam porque são bem executados mas sem qualquer criatividade inerente a esse processo e ainda soma-se a entoação festivaleira do cantor que é de facto um ruído; Moonshiners se fosse possível pô-los a secar num estendal na expectativa de que algum dos pingos fossem algo que não um rock and roll de tal forma tipificado que me surpreendi quando se dirigiram em português para saudar a festa da Rádio Fáneca pois julguei-os americanos já que é daqui que brota a sua sonoridade enleada em inúmeros lugares comuns que são um mero bocejo para além do nível técnico dos músicos ser de um nível baixo excepto o tipo do saxofone e o vocalista/harmonicista; Conan Osíris é um show digno de discoteca já que é música de dança diversificada por exemplo pelo ítalo disco ou a synth pop isto transversalmente misturado com samples orientais que lhe conferem consistência estética a isto soma-se a sua relação com o bailarino que por vezes é somente um figurante outras acende em si a atenção do público e por fim ou se calhar não as letras são diários de um escritor que transgride a lógica da rotina e lhe dá um significado difuso mas que entra em contradição com a forma infantil com que se dirige aos fãs por “bebés” seguido por algo inconsequente e há o reparo em relação à sua voz que nem sempre esteve afinada e com entoações que impedem a percepção do que canta; esses anos fizeram de mim um homem dependente emocionalmente por Cristina que tinha como figura uma simples sardanisca à qual por vezes pisava para a separar da cauda que a prendia à terra ela era pragmática e irresoluta nas suas determinações estilistas que se estendiam à decoração do apartamento que era predominantemente colorido de amarelo ou aos quadros com narrativas naturalistas copiadas dos clássicos franceses algo que ela entendia como “cultura” e dizia-o como se estivesse a perfumar-se com a palavra quando a traduzia para francês com alguma dificuldade e jamais saia de casa sem o cão pequeno de pêlo caído até ao chão parecia um trabalho do Mel Ramos e o cão por si só poderia constar na colecção particular do Jeff Koons e quando saiam para ver as montras o silêncio assemelhava-se ao ruído que ela fazia ao telefone ou então a ver televisão com as amigas para um chá perante estes rituais de consumo não sei se tal encontrava reflexo com a minha crónica falta de dinheiro ou se de facto a Cristina existiu mas foi num outro sonho que poderia ter redundado em pesadelo mas ela era de facto de uma beleza decadente por não encontrar no espelho o seu rosto mas o que fora idealizado como o mais belo e essa máscara tornava-a única por ser tão sedutora perguntei-lhe o que estava aqui a fazer o retrato de um rei e ela sorria como se algum amante tivesse esquecido uma peça de roupa íntima e de seguida um sorriso seguido de um silêncio nervoso e o argumento é que era da autoria de um artista plástico onde se devia “investir” o D. Carlos estava tão gordo que era difícil de o identificar talvez através do bigode fosse o centro do seu rosto algo que era destituído de uma estética filial ao original ao aumentar-lhe o peso o seu poder real decresce pois jamais seria visto como um modelo pelos soldados que lhe foram fieis e por outro lado tornava-se um alvo fácil a potenciais atiradores como acabou por suceder mas sobre este episódio a Cristina não me ouvia e eu não a censurava talvez um dia abandone este palco e volte a ser quem um dia se sonhou como livre.

Festival Rádio Faneca, 7 e 8 de Junho, Ílhavo.