sexta-feira, 30 de maio de 2014

Winesburg, Ohio

Os ecrãs laterais emitem um desenho vermelho circular que aparece e desaparece ao ritmo da batida tribal que saí das colunas. O público, constituído por noventa mil almas, testemunha o despertar de um ritual com cinquenta anos de carreira. Uma voz off informa: “Ladies and gentleman please welcome The Rolling Stones”. E da parte de trás do palco surgem: Charlie Watts, que se senta no banco da bateria, Keith Richards, Ronnie Wood e Mick Jagger, este salta para à frente do palco como uma presa que foge do cativeiro imposto pelo raptor. “Jumping Jack Flash” tem como centros dinâmicos os breaks da bateria, que funciona como o catalisador de um ritmo curto e conciso onde se encaixam as guitarras: “But it's all right”, “Jumping Jack Flash, it's a gas, gas, gas”, e Mick Jagger atira o braço esquerdo para à frente e dança, a histeria do público é generalizada. Da dupla de guitarras, que se relacionam através de acordes alternados e por solos mínimas, sobressai a de Keith Richards que transfere o seu sangue através de um solo magistral. Mick Jagger canta através de um grave que assoberba uma textura agressiva, e a omnipresença do teclado serve de base para o extorquir de uma felicidade efémera. “Jumping Jack Flash, it's a gas, gas, gas”, “sing it!”. A progressão que encetam é curta e tensa como uma navalha a retalhar um coração arrítmico. “It`s ok!”, “dance”. Mick Jagger coloca os braços para à frente do seu peito e abana as suas ancas de septuagenário adolescente. O solo da guitarra elétrica de Ronnie Wood marca o fim a uma canção que pretende assinar um testamento em que os herdeiros são impedidos de ignorar a profundeza e a eficácia estilística dos Rolling Stones. Na segunda canção menorizam ironicamente a sua arte através de “It`s only Rock and Roll (But I like it)”. As guitarras elétricas dominam sobre o ritmo rock, tão jovialmente quanto uma declaração de guerra aos que rejeitam que o Rock and Roll esteja destinado ao panteão da liberdade. E o solo de Keith Richards trespassa essa nomenclatura mas não a destrói, antes aprofunda a perspetiva que revela resumidamente uma insustentabilidade acutilância vibrante, a voz de Mick Jagger rasga a garganta e canta: “I kown it`only rock and roll but I like, like it”, “can`t you see?”. A dinâmica que os Rolling Stones estabelecem é a partir do predomínio dos acordes das guitarras, com a pertinência da de Keith Richards a pontua-la constantemente com uma vertigem provocada pela inexistência do vício num adolescente virgem. Os Stones alteram o Rock and Roll por uma métrica blues, mas quem mantém a chama do ceptro acesso do rock é Keith Richards através dos seus solos em que sintetiza a melodia da canção. “It`only rock and Roll but I like it”, o ritmo ganha poder e por fim há uma continua segregação de uma tentação que atrai o ouvinte para um universo em que reina a lascívia, “I like it”. Mick Jagger levanta os braços como se estivesse a expurgar o público da sua moralidade que os condiciona a libertarem os impulsos perversos que os corpos produzem. “It´s only Rock and Roll but I like it”. Mick dirige-se directamente aos presentes: “Olá Lisboa, Olá Portugal. É bom estar de volta... E não sei mais português”.“Live with Me”, o terceiro tema da noite, é dominado pelo blues mas sem resvalar no cliché. As guitarras perseguem a sua alteridade de timbre, e o pirómano de serviço é Keith Richards que a adjectiva com uma profundidade rock. Mick Jagger é assertivo quando canta “in between the sheets”, e esgueira-se no palco e questiona a audiência: “Don't you wanna live with me??”. O alicerce blues ganha um outro inimigo denominado de Ronnie Wood, que responde com solos sobre a predominância da guitarra de Keith Richards. A voz de Mick Jagger plana como se fosse um apelo de um naufrago numa pista de dança num bordel tropical, “don`t you wanna live with me?”. O saxofone confisca as atenções através de um solo melódico, que é replicado pela restante secção de metais, e as guitarras retorquem a sonoridade para uma frequência rock, que gradativamente ganha predominância, e finalizam-na em bloco. Mick Jagger preocupa-se com o bem-estar da plateia: “Feeling good? Feeling good?”. Público: “Oh! Yeah!”. “We have done this before. I`ll like to introduce Mr. Bruce Springsteen”. A melodia tem uma textura levemente country rock, e é neste perigoso equilíbrio que os metais a resgatam para uma equação em que impera uma intrigante sobriedade. Bruce Springsteen está ligado à eletricidade através da guitarra e descarrega a sua ira, que adicionada às de Ronnie Wood e Keith Richards propagam uma malha que progride ritmicamente. A corrente estética que impõe é o blues rock, com os coros a repetirem as vogais: “OOOO”, um apelo trágico. “Baby, baby I can`t stay”. Bruce Springsteen toma de assalto a passadeira vermelha que penetra o público, Mick Jagger persegue-o e quando abana as suas ínfimas ancas canta: “Roll me and call me the tumblin' dice”. Palmas. “Bruce Springsteen thank you much!”. “Let`s slow down a little”. A quinta canção, “Wild Horses”, é dominada pelo timbre acústico das guitarras. A que toma a dianteira é a de Keith Richards, que introduz os acordes tépidos de “Wild Horses”; e o segundo protagonista é Charlie Watts, que marca um ritmo espaçado, e através dos pratos impregna a canção com uma pontuação que introduz o tempo psicológico. Mick Jagger canta as palavras como se as estivesse a cantar pela primeira vez: “Childhood living is easy to do”. A melodia revê-se num profundo infortúnio espelhado na submissão do cantor perante o objecto dos seus desejos: “The things you wanted, I bought them for you”. As guitarras acústicas complementam-se alternadamente, e o ritmo passa de passivo a activo. “Wild, wild horses, couldn't drag me away”. Keith Richards: “Away”, “away”. O narrador versa sobre uma outra entidade que se submete a uma dor involuntária: “I watched you suffer a dull aching pain”. A intensidade do timbre acústico aumenta e consequentemente a melodia adensa-se, e a voz de Mick Jagger mantém a sua pulsão sofredora. “Could make me feel bitter or treat you unkind”. “Wild Horses won`t drag me away”, a moldura que sustém esta determinação é sublinhada pelas guitarras a afunilar a perspectiva sobre uma irreversibilidade. “Hello Portugal! Vamos ganhar a copa do Mundo! Portugal e Inglaterra na final!”. O sexto tema é “Doom and Gloom” que ritmicamente corresponde a um flirt entre o funk e o rock, sobre o qual as três guitarras se intercalam em regime de semi distorção. Mick Jagger canta/rapa as estrofes e como se fosse de facto o primeiro rapper que surgiu do Rock and Roll. “A plane, all the passengers were drunk”. “Baby won't you dance with me?”. O solo de Keith Richards repercute um contínuo circular semi distorcido. “Baby take a chance, won`t you dance with me?” E Ronnie Wood equilibra-se entre as duas guitarras e revela-se através de uma contínua propagação síntese da melodia áspera. Mick Jagger: “How you are doing up ther?”; e ergue o braço para a esquerda onde se encontra a multidão pendurada numa rabina. “Parabéns Rock in Rio [que completa 10 anos]! Obrigado Xutos & Pontapés e Gary Clark Junior [que haviam toca antes dos Stones]. We are going to do this one with Gary Clark”. No sétimo tema, “Respectable”, os Stones estão artilhados com três guitarras, e desenham o corpo blues-rock de uma mulher efémera que confisca o coração dos incautos e lhes subtrai a liberdade. “Get out of my life”, “and don`t come back”. O solo de Ronnie Wood é compassado e encontra eco no de Gary Clark Jr. o qual se deve adjetivar de épico. “So respectable”, “So respectable”. “Get out of my life”. Mick Jagger transmite através do seu timbre uma falsa intencionalidade, que o faz repetir contrariadamente: “Get out of my life”. Keith Richards sobressai conscientemente e ergue um solo sub-repticiamente acutilante mas subtil, Gary Clark Jr. executa uma variação contínua. “Don`t came back”. “Gary Clark Junior. Thank you so much!”. “Out of Control”, o oitavo tema da “14 on Fire”; é iniciado por um reco reco, o baixo de Darryl Jones oferece-lhe um groove soul, e os espectadores batem palmas tentando seguir-lhe o ritmo. Mick Jagger: “Humm”. “I was”, as palmas ecoam, “rain”. A linha do baixo mantém-se ominipresente, invulnerável à dor que pontua o discurso de Mick Jagger: “I was standing by the bridges”. “Humm”. “So long ago”, as palavras são ditas como se o cantor inglês fosse simultaneamente uma testemunha ocular e um narrador omnisciente. As guitarras surgem e retiram-na da sofrível obscuridade, e dessa forma resgatam Mick Jagger da sua peregrinação para a margem onde reina a tragédia. A voz ouve-se menos contida, e Mick Jagger revê-se no seu reflexo: “Humm”; “and the girls in the doorway”. A retoma por parte do baixo da eterna e florescente dor é dominada pelas guitarras, “to my final destination”, “I was young”, “I was foolish”. A inserção do ritmo por parte da bateria, através de um break, reanima-a para uma dimensão em que o passado é uma memória presente. Mick Jagger soa através de uma harmónica, que se sobrepõe ao timbre subtil mas acutilante das guitarras elétricas dos Rolling Stones. “In the hotel I'm excited”, “and I wonder”. “I was young, I was foolish”. A terceira parte de “Out of Control” apresenta o Rock and Roll com a infusão de um solo blues de Ronnie Wood. Mick Jagger com a harmónica prolonga o fraseado que anteriormente havia executado, e tem folego para impor à banda que repita a linha melódica do refrão: “One more time!”. “I was young, I was foolish”. Ovação. “Thank you público maravilhoso!”. O nono tema, “Honky Tonk Woman”, tem uma melodia que mimetiza uma canção country, mas a precursão dá-lhe uma profundidade kitsch. A guitarra de Keith Richards confere-lhe um sobreposto lascivo que entra em consonância com o discurso de Mick Jagger: “I met a gin soaked barroom queen in Memphis”, e o fraseado do piano, “She tried to take me upstairs for a ride ”, é um serpentear que retrata o espaço em que “Honk Tonk Women” está a ser emitida, e que corresponde a um bordel de beira de estrada americana. “Can't seem to drink you off my mind”. Quando o refrão emana os Rolling Stones libertam uma insaciabilidade extravagante: “Honky Tonk women, give me, give me the honk tonk blues”. “Strollin' on the boulevards of New York City”. Os metais adensam o quadro composto por um espaço bafiento a tabaco de enrolar, e riscos de coca sobre o tampo negro de uma mesa de cristal. “Honky tonk women”. E o piano exala a melodia de um portento de irremediável pecado. “Give me give give me the honky tonk women”. “Thank you very much! Felling good? Let me tell you who is in the plane with us”. A corista negra corpulenta com penteado afro é “a bandita Lisa Fisher”; o afro-americano que a acompanha nestas funções é “Mr. Bernard Fowler”. “How`s next? On the guitar Ronnie Wood”, o público aplaude ruidosamente. Mick Jagger questiona Ronnie Wood: “Onde compraste esses sapatos?”. Na “bateria Charlie Watts”. “On the guitar and now on vocals Keith Richards”. Este último toma a dianteira do palco, a sua camisa folgada esconde a uma barriga proeminente, aproxima-se do microfone e apresenta-se: “Is good to be here, is good to be anyware”, sorri maleficamente. No décimo tema, as guitarras acústicas pronunciam-se dengosamente, "You Got The Silver". A voz de Keith Richards é um fogo-fátuo, “Hey babe, what's in your eyes?”. O blues surge em crescendo: “You got my heart, you got my soul”. As escovas da bateria de Charlie Watts, oferecem um interlúdio de queimadura frágil, quando ressoa o bombo e desfere com as baquetas sobre a tarola, os Rolling Stones aportam intempestivamente no Rock and Roll. Keith Richards mostra-se atencioso para com o público: “Thank you very much. Obrigado. AhAhAh”. “Check this one, is call ´I can`t see with you`”. As duas guitarras elétricas exploram um rock lento-- que não se revela na totalidade, pois o meio tempo é impeditivo-- os metais replicam em surdina os tons delicodoces da melodia. “I just can`t see you”. Keith Richards olha para o microfone de onde espera uma resposta para a sua depressiva privação e canta emocionado: “I just can`t see you”. A altura e o andamento são alterados algo que efetiva a exorcização do Rock and Roll. “I can`t sleep with you”. A voz de Keith Richards, mantém-se inalterada perante a ausência da sua amada, e encontra na sua guitarra elétrica a única aliada, e sustém-lhe um solo. “Just a dream”. Os metais são o eterno coro de almas que anseiam pela fecundação de um ser vivo. Keith Richards, sola, “dangerous baby”, “dangerous baby”, “dangerous baby”; e Ronnie Wood responde-lhe com um solo épico. A décima segunda canção, “Midnight Rambler”, é uma trip de heroína, que tem início na associação da bateria a um fraseado de piano que misteriosamente instala um contínuo suspense. A harmónica de Mick Jagger é uma lâmina a retalhar as vísceras de uma besta humana, “Did you hear about the midnight rambler?”. Ronnie Wood tenta romper o cerco com um solo, mas apenas se alia à negritude da canção. A harmónica soa violentamente e conduz as nossas consciências para um reduto em que a profanação é uma ordem. Mick Taylor coopera e instala uma turbulência que é sublinhada pela harmónica, e o surgimento de um ritmo pulsante instala uma crescente hipnose. “Talking about the midnight gambler”. “The one you never seen before”. “Everybody got to go”. Por segundos a canção perde-se num silêncio sepulcral e a harmónica emite um feitiço que cheira a veneno. Ronnie Wood e Keith Richards viram as costas ao público e deixam os holofotes brancos acessos sobre Mick Taylor, que executa um solo que rasga a fronteira que cerceia o “Midnight Rambler” . Mick Jagger desloca-se para a esquerda do palco, e no meio da passadeira lateral abana as suas ancas de menor, palmas e gritos são retribuídos por parte do público. Quando os Rolling Stones constroem o blues, este encontra-se infestado por um groove que a pontua com uma encoberta hipnose. A harmónica reanima a tragédia anteriormente anunciada que é perseguida pelo solo sustenido de Mick Taylor. “Oh! Yeah”, a voz de Mick Jagger está alta e por conseguinte sobrepõe-se ao murmurar tétrico das guitarras, mas há uma que à revelia sola. “Oh yeah!”. Mick Jagger: “Au”. Público: “Auuu”. A bateria domina e transporta-a para uma alegria mórbida, “talking about the midnight rambler”; “black panther”. O blues ganha uma preponderância contida, “midnight gambler”; e Ronnie Wood reincere os acordes que caracterizam a melodia com origem nas trevas. Keith Richards dá-lhe um cunho final de tese de Rock and Roll. Palmas. “Muito obrigado! Having fun? E querem cantar um pouco comigo? Sí?”. Público: “Sí”. O décimo terceiro tema, “Miss You”, tem origem num riff-funk do baixo e o seu comprimento de onda é de tal forma viciante que parece disco sound. Mick Jagger canta em falseto, “kiss you”, “UUU”. “UUU”. “I've been waiting in the hall”. Mick Jagger levanta a voz e chama pelas: “Puerto Rican girls that are just dying to meet you ”: “UUUU”. Público: “UUUU”. Ronnie Wood sublinha com a guitarra elétrica um solo que flutua por entre o ritmo disco. “Common”. O baixo ganha preponderância, “people think I`m crazy”; “Shuffling through the street ”. “Say”, “I wish I could play the bass like Darryl Jones”, e este executa um solo disco-funk. As guitarras rock-funky, realçam pontualmente o groove. Mick Jagger: “Oh! Yeah!”. Público: “Oh! Yeah!”. Mick Jagger: “UUUU”. Público: “UUUU”. Desloca-se pela passadeira e incentiva o povo: “Tha`s good! Common!”. Público: “UUUU”. O solo do saxofone marca a partida do palco para a passadeira de Keith Richards e Ronnie Wood que juntamente com Mick Jagger sentem o uivo do público. “I`m lying to myself”. “I miss you baby”. “I miss you baby”. Lisa e Bernard Fowler: “UUUU”. O ritmo aumenta: “So long! So Long!”! “Yeah”! “Common! Common!”. “I miss you girl, I miss you girl”. O décimo quarto tema, “Gimme Shelter”, é potenciado pela guitarra elétrica de Keith Richards. Quando o coro de Lisa Fisher e Bernard Fowler irrompe ecoa fantasmagoricamente: “OOOO”, sobre o ritmo Rock and Roll; e as guitarras inscrevem as cores negras opacas que exorbitam. Os metais pronunciam-se e detonam uma surdina arrepiante, Keith Richards replica-lhes através de um solo característico de um black bird. “If I don't get some shelter”; “Oh lord”; “Oh yeah, I'm gonna fade away”. Keith Richards reinventa-se através de um solo que corresponde a um monumento efémero, constituído por uma delicadeza, ousadia, sapiência e talento. Mick Jagger chamou Lisa Fisher para o acompanhar a percorrer a passadeira vermelha, com a qual divide o canto. Mick Jagger: “It`s just a shoot away”. Lisa Fisher: “It´s just a shoot away”. Mick Jagger e Lisa Fisher: “Kiss away”. As guitarras reverberam Rock and Roll. Lisa Fisher descola-se pela passadeira até ao seu lugar, no lado esquerdo do palco Mundo do Rock in Rio, ladeando Bernard Fowler. Mick Jagger no círculo, rodeado pelo público, canta: “Gimme, gimme shelter”. Mick Jagger pede uma salva de palmas para “Lisa”. “Are you ready for a little more?”. O décimo quinto tema, “Start Me Up”, tem um tempo acelerado e as guitarras repetem os riffs semi-distrocidos alternadamente. A voz está alta e agressiva: “Star me up, star me up and never stop”. “Never stop”. “Never stop”. A festividade incontida da canção promove a irrupção de um ser envenenado por uma insaciável desejo de explodir. “Star me up”. “Never stop”. As luzes do palco incendeiam as estrelas que se ofuscam perante a festividade Rock and Roll dos Rolling Stones. “You make all man cry”. Solo de Ronnie Wood. “You make all man cry”. O ritmo tribal provoca ao palco Mundo que se esfume num fumo branco do qual emana Mick Jagger, enverga um casaco vermelho constituído por uma textura molecular. O público entoa: “UUU”. O piano resume a melodia negra, “Sympathy for the Devil”, o décimo sexto tema. O público apela por: “UUU”. Mick Jagger: “UUU”. Através da educação Mick Jagger derruba barreiras sociais: “Please allow me to introduce myself, I'm a man of wealth and taste”. O piano está mais presente, sobre o groove-soul que os Rolling Stones sustentam. “And I was around when Jesus Christ, Had his moment of doubt and pain”. “Pleased to meet you, Hope you guess my name?”. Da réplica contida das guitarras elétricas, sobressai o omnipresente solo de Keith Richards, a alma sónica dos Rolling Stones. “Is the nature of my game”. O groove tribal é a representação de um universo ao qual se associam chamas que anseiam pela besta. “Killed the czar and his ministers”. “Pleased to meet you, I guess you know my name”. Os solos intercalados da dupla Ronnie Wood e Keith Richards, interferem na melodia negra e acentuam a sua densidade cromática. Lisa Fisher, Bernard Fowler e Mick Jagger: “UUU”. Os solos agudos das guitarras elétricas perfilam-se perante JFK, condenado à pena capital, vendado e manietado, cai por terra baleado. “Name”. Coro: “UUU”. A profundidade dos solos das guitarras pronuncia um corpo com duas cabeças, a besta: “Hope you guessed my name”. Palmas. Mick Jagger: “Keith common!”, apela ao seu companheiro de cinco décadas de Rock and Roll, para que introduza os acordes de “Brown Sugar”. “Down in New Orleans”. Os Rolling Stones fervem numa chama incandescente consignada por uma dirty-(soul)-country. “Brown sugar how come you taste so good?”. “Common”. O piano transmite a américa rural-trash, entrecortada por auto estradas com estações de serviço com prostitutas em cada quarto, de janelas com gradeamento enferrujado. O gingar rock-(country) de “Brown Sugar” é tão sublime quanto um hino à liberdade, a utopia desaparece em cada andamento, em cada “taste”. O solo do saxofone confere à canção, uma eterna sublimação e simultaneamente a suprema das heresias. Mick Jagger corre para o centro do palco, “Brown sugar just like a young girl should”, dança, “yeah”, “yeah”, “yeah”. Público: “UUU”. “Lisboa muito obrigado. Boa noite!”. O décimo oitavo tema, “You Can't Always Get What You Want”, é o primeiro do encore. Iniciado por um coro constituído por mulheres vestidas de preto, que se encontram no lado esquerdo do palco Mundo. As suas vozes correspondem a um canto celestial-- um chamamento de uma sereia de beleza contagiante--: “No you can`t allways get what you want”. As guitarras acústicas revelam-se delicadamente juntamente com a guitarra de Mick Jagger. A trompa irrompe como se fosse um profundo suspiro em surdina, que representa o estado de espírito do narrador: “I saw her today at the reception”. Mick Jagger: “A glass of wine in her hand”, sobre o piano sedutor e dramatic canta: “I knew she would meet her connection”. Lisa Fisher, Bernard Fowler e Mick Jagger adensam o refrão: “You can`t allways get what you want”. Mick Jagger, veste casaco prateado e sobre a sua farta cabeleira consta um boné preto, expira para a harmónica de onde sai um murmúrio tristonho mas incisivo, e o piano segreda uma melodia saudosa. Condensada pelas guitarras que precipitam uma angústia dilacerante; o solo de Ronnie Wood impõe-lhe um recrudescer rítmico, infectando-a com um dramático fim. Público: “You can`t allways get what you want”. Mick Jagger: “No you can`t always get what you want”. Coro: “AAAA”. O aumento do tempo rejuvenesce a canção, mas não encobre a sua origem de peregrina do amor não correspondido. O público entoa: “You can`t allways get what you want”, e bate palmas. Mick Jagger: “Yeah”. Público: “Yeah”. “Thank you Rise Choir from Lisbon”. “Are you ready?”. Antes que Keith Richards, insira os acordes semi-distorcidos do décimo nono tema “(I Can’t Get No) Satisfaction”, é abordado por Mick Taylor que mimetiza a sua forma de tocar a guitarra elétrica, algo que lhe provoca riso. Keith Richards descarrega a sua adrenalina elétrica sobre a multidão, as partículas são os riffs que ditam a genialidade o guitarrista inglês, um verdadeiro monumento sonoro em constante detonação. Mick Jagger corre e dá pulos; e sobre a textura sónica promovida por Ronnie Wood e Mick Taylor, Keith Richards, sola. “I can`t get no”. Quando Mick Jagger canta: “No”. “No”. “no”, o bombo de Charlie Watts é cirúrgico dada a sua precisão. “Yeah, that`s what I said”. “And I try, I try”. “I can`t get no satisfaction”. O domínio de Keith Richards é perfeito de tão perturbante, e a consequência aparentemente óbvia é a sua transmutação em Keff Richards. O ritmo aumenta consideravelmente. A última canção da “14 on Fire” ganha o rosto de algo incandescente. O solo épico de Keith Richards colocam-no a beber chá com Aristóteles no Olimpo do Rock and Roll. A multidão é efusiva com as palmas e entoa livremente a canção. Mick Jagger corre para a passadeira esquerda do palco Mundo, coloca no interior das calças o microfone, olha para nós e ri, retira-o; e desloca-se para o centro do palco Mundo. Do cimo do qual explode o fogo-de-artifício, que incendeia a noite de partículas psicadélicas. Os músicos que acompanham os Rolling Stones aproximam-se da boca de cena, agradecem as palmas, e abandonam o palco. Os Rolling Stones, iluminados por trás por uma gigantesca luz tórrida, recorta as silhuetas abraçadas de Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts e Ronnie Wood, que acenam. Mick Jagger coloca a mão direita sobre os seus lábios de adolescente sexy, e envia o beijo para a nossa boca.

The Rolling Stones, “14 on Fire”, 29 de Maio, Rock in Rio Lisboa @ Lisboa


Dedicado a Rui Reininho.




segunda-feira, 12 de maio de 2014

Heart of Darkness

As trevas vão demorar como por natureza acontece numa noite tépida de Maio. O convite foi enviado por Lloyd Cole, veste um fato escuro, a sua figura carrega a sombra dos Commotions com os quais se emancipou no universo da pop no início da década de oitenta. Lloyd Cole descende de uma constelação de escritores em que se encontram Bob Dylan, do qual interpretará o penúltimo tema do alinhamento, e de Leonard Cohen. Ambos são poetas que mudaram a América, para onde Lloyd Cole emigrou em busca da sua insula, ambos são judeus, a sua escrita converge com a de Bob Dylan que é maioritariamente narrativa, e pontualmente com a espiritualidade de Leonard Cohen. À poesia de Lloyd Cole convergem estas duas vertentes, a sua personagem icónica é uma mulher ou uma entidade que a representa e que pode ser uma cidade como Los Angeles, ou uma paisagem da Escócia onde é natural. Tem duas guitarras sobre os respectivos tripés no palco iluminado por focos brancos que estarão constantemente estáticos, segura numa destas, e interpreta um tema com forte pendor country, o segundo tema é “Rattlesnakes”. Mais do que enumerar o alinhamento do concerto, urge sublinhar que a primeira parte é de toada melancólica e que por vezes revela uma escuridão suficientemente espessa para segregar as trevas. Como é sabido estas provocam repulsa no ser humano que as identifica como se fossem o último estertor. Quando Lloyd Cole vê as pessoas a chegarem atrasadas é de uma ironia desarmante: “Thank you! You just missed ´Rattlesnakes`”; e quando tem um problema de afinação da sua guitarra, não a substitui pela outra, antes procura resolver o problema e improvisa “This part of the show was not intended to be”. O poeta coloca-se numa posição em que o narrador está sempre a perder e como tal é um marginal, que não tem uma idade predefinida, apenas uma consciência que o torna mortal, nessa medida alcançável por cada um de nós. O equilíbrio entre a palavra e a música resultam quando Lloyd Cole introduz às canções pontuais variações, que nos remetem para os arranjos dos originais, mas quando isto não é regra os temas perdem vivacidade atolando-se numa monotonia depressiva. Lloyd Cole avisa que haverá um intervalo e apenas o poderia fazer da seguinte forma: “I`m your opening act”, posteriormente virá “headline”. Lloyd Cole abandona o palco do Centro e Espetáculos da Figueira da Foz e leva consigo um dossier onde constam pautas, o seu património de canções de mais de trinta anos de carreira, que atraiu maioritariamente letrados. “Are you ready to be heart broken?”; marca o início da segunda parte, onde há rasgos de luz que são um manto subtilmente flutuante, predominantemente “blue”, que nos conduz por um labirinto em que as portas são falsas, e os alçapões são mecanismos de uma peça de teatro que têm o intuito de fazer desaparecer o passado. A lullaby, “Music in a foreign language”, tem um verso que ilustra a importância da língua inglesa na música pop: “Music in a foreing language, words that you don`t understand”, “lala”. O timbre da voz de Lloyd Cole parece que não sofreu com a passagem do tempo, é de facto mais corpórea, mas naturalmente melodiosa. “No Blue Skies” é cativante por remeter para uma preze que é contra a luz do dia que é uma potência da mentira, porque tendencialmente ilude o olhar das testemunhas. Uma das suas canções mais belas, “Jennifer she said”, é perturbada pelas palmas dos portugueses que têm um pé sempre disposto para a festa, onde aparentemente nunca choram os seus mortos, simplesmente por causa do medo que as trevas lhes incutem. Lloyd Cole enquanto dedilha os acordes repreende o público: “You are terrible on drums”, “don`t drum”, “maybe sing, don`t drum”. “Period Piece” é o testamento de um poeta que canta, “I`m not afraid to die”, “Welcome to my funeral west Berlin”; e foi o primeiro single do seu último álbum “Standarts” (2013), e que é uma obra que ressuscita a sua escrita pop que partilhou com os Commotions. Lloyd Cole por vezes parece um professor de música quando introduz “Last Weekend”, com os “same chords” da música anterior, “Unhappy Song”. Se é honestidade, ou, um mero exercício de gozo para com a plateia que se vestiu e se perfumou para o ouvir, não sei, mas revela concretamente que é alguém que não se esconde atrás de um qualquer artificialismo bacoco. A espiritualidade nunca é utilizada através de um cliché que a tornaria numa arte meramente decorativa, de quem acredita em Deus mas que não pratica a sua palavra, mas para junto do qual pretendem “viver”, após que a morte os separe da vida, e que Lhe dirão? “Jesus took my hand”, através de um mito Lloyd Cole acede ao púlpito de Deus. Após ter interpretado uma canção de Bob Dylan assume que: “I wrote that song just after my motorcycle accident in 1969!”; a sua entoação é americana, foge à que manteve durante o concerto-- quando se dirigia directamente ao público-- e que era sumida próximo de um sussurro de uma serpente que pretende hipnotizar a sua presa. Corrige: “No I didn`t! It`s a Bob Dylan Song!”. “Forest Fire” é executada como se as árvores fossem corpos de pessoas com os braços erguidos para o céu, a cadência da melodia é delicada, uma oração que não pretende acordar a sua Ninfa, se por um acaso ela descer do seu reduto Lloyd Cole dir-lhe-á: “I belive in love, I belive in anything”. Para lá do fim, para lá da eternidade. Palmas.

Lloyd Cole, “Standarts”, 10 de Maio, Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz @ Figueira da Foz

Dedicado a Rui Reininho.