segunda-feira, 29 de abril de 2019

Kaleidiscope One

Não é fácil escrever antes de passar as palavras por uma peneira e com as que ficam retidas construo um edifício modelar que pode explodir se for alimentado pela raiva ou a violência ou então serem tão redundantes quanto uma conversa de café cheio meia chávena ou pingado são opções que me torturam diariamente talvez fosse melhor legislar contra esta variedade e decretar o fim do meu sofrimento sim porque eu sou deveras mais importante do que qualquer destes seres à minha volta que chafurdam na terra e perseguem o rastro deixado pelos factos e neste jogo inconsequente distraem-se a patrulhar as ruas numa de prevenir qualquer tiroteio e sinto-me tão inseguro que acendo um cigarro e meio fumado deito-o na boca do esgoto e desconheço a razão para a correria dos galgos alimentados a caviar que parece uma corrida atrás de uma lebre que poderia ser uma mulher ou uma doida qualquer que despe a roupa enquanto se aproxima de uma foz e desaparece quando se reflecte e a saudade é trazida mecanicamente pelas ondas de salitre que marcam o vidro com o sal que se amontoa a meus pés como se fossem os seus restos mortais e não consigo suster uma lágrima que é absorvida pelos cristais e a dor emocional esvai-se e pergunto-me porque amei o seu ventre salpicado por rostos angelicais assim como o seu cabelo de algas marinhas e a resposta é tão vaga quanto o seu olhar frágil que representava simbolicamente a sua vulnerabilidade em relação à vida e deixa-me um legado de almas marinhas que se alimentam das minhas palavras que misturadas com água e ar cantam-nas num coro dissonante de tão volátil que me infecta mas não posso ceder à vertigem de lhes dar a minha mão e traze-las à vida extra-uterina seria um sacrilégio e um sacrifício desprovido de racionalidade e não percebo porque mitifico a solidão e jamais encontro algo que justifique tal vinculação e no relevo que contorna os livros absortos num papaguear de uma não literatura que se compadece com o vazio do tempo que é somente o que é construído com a anuência dos ditadores; Joana Espadinha faz-se acompanhar por um guitarrista/voz e por uma teclista sendo que a cantora lisboeta introduz beats através de uma mini mesa e as canções são predominantemente pop que são excelentes quando o ritmo é acelerado com um canto sedutor já as tristes ou lentas são sofríveis porque não são suficientemente dramáticas com a agravante de a voz da Joana Espadinha denotar inúmeras limitações e há ainda outro ponto negativo que são as letras de uma fragilidade estilística abrasiva que as tornam light algo que as sentencia ao esquecimento; que de uma forma ou de outra dominam e cercam os campos inóspitos com arame farpado e incendeiam as bibliotecas dos intelectuais que se debatem contra este ostracismo com uma frustração delirante que se traduz num absurdo que pode-lhes ser fatal e observo-me para identificar-te e não surjo e nem tão pouco vós volto a tentar e resgato-te do fundo do mar e ao emergires trazes as almas de quem naufragou em doenças venéreas e escolheu-o como um leito turbulento e absorvo essa energia que me transforma em homem finalmente com sombra e que se lê ao contrário do que infelizmente está estipulado e se este fim parece que me eleva à condição de quem reclama da vida um outro destino que assegura que se fossem somente palavras de nada valeriam se não fosse o signo que lhes oferece inúmeras cambiantes segundo os tempos em que foram narradas e envolto na seda dos seus braços flutuo sem que tenha consciência que me desvaneço e se me evaporo é porque sou tão belo quanto transparente e perpassado pelo vosso amor serei eternamente um solilóquio que se espraia para o interior de um outro que se debate contra si para voltar à vida mundana e rever os velhos amigos sentados num lar de televisões que mudam automaticamente de canal para um que transmite uma sequência de elegias que versam sobre o que me percorre como se fosse o sangue nestas veias que se relevam num capitel onde se constrói um novo futuro.

Joana Espadinha, 26 de Abril, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, Figueira da Foz.

sábado, 27 de abril de 2019

Cartas de Santo Inácio de Loyola

Amanhã estou melhor porque hoje estou na merda consignado a um escritório de luzes brancas e a olhar para o ecrã de um computador a responder a emails e ao telefone a cativar clientes para a nossa causa religiosa que aparentemente não tem fins lucrativos passo os dias a prostituir Jesus Cristo para ganhar dinheiro sou uma espécie de Judas mas contrariamente a ele não sinto peso na consciência que me leve ao suicídio antes olho para mim como um apóstolo que cultiva a Sua palavra em favor da paz e da harmonia e que me serve nas missas nestas uso as suas máximas curativas com as quais fez inúmeros milagres e que ainda hoje resultam e para que estes realmente se dêem usamos falsos cegos ou esquizofrénicos e até bipolares e por vezes um acidentado de mota que se levanta da cadeira de rodas e anda e como ainda está traumatizado faz o som do escape do motociclo e a multidão fica extasiada com tais acontecimentos que limpam o seu corpo do Diabo; Velvet Kills são uma dupla que discorre pela synth pop e que é transformada em canções que se prolongam em diversas perspectivas algo que se assemelha a uma bola de espelhos que produz diferentes padrões quer melódicos ou rítmicos e a isto soma-se a performance da cantora que transforma um palco relativamente pequeno em algo tão gigante quanto estupefactamente adorável; que está no centro de todo o mal do qual são vítimas seja da pobreza ou da ignorância e do marido violento ou do traficante que inunda as narinas dos filhos de cocaína que em tempos foi uma droga chique e que tomou conta dos bairros pobres que circundam a nossa cidade que aparentam serem intransponíveis e se há pontes estas servem para decorar a paisagem e dar-lhe uma grandiosidade artificial e estes pais vivem numa pobreza envergonhada e por vezes recorrem ao furto para comprarem futilidades ou então usam-no para pagar a missa que obriga a dez por cento do que ganham mensalmente e se são desempregados terão que deixar o que tiverem nos bolsos porque Deus precisa de dinheiro para investir contra o Diabo esta dupla foi a maior invenção do capitalismo que cegamente transformou o dinheiro num bem que é um ditador oculto na vida desta gente pobre e ignorante que confunde o bem e o mal a beleza com a fealdade a ignominia com a honra e poderia continuar repetitivamente a reportar conceitos opostos mas creio que é indispensável por vezes relaxo e olho pela janela e as aves esvoaçam ignorando que são obra de Deus; Victor Torpedo (guitarra eléctrica) e Vera Mahasti (dançarina) apresentam algo deveras exótico sejam as canções que se alicerçam em programações próximas da música de inspiração dançável com a guitarra em delay que remete para o surf rock e a dançarina do ventre insinua um movimento visível e invisível às canções isto tudo é somente deslumbrante; e tal deixa-me ainda mais deprimido e quando pousam na cruz da torre da nossa igreja são flamejadas com a verdade da Sua natureza que teve origem na Sua palavra com o poder de criar tudo e todos ao sétimo dia e a partir do qual surgiu a ubiquidade algo impensável até então pergunto se haverá por aí quem censure a ambição da minha religião e a resposta seria se todas as outras congregações religiosas são similares com a excepção de que nenhum dos meus pastores serem pedófilos podem ser devassos e drogados e alguns até foram mulas de droga nomeadamente do Brasil para Portugal e eram ressarcidos devidamente com uma percentagem sobre as vendas nos bairros circulares e tal convida a que haja mais crentes que nos procuram para limpar os filhos de tal veneno e por vezes ou muito raramente temos êxito ou então fabricamo-lo ao cortar as vendas junto dos nossos dealers que carinhosamente denomino de Angelicatos; Victor Torpedo apresenta-se sozinho com um microfone com as canções devidamente pré-gravadas e estas são predominante de teor pop decadente isto é sem qualquer vislumbre para com o que é moda e a sua performance é de alguém que está num tempo em que há potentes erupções que por vezes atentam contra a sua integridade física ou enfrenta o público ao qual entrega o microfone para que cante ou ainda sobe por diversas vezes ao balcão do bar improvisado para instalar a desordem que é posteriormente orientada para um caos terrífico (impagável); e através da nossa antena lançamos um sinal para aumentar estados de ansiedade ou de depressão nas pessoas que passeiam ou correm para aliviar o stress na esperança que recorram à nossa milenar sapiência curandeira creio que um dia serei condecorado pelo presidente da república por ter contribuído altruisticamente para o incremento da sanidade mental que é fundamental para a produtividade deste país e terei o cuidado de a emoldurar e de coloca-la ao lado de uma fotografia de Deus Nosso Senhor.

Victor Torpedo, Victor Torpedo + Vera Mahsati, Velvet Kills, 25 de Abril. Mercado Negro, Aveiro.

domingo, 21 de abril de 2019

Le surréalisme portugais

Há tempo desse lado da barricada ou o que parecia ser o tempo nunca verdadeiramente o foi se associado ao que se passa na televisão revive um outro tempo que provoca uma alienação que como quase todas adormece prematuramente o seu cérebro e o consigna a uma perversa contemplação de um vazio que somente existe se for construído e continuamente regado para que se mantenha com a configuração que consigna um vazio que difere de pessoa para pessoa de alienado para alienado de vazio para vazio há tempos fugazes e outros que se prolongam numa eternidade volátil e se há uma paragem cardíaca o mecanismo tem que ser limpo e calibrado e devidamente oxigenado para retomar o ritmo decadente de combustão a gás que consome as calorias e o tronco emagrece e adapta-se à moda do stress em que se limita a ligar a e a desligar os olhos para se relegar ao sono e transforma-se em vorazes ladrares que se atropelam sucessivamente num flash e nesse instante violenta-se contra as muralhas que o cercam como se fosse um tempo que não existe e que o torna estéril e que o sufoca; Evandro Capitão socorre-se de uma trompete e de uma mesa de mistura que introduz o ritmo pró-dançavel a dinâmica entre ambos nem sempre é concisa mas poderá ser catalogada de Intelligent Dance Music (IDM) a isso soma-se a versão do Charles Mingus e a introdução de um sample de Agostinho da Silva e isto denota cultura musical e livresca as reticências prendem-se ao facto de as canções estarem meramente delineadas parecendo que esta a decorrer um ensaio; e ao respirar há uma consciência que sobrevém num repente e na persecução dos segundos aspira ser tão imortal quanto o tempo que irá para lá da sua existência detentor de um poder nuclear que é um agulheiro onde tudo é consumido de tempos a tempos na subtracção surge o fim que se julga no passado por ser incapaz de dar passos firmes na história rotineira dos dias acompanhados por almas que em tempos vivenciaram o abismo da super essência e o Dominó dança numa abadia imune à passagem das máquinas de lavrar a terra ou os assobios que se cruzam num silêncio comunicacional e pouco importa se a invasão poderia ser eterna se não fosse somente um desordenado de palavras por arrumar debaixo do tapete fúnebre que representa uma peste que deflagra num contínuo de ponteiro de relógio usado por Damocles; Elephant Maze uma dupla de guitarra/voz e bateria que são tocados rapidamente quase se aproximando do trash mas que é delimitado por um psicadelismo retro que causa estranheza e quando esta desaparece há de facto algo deveras impressivo; e se o fogo for uma mera evocação de opostos para o qual e do qual saem diabretes enlouquecidos que supostamente se julgam bestas que se estoiram como se fossem homens bomba que aterrorizam os passeantes que são de origem terrorista tal como vós que encabeça uma outra figura que pode ser ou não uma outra pessoa ou mera representação de uma outra pessoa que se multiplica na esperança da imortalidade algo deveras inacessível para um drogado que se repete num constante distanciamento da realidade que gradualmente desaparece até se tornar em pó assim nasceram tantas civilizações que se sobrepuseram para reafirmar uma nova ordem moral uma outra forma de usufruir o tempo; Moon Preachers outra dupla bateria/voz e guitarra/voz que discorrem pelo rock and roll que é apresentado numa mesma canção com diversas secções que ao se encaixarem provocam que não haja uma estrutura estereotipada que lhes seria fatal e esta vivacidade inscreve uma violência que é de uma tal preponderância que é provocadora de uma desordem que se instala e reinscreve um outro tempo; que é impossível de destruir porque lhe faltam forças para tal e mesmo que aparentemente tente não passa de uma sugestão que não consegue concretizar talvez se fosse um outro com mais poder de decisão é possível que se liberte dessa fossa de escaravelhos onde se passeiam nus cadáveres esquisitos que têm tantos pais e mães que desconhecem quem em tempos foram ou se verdadeiramente tiveram o prazer de existir foca um tosco foco de luz inebriada sobre as mãos que cavaram a terra e a estrumaram com os seus dejectos e dos seus animais fraternos que simbolizam a felicidade que um dia vivenciou num outro corpo e com uma consciência que irradiava luz que o cegava e lhe escondia as riquezas que se encontravam num outro ponto negro.

Arcups Night Out IV (Moon Preachers + Elephant Maze + Evandro Capitão), 19 de Abril, Antiga Escola Primária da Ilha de Baixo, Pombal.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Out Of Africa

Assina o documento mas antes ou depois altera a data de nascimento e rabisca a que é a correcta e eu limito-me a sorrir porque a julgava mais jovem do que os seus documentos comprovam e despeço-me silenciosamente para a casa da vizinha que se recusa a apoiar a causa da libertação dos animais do circo que há anos se encontravam num terreno próximo porque lhe lembrarem o seu tempo em África mais exactamente em Angola e convida-me para entrar e a sua sala está adornada com inúmeros relógios que o seu marido colecciona há tantos e de tantas formas que não os consigo identificar e a isto soma-se a minha ignorância sobre a sua história muitos são de corda e outros têm gravatas de palhaços que balançam segundo após segundo parece incomodada com o meu olhar de estupefacção e ri a esconder a vergonha por ter companhia de tamanho manancial de ditadores temporais e conta-me as suas viagens de carro por Angola de planície em planície sobre a terra batida não se lembra há quanto anos voltou e duvido que algum dia seja capaz de a abandonar verdadeiramente trouxe as malas cheias de roupa velha e o marido trocou o carro por diamantes que mais tarde percebeu que eram de vidro que partiu com um alicate deixou os bens e os escravos que tratavam da apanha do algodão e que trabalhavam de sol a sol recebendo uma miséria por semana mas para ela foram os dias mais felizes que alguma vez experienciou; Few Fingers são um dupla voz/guitarra acústica e pedal steel guitar e a relação entre estes é continuamente desequilibrada não se percebendo o porque do pedal steel guitar não ser usado na sua amplitude como elemento que dita a melodia e é secundarizado pelo cantor que canta em inglês esganiçadamente e este equivoco resulta que os géneros que evocam são meramente desenhados poderiam ser o roots rock ou o country por fim na última canção almejam sublimar o blues; a jigsaw são um super grupo não que sejam super músicos mas antes veteranos da Capital do Rock (Coimbra) e isto não é por si só um carimbo de qualidade mas para os a jigsaw é somente uma coroa que usam displicentemente porque é-lhes desnecessária já que são de uma assertividade deslumbrante ao remeterem as canções para o rock ou a pop e a country e a americana que continuamente engrandecem com pormenores que as tornam viscerais por estarem imersas num poder sónico de recorte clássico onde o silêncio é utilizado de forma a tolhi-lhas de um negrume que é um véu que as cobre epicamente e que causa arrepios; hoje vive contrariada entre o fogão e a máquina de lavar roupa e o frigorifico ao compasso dos relógios que têm a hora de Angola para que possa ela e o marido fazerem de conta que vivem no passado educadamente não a informo de que é um erro estar presa a uma saudade que não é mitigada com tais artifícios antes aprofunda a distancia entre o presente e o passado ou entre Portugal e Angola e o meu silêncio parece incomoda-la e surge com um bolo de chocolate que ainda estava quente usa os ovos das galinhas que cacarejam nas traseiras rodeadas por hortaliças e couves e alfaces que trata com um carinho desmedido o galo preto era usado em África para uma surreal missa negra que apelava ao mal que liberta-se o corpo da sua filha que aparentemente era epiléptica mas foi a única forma que descobriu para a tentar curar dessa doença e perante o falhanço de tal ritual chorou por Deus a ter feito assim e ela era uma boneca que por norma vestia vestidos de azul-bebé que lhe aprofundavam a sua beleza que resplandecia ao sol nefasto por vezes temia que lhe desse um ataque a caminho da escola e estivesse vulnerável aos homens que traficavam os escravos para outros pontos do país e na escola era socorrida quando tinha ausências que a faziam divagar no campo de jogos hoje está casada e tem filhos e tal como a mãe é elegante pelo menos na fotografia que se encontra na mesinha da sala e tento esclarece-la sobre o estado que se encontram os animais de circo que por estarem velhos e doentes passam fome mas pouco lhe importa se o marido participou em diversos safaris à caça de tigres e elefantes mas ela assegura-me que ele jamais premiu o gatilho já que não tinha dinheiro para tal antes acompanhava o patrão nessas aventuras das quais ainda guarda o medo de perde-lo às garras de uma dessas feras e ri como se estivesse mais nervosa do que feliz e atenciosamente convida-me para sair do seu microcosmos que está reservado a quem a queira a ouvir com atenção.

Clap Your Hands And Say F3st! (a jigsaw + Few Fingers), 29 de Março, Teatro Miguel Franco, Leiria.