quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Contra Mundum

O intro que assinala a entrada dos Pop Dell `Arte no palco do Teatro Aveirense é tribal, as luzes estão estáticas. As palmas eclodem quando surge o colectivo de João Peste e José Pedro Moura, o primeiro encontra-se magro, veste jeans e uma camisa branca, gravata vermelha e um casaco de marinheiro errante. As primeiras canções versam sonoramente o universo de Brech/Kurt Weil, acentuadas pela vocalização grave e a expressão corporal do cantor é mínima: encontra-se sentado num banco alto e levanta os braços acima da cabeça e deixa-os estáticos enquanto é fotografado pelos fãs. O terceiro tema é um slow circular, a voz de Peste assinala palavras-chave: “real”, “I`m a ancient tunel”, “man”, “friend”, a tragédia: “end of times”, com solo do baixo de José Pedro Moura. O ritmo africano resurge em regime de break beat, “I´m sorry, Mr. Worry”, “Mr. Guilty”. João Peste canta por vezes como se fosse um relógio ao qual é necessário dar corda, a questão é: em que tempo é que ele se encontra? “You are my real life”, “life”, retorna a atoada de cabaret visitado por marinheiros à procura de marinheiros que fumam liamba antes de atracar em terra firme. A incursão pela década de oitenta é perceptivel através do uso da guitarra, oferendo à canção uma perspectiva naive, “não sei”, “não sei o que fazer de mim”, “não sei o que viver”, “ainda tenho um sonho ou dois”, “não sei como viver sem ti”, “não quero mais sofrer”, “não sei como chegar ao fim”, a voz é grave e dissonante que impesta a canção numa pop esquisita, a banda faz uma pausa e Peste continua numa deambulação que espanta o auditório: “é triste viver de iluções”, “recordar é viver”, “sim eu sei”, os acordes da guitarra reintroduzem a canção, “estou preso neste elevador”, “ainda tenho um sonho ou dois”. O electro-afro-kitsh surge, mas a equação é árida e o chamamento é longínquo, “telhados desertos”, “ao longe oiço os passos de um marinheiro louco”. A bateria perde acidentalmente o pedal do bombo, o que obriga a uma pausa prolongada. Peste improvisa à capela: “a tua sombra abraçou-me, implorou-me”, “numa noite de chuva em Campo de Ourique”, “beijou-me, implorou-me que a minha sombra e a tua fosse só uma nessa noite de chuva em Campo de Ourique”. Palmas. “Godnight”, é delicado, fantasmagorico, pontuado por um coro de crianças, que se despedem antes de se irem deitar. “I`m a slave”, “S. Fancisco”, o baixo é quem domina o groove e o distribui pelos colegas, numa vertente blues, mas dark, “EEEEEEE”, a onomatopeia pontua-a, “I `m a slave”, “DTURUURURUUU”, “S. Francisco”. Os violinos apresentam melodicamente, a tragédia “I don´t want to see you”, o baixo elimina as cordas, “URSURURUSURRUR”; “OOOOOO”, “teus sonhos não têm coração”, “sedução”, “eu apenas sou uma mentira”, “LARAIRARARAIRARA”, “passa os dias à frente do espelho”, “quando me venho na tua boca”, “abraça-me lentamente”, “ATARATATRA”. Peste ri fantasmagoricamente, adensando o nível de ironia das suas palavras enquanto coloca os dedos longos sobre o rosto. “Aveiro foi um dos primeiros locais onde tocamos em 1985, foi a nossa primeira incursão pelo Norte. Depois tivemos o famoso concerto nas Catacumbas”. “XX Century Boy” de Marc Bolan, marco do glam rock inglês é distorcido até ao limite permitido por lei, sendo que esta (LEI) foi esquartejada ao longo de vinte e cinco anos à procura de uma quimera que teima em zarpar sempre que os Pop Dell`Arte a pretendem alcançar.

Contra Mundum, Pop Dell`Arte, 25 de Setembro, Teatro Aveirense @ Aveiro

domingo, 26 de setembro de 2010

Untitled

Ver um ponto de luz no horizonte e persegui-lo é seguir o sentido do infinito. Percorrer uma ambição com a perspectiva de acrescentar ao presente um futuro, espaço ou um trabalho que alimentam a possibilidade de liberdade. No Salão Brazil, na baixa de Coimbra, bar de luzes ténues com um pé direito gigante, as luzes iluminam Ana Deus e Alexandre Soares, unem-se em redor de Osso Vaidoso. A primeira vitima deste duo é o amor, “estropiar”, “cortar-lhe as asas”, “e”, “dormir”, “amarrar-lhe”, a guitarra eléctrica de Alexandre Soares exibe-se a completar os versos de Regina Guimarães, a voz é de Ana Deus, que se divide entre a spoken word e o canto. A segunda canção insere-se na mesma lógica gramatical, “não tenho papá, não tenho trovão, não tenho peso ideal, não tenho conta poupança, nem doutor de confiança, há coisas que são só minhas”, os acordes de Alexandre Soares variam e procuram completar os estilhaços das letras. O solo é longo e circular os versos curtos, Alexandre Soares coloca-se de joelhos numa estranha penitencia, tentativa de se aproximar de uma concentração perfeita, a estranheza do acto da purificação. O terceiro tema é um slow, que ancora num lugar comum: “Chorar não vale a pena, sobre leite derramado”. Sobre a próxima canção Ana Deus, refere: “É a visão deles, dos rapazes da tutoria do Porto”, resultado de leituras com jovens delinquentes, impera a spoken word, e a letra é de auto-comiseração, “eu roubei, poderia ser a minha mãe”, e a lógica que impõe a solidariedade, “ladrão não rouba ladrão”, a guitarra eléctrica ganha protagonismo através de dinâmicas desconstrutivistas. Esta é substituída por uma viola picola, num tema que versa a vida saudosista dos emigrantes em França, o timbre da viola é a peste, é através dela que visitamos as casas com corações de Fátima, velas por Cristo, fotografias em Nazaré, garrafões de vinho da adega da aldeia, mulheres gordas e feias, homens escarram para a sanita, arrotam, e o Benfica está no coração: “Je pleure en regarde la telé”, “Je voudrais mourir chez mois”, é dito tão delicadamente, que se transforma numa pequena angustia. A guitarra eléctrica inicia a canção, “todas as noites são de transição”, “começam pelo céu pelo chão”, a sobreposição de acordes dá lugar a um improviso introvertido. A verão dos Velvet Underground, “Vénus in Furs”, “podia dormir 1000 anos”, “1000 sonhos não me acordariam”, “AAAAAAA”, “que briga na rua escura”, “que o teu mal te cura”, “amor chicote estala”, “estou cansada, estou exausta”, Alexandre Soares desconstrói o tema numa vertente minimal em que as notas são dedilhadas lentamente, a voz é que a retira do andamento fúnebre, “tua sombra, tua luz”, “já não se apaga”, “traga-me a”, “Aaiaiaiaiia”, “morte viva”, “AaiAIAIAIA”. “A próxima chama-se ´Poligamia` escrita pelo Valter Hugo Mãe”, num ritmo rápido como o desejo de qualquer mãe ou pai: “hei-de fazer a minha filha rica, dar-lhe um namorado de cada cor”, a guitarra quando se enfurece ouve-se um génio que a domina de cima abaixo, e lhe rasga as cordas, asfixia-a, num auto-erotismo suicida. “´Cacofonia` é dedica ao Mário Henriques [técnico de som] que é aniversariante”, o gráfico dos acordes é intenso e assimétrico, “tetas”, “drogas”.

Osso Vaidoso, 24 de Setembro, Salão Brazil @ Coimbra

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Hell and Heaven

Se o paraíso é uma plataforma épica de glorificação de uma eternidade utópica, então coloquem-se no interior de Peter Murphy, o morcego dos Bauhaus, o homem que nos orienta para o Inferno. Magro, caminha sobre as pontas dos pés, encara o público de Águeda de frente, beija o guitarrista, discute com o técnico do palco, este é o seu inimigo que Murphy tem que degolar e posteriormente violar. A suavidade de “Cuts you Up” é apenas para o registo fonográfico, ao vivo o power trio acompanha a guitarra acústica, em regime distorcido com o baixo a ganhar gradualmente o protagonismo. “You now the way?”. O plano que se inscreve a partir daqui é tétrico, cavernoso, com esqueletos pendurados em árvores, e mulheres obesas a cozinhar cadáveres, com velhos a rezar, “going to hell”, a bateria repete sete vezes como se fosse o prenuncio de um enforcamento induzido pela solidão, extrema unção, “going to Hell”, ecoa pelo recinto devoto ao hominívoro Leitão, com Peter ao lado do baterista corpulento latino americano. “Strange kind of Love, strange kind of feeling”, a sua voz é modular como a língua do Diabo, “broken Hearts”, o foco sobre o rosto emagrece-o, “to Love or to HATE?”, com o teclado a adocicar a cauda de espinhos. “This is a new song”, “wich is about, Magnificent.”. Duas guitarras em distorção, Peter dança como se estivesse sobre uma passadeira de ginásio, “she takes”, com a malha distorcida a soprar violentamente sobre os suicidas a impedi-los de se matarem, “all the cities”. Pausa. Peter, rodopia, como se fosse uma agulha a cair sobre uma teia de aranha. A alma dos Bauhaus é ressuscitada numa vertente niilista, o fundo do fundo, o bicho das sete cabeças e língua de bovino. “I don´t now anymore”, ritmo sincopado, variações rítmicas, “anymore” “anymore”, “anymore”, “anymore”, “anymore”, “anymore”, “anymore”, “anymore”, “anymore.”. A lágrima negra é aspirada, numa distorção revestida a prata pop, “OOOOOOO=OO”, “she is in parties”, parece a antepassada de uma canção dos Suede, mas Peter Murphy dança como um menino tolo de uniforme no recreio de um colégio inglês. “She is in Parties”, é uma premonição violenta num dub claramente dark. Stop. Peter Murphy entra em palco e posiciona-se na boca de cena, coloca os braços ao nível dos ombros e o roadie, segunda guitarra ocasional, enrola-lhe ao pescoço plumas negras, “Ziggy Stardust”, é corrompido longitudinalmente e em latitude, libertando-a da demência contida do original de Major Tom. “Space Oddity”, é apresentada numa sincope em que as teclas do piano são sempre as negras, abissal precipício delicado, cantado, por Peter Murphy e os três músicos deitados, numa encenação do pós-além, o supra-Inferno, “major Tom to run control”, numa, “today”, “no Way to go.”.“Transmission” da Joy Division, “radio”, “live transmission”, ouvem-se as guitarras a deflagar, e bateria a estourar, numa vertente de pura transmissão, diversão, negritude, dark, suicide, “dance”, “dance”, “dance”, dance”, “dance”, “dance”, “dance”, oiço a voz de um suicida, “show”, “dance”. “RADIO”, “dance”. Nine inch Nails e Johny Cash, em simultâneo são cantados pela voz do além, à guitarra eléctrica com as luzes acesas, num último shot de heroína.

17ª Festa do Leitão, Peter Murphy, 09 de Setembro @ Águeda.