domingo, 18 de outubro de 2020

DE L`AMOUR

Não associo o seu rosto à fotografia de quando tinha quinze anos olho para ele e encontro um rosto meditativo de quem está a planificar ou a sintetizar um problema a sua ausência era tão crónica quanto o era o da minha mãe e passeava por entre braços estrangeiros ou eram de estrangeiras cada uma com seu sotaque de uma cidade brasileira não me lembro de nenhuma delas tenho uma vaga ideia que eram de plástico ou pelo menos era assim que as sentia e tinham um odor estranho como que agridoce que ainda hoje tenho como algo amargo porque simbolizava que estava sem a minha mãe ou pai não sabia onde me encontrava se dentro ou fora de uma caverna húmida com desenhos ancestrais riscados nas pedras de argila tal como os que desenhava ou pelo menos parecidos creio eu ou talvez não eram meras deambulações de um estímulo criativo que me libertava da presença das amas havia uma que parecia que fazia de minha mãe e outra de outra mãe e ainda uma outra que aparecia recorrentemente para conversar sobre as suas dores diárias que eram de origem da alma ou pelo menos era a isso que associava às suas lamentações; noite de festa em Coimbra no Salão Brazil o último reduto de resistência à onda da pandemia que encerrou inúmeros clubs em diversas cidades do país e que se mantêm encerrados as bandas deixaram de ter um palco à medida da sua popularidade para muitos seria a emancipação da garagem para outros mais uma visita para cantar e tocar e serem presencialmente ouvidos algo que hoje é um luxo pois agravado com as emissões online que são por si só impessoais e formatadas a um emissor pobre que condiciona a audição do ouvinte e essa aversão entre outras obriga-me a estar sentado à espera da Raquel Ralha e do Pedro Renato uma dupla originária dos míticos Belle Chasse Hotel e tal se prende com a apresentação ao vivo do álbum editado recentemente “The Devil’s Choice, Vol.II / Heavenly Tales” se o primeiro capítulo desta dupla tinha como premissa reescrever temas de outros músicos/bandas em que dominavam cores garridas de tão agressivas que reinscreviam um outro negrume que era somente desenhado nos originais o concerto encontra a cantora com asas brancas mas de vestido negro acompanhada por Pedro Renato na guitarra e nos teclados e as canções dos Love and Rockets ou do Barry Adamson ou dos Pixies têm como centro nevrálgico realçar a melodia numa cadência que evoca simultaneamente uma efemeridade fúnebre em que reverberam pormenores narrativos que primam por uma eloquência dramática que apela a imagens idílicas que são de um arrasto sentimental que recorda estados de espírito dignos de uma criança ou laivos de demência por parte de um idoso e nessa transacção há um baloiçar de sonho derrotado como o que se assemelha a “Heaven” dos Psychedelic Furs; apesar de não perceber o que ou porquê ou por quem chorava era uma lamúria recorrente que se aparentava com algo tão distante do qual somente era capaz de ouvir o eco das suas palavras tolhidas de dor perguntava à minha mãe porque ela chorava e ela dizia que fazia parte dos pobres para se aliviarem de tal enguiço sentir-se-iam felizes não compreendi o que dizia enquanto contemplava com uma divagação filosófica o jornal e eu abandonava-me a jogar com uns mini carrinhos e afastava-me da sua presença e no meu quarto continuava a acelerar e sentia o cheiro do seu cigarro a ser absorvido parcialmente pela janela da nossa casa de onde se vê o horizonte e se me assemelho a uma criança é somente porque esse era o meu estádio de desenvolvimento mas a ausência de um irmão ou de um outro ente querido da minha idade teriam feito nascer um amor que desconheço como é o fraternal posso alistar-me num lar e encontrar o irmão que tanto desejei desde que me lembro que o espero para lhe dar a minha palavra que lutarei por nós tal como hoje como sempre.  

Raquel Ralha & Pedro Renato, “The Devil’s Choice, Vol.II / Heavenly Tales”, 17 de Outubro, Salão Brazil, Coimbra.

sábado, 3 de outubro de 2020

Filhos do Tédio

O gato no alpendre da nossa casa parece que se deita e se enrola como uma corda de um veleiro sobre o convés mas ele é negro de olhos verdes e tem uma alegria de quem é feliz na sua pele de negro em tempos usado pela magia negra ou intitulado como símbolo do azar ambos são redundantes tanto quanto o poderia ser na Idade Média por vezes o gato senta-se ao meu colo numa simples manifestação de carinho que retribuo com carícias para o embalarem no sono e ronrona numa meditação que o liberta da condição de gato descendente dos glorificados no Antigo Egipto e ou de vampirismos de filmes de série B mas essas considerações pouco lhe importam a prioridade é satisfazer o seu ego com a minha ternura benevolente de quem faz dele um ser precioso que me compreende tanto quanto eu conheço as suas manhas de gato mimado é o meu companheiro nesta casa que intitulo como nossa porque ele é o fiel da balança com a sua alegria que contamina e me torna numa pessoa que somente reconhece a felicidade como se fosse um postal de uma ilha paradisíaca e se pudesse sairia deste lugar para uma outra divisão com menos luz diurna para que a minha sombra não fosse tão pesada parece que estou imerso numa penumbra ditada por arquitectos e empreiteiros tão ignorantes quanto gananciosos quase que se assemelha a um bunker onde saltita o meu gato preto sobre o cimento do chão coberto aleatoriamente por tapetes esburacados; o trio conimbricense Wipeout Beat apresenta-se no Salão Brazil com o propósito de apresentar novos temas que irão constar no próximo álbum de originais onde irão constar duas canções que ultrapassam os dez minutos algo ousado na pop que decorre a nível nacional mais predisposta às rádios locais mas esta consideração serve de contraponto para destacar positivamente os Birds Are Indie ou os Mancines e ou ainda Raquel Ralha & Pedro Renato e a lista ainda poderia passar pelos Flying Cages ou os a jigsaw ou ainda os penúltimos mas nem por isso os menos importantes os demolidores The Parkinsons acompanhados pelo Kazuza ou os cáusticos Subway Riders e o trio Wipeout Beat são a razão exclusiva desta crónica sónica “Sonic Life” é uma canção com variações mínimas em teclados analógicos numa continua desconstrução do kraut rock do álbum “Small Cities Big Thoughts” (2018) e é aqui detalhada para ser usada como termo comparativo das novas canções e essa premissa é recolocada num outro contexto sonoro em que o que decorre é um composto que incorre numa releitura ou reescrita do punk ou do blues quase que os decapitam e os transformam num outro conceito de cultura mais denso e harmonicamente poderoso com as progressões circulares a se estabelecerem como elemento exógeno a esta revolução que poderá ser em cada segundo ou minuto em que inscrevem uma nova utopia; esburacados por causa da sua criancice de afiar as unhas ao tapete ou então esgravata-lo para escavar uma saída desta casa como o compreendo se tivesse a sua força de vontade conseguiria algo que não fosse um encarceramento imposto pela minha velhice a qual parece que encobre e ou revela a minha impotência em augurar um outro futuro que este que não se parece com esse espaço temporal neste é o presente que me domina para me obrigar a pensar sobre o porquê de não conseguir fugir mas não sei como nem sei para onde não tenho a saúde do meu lado o meu coração consome comprimidos para funcionar assertivamente a minha mão treme e não sei porquê talvez seja do frio que consome os tijolos que formam o meu esqueleto onde há musgo e outros parasitas tontos o meu gato é o único ser ao qual dou apreço tal como daria a quem me amasse incondicionalmente tal como o fiz à minha querida esposa que se passeia tal figura diáfano e me trespassa o coração por uma energia rejuvenescedora que me dava alento para forçar a chave da porta e desaparecer tal como o faz por vezes o meu gato para quebrar com a sua rotina de prisioneiro da minha solidão.

Wipeout Beat, 2 de Outubro, Salão Brazil, Coimbra.