domingo, 25 de novembro de 2018

Le Musée Imaginaire

A história da sua vida são duas palavras maltratadas e se uma é movida a electricidade a outra a gás e misturadas explodem do interior para o exterior e os estilhaços marcam a página em branco com verbos desconjuntados e tento refaze-los em frases tão belas quanto cinéticas mas o abismo que se imiscui entre nós impede-me de concluir a narrativa que serpenteia no interior de um enigma que se constrói e desconstrói infinitamente e num espelho encontro um reflexo que me é estranho pois parece que se pergunta “quem sou eu?” e o meu silêncio sentenceia que sejas o nada que analisado é o vácuo que consome este texto e o oprime à asfixia a clemência tenta seduzi-la para que se esqueça da sua natureza ubíqua e os seus pares seguem uns posteriores a outros com o intuito de subtrair a beleza à vida alimentados pelo desejo de apagar as urbes que perfazem os neurónios que transpiram a urgência de fechar as janelas e subtrair do estádio de desenvolvimento o seu aspecto paisagístico que heterogeneamente se revela nos muros onde rugem os termos mais irreverentes e na linha que separa o utilitário do desperdício e afogam-se os respectivos critérios e o libido é obrigado a comprazer-se à prostituição onde reina o absurdo e se o seu rosto são missivas de amantes ignorantes que confundem os opostos e se desligam da realidade amorfa que se dobra segundo a força das minhas mãos de criminoso à soldo da língua portuguesa e assino os três ilusionistas que se revelam através do seu desaparecimento e com eles esvai-se o medo por entre as flores que perdem a sua textura marmórea e clamam pela chuva que se instala para as retirar da secura e as suas pétalas humedecem como lágrimas que as libertam da sede e do poço transborda num dilúvio de prazer de um colosso em chamas e nas torres inventam-se bandeiras com o mesmo algoritmo que encadeadas se comprometem a simular a paz e a guerra num processo canibal que consome as consciências alienadas à escravatura do bem-estar que é slogan de virgens que dispersas se comprometem a amar os marginais como eu; Medeiros/Lucas apresentam-se no Teatrão e dividem-se predominantemente por voz e guitarra acústica e Medeiros é de um portento cântico que tem origem nos trovadores e ou em cantautores como Zeca Afonso ou José Mário Branco do primeiro herda a capacidade de transformar um poema numa arma do segundo a entoação que é correspondente à cenografia da qual estão destituídas por natureza as palavras mas algo que é transcendental no seu canto é o ondular dos versos como se fossem ondas num mar dominado por um maré de Outono aliás é esta a estação do ano que domina sem que tal corresponda à perpetuação da saudade ou da comiseração antes corresponde a uma densidade dramática que tolhe os poemas de uma alma à qual desconhecemos a sua origem geográfica acompanhado por Lucas na guitarra acústica que domina irreversivelmente e com o talento de alterar a métrica conforme o exigem os poemas cantados e dessa forma é o responsável para que o concerto seja de uma vivacidade tão sóbria quanto criativa há em algumas canções o uso de beats que as impregnam de uma tonalidade pop sem que isto seja sinonimo de futilidade ou de vazio estilístico antes são tão eloquentes quanto as reduzidas a voz e a guitarra talvez épico seja falho para adjectivar o concerto desta dupla gigantes; e confiro a relação entre artigos inconciliáveis com o objectivo de induzir-me um destino com ponte entre dois montes de limalhas que são gradualmente consumidas pela erosão advinda de um respiração pausada e a luz que inquieta o firmamento esvai-se por entre os fogos e o lamento é uma surdez que provoca uma gestualidade humana às árvores tementes à tempestade e de uma nuvem advém uma voz “Amém amém vos digo amem o próximo” mas as suas palavras são uivos de sangue que escorrem deste texto com origem numa vela imaginária que se apaga e escurece os vestígios das minhas mãos que tacteiam as teclas como um cego que não suporta a asfixia da noite diária em doses demenciais e o espaço parece uma dimensão que se anula num outro epicentro que se impõe como um sinal infinito que se ramifica num delta que corre para as montanhas de mosaico de réptil venenoso que brilham tais estrelas de diamantes voláteis que se dispersam pelo infinito perpetuando o desconhecido que enigmaticamente se institui em frequências ondulantes que são livres dos temporais que por vezes percorrem as paredes com mapas sem fronteiras que não sejam as determinadas pela geografia que radiografada são rostos que de olhos abertos se reflectem o céu.

Medeiros/Lucas, “Sol de Março”, 23 de Novembro, Teatrão, Coimbra.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Lições de Abismo

Dia de festa é no Teatrão que decidiu abrir as suas portas a um concerto solidário para com uma das vítimas da tempestade Leslie que assolou a zona centro há mais de um mês e o contemplado foi o festival Gliding Barnacles (que se realiza na Figueira da Foz) e a denominação desta acção inédita em Portugal é “Cabedelo Calling--Gliding Barnacles ´Leslie` Fund” e que tem inicio às dezassete e trinta (está previsto que acabe à meia noite); Wipeout Beat têm como centro sonoro um sinfonismo decadente que ganha dimensão de kraut rock e a postura do trio em palco é descomprometida e que ganha diversas perspectivas quando sobrevém um improviso desarmante há ainda a salientar a guitarra eléctrica do Pedro Antunes a ser executada na plateia ou a inclusão do Johnny (The Rooms) em “Stupid” que a transformam em western kraut rock; The Rooms são um caso em que a complexidade e a simplicidade rock com origem na América do norte e disseminada a partir do fim da década de sessenta e são complexos porque reinscrevem essa herança e a pejam de dois tempos paradoxais o passado e o futuro e simples porque são capazes de traduzi-los com virilidade e assertividade (para seguir com atenção); From Atomic têm por base o noise mas o originário no Reimo Unido mas tal é uma impressão errada somente a estrutura é retirada a essa corrente estética já a guitarra eléctrica está ligada a um pedal de delay algo que transporta as canções para um psicadelismo que tem duas vertentes a opressão e a liberdade (ou o sonho e o pesadelo); Ruce é um MC que dispara os seus ditames sociais e ou morais com um ritmo acelerado e o seu comportamento é de quem quer incentivar a plateia a dançar ou a repetir os versos e obtém de volta as mesmos; Raquel Ralha & Pedro Renato são emissores de um compêndio de clássicos da pop e do rock que invertem para um universo negro tão negro que é impossível obter uma percepção ampla de tal negrume (épico); Marc Valentine é acompanhado pelos Anaquim que se revelam surpreendentemente inexcedíveis quanto precisos a debitar o rockabilly e ainda deixam espaço para que a voz do Marc Valentine encontre uma envolvência tão cativante quanto inebriante; Ruby Ann também se faz acompanhar pelos Anaquim e a relação que se estabelece é a da simbiose isto porque o que domina é o equilíbrio entre o rockabilly e a cantora que gradualmente se apropria das canções e se assume como uma narradora que está a ditar a sua ficção sobre um universo tão rural quanto urbano; Subwayriders são uns anarcas que usam o ruído nas suas diversas vertentes como centros que irradiam perturbação e tal sobrevém de uma ironia corrosiva pois recorrem à música rock de vanguarda de Nova Iorque (60-70) e invertem-na para outros domínios em que a sua rudeza e prepotência é enquadrada numa diversão contínua; D30 revelam-se através do rock and roll com doses generosas de distorção que se alicerça num ritmo pesado o qual se compromete a sustenta-la mas há um recrudescer do volume e consequente da distorção tomando proporções demoníacas; The Walks encontram-se diluídos num rock psicadélico que é de uma elegância deveras surpreendente e nessa medida transformam essa estética em algo único (fascinante); Victor Torpedo apresenta duas canções ao teclado e a guitarra eléctrica com a sua voz de rocker mas há uma desadequação entre estes e o ritmo digital não deixando de ser um excelente exercício estilístico as restantes têm origem no “Karaoke” e são pop lo-fi e que encontra na multidão (que parcialmente invade o palco) o seu cúmplice e ainda há a sua sentença: “O Leslie acaba aqui!”.

Cabedelo Calling--Gliding Barnacles “Leslie” Fund, 17 de Novembro, Teatrão.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Secreções, Excreções e Desatinos

Não fumes nem te filmes a fumar os teus dedos não sei há quantos anos a observo a fumar-me devagarinho por vezes converso com o seu umbigo com um diabrete trespassado que saltita no meu ombro e mete a sua língua na minha orelha para me seduzir a carregar no botão explodir para me subtrair a ossos e a carne desmembrada o seu baton insere uma dentada no meu pescoço mas não quero rejuvenescer nem que me peças emprestado os testículos para dar de comer ao teu tubarão que por vezes abandonas à porta de um lar de alcoólicos famosos que colocam pensos embebidos em Jack Daniels nas vaginas talvez sim ou talvez um de nós esteja a transpirar as palavras que nos tornam vorazes mas momentaneamente aprisionados a umas paredes de luxo e o foco circular espera ser descoberto pelos mirones que se limitam a procurar uma escapatória à sua curiosidade mórbida e a tua locução é de uma cigarra habituada a lidar com as intempéries que antecedem o Verão há quem a condene à morte mas a sua sentença apenas é deliberada por um vogal de uma associação de vagas malucas que são vetadas à entrada da discoteca e ela vibra ao expurgar a alegria e transforma-la em felicidade dou-lhe a mão mas é de composto inexistente que paradoxalmente me toca como se eu fosse uma guitarra portuguesa que se rebela contra a saudade lamento a sua surdez e acrescento uns acordes em vão e abandono-me numa estrutura que se movimenta saturantemente e ofegante reza pelo futuro e pergunto-lhe se é pelo dia de hoje mas ignora-me altivamente estou certo que ela conhece o preço de tudo mas ignora o seu valor é possível que se encontre a contar os escudos que lhe entopem os bolsos e que lutam para residir nesse buraco onde se sepultam os destroços de navios; o Stereogun apresenta dois nomes para subir ao seu palco e a primeira é uma jovem que veste de fantasma e a sua designação artística é Vive La Void e as suas canções primam por uma linearidade synth por ser meramente repetitiva sem que esta resulte assertivamente em algo hipnótico e nem a tonalidade gótica a consegue retirar da monotonia mesmo que sejam as mais enigmáticas e por consequência indubitavelmente as mais belas; Suuns tem uma narrativa sónica deveras entusiasmante por agregar às canções com estruturas electrónicas diversas correntes estéticas como o rock o kraut rock e a prog e a noise e a pop e o trip hop isto sem que haja quase pausas de umas para as outras e que estão predominantemente imersas em tonalidades negras que em combustão contínua deflagram numa claustrofobia que em vez de atrofiar o ouvinte o liberta e ainda há a destacar a urgência com que deterministicamente se impõem na memória futura como épicos; e Ámen ámen te digo que é melhor a caixa de cartão a esta casa escavacada pela Leslie essa puta morena que se vende por um prato de lentilhas e as vacas mugem num coro selvagem que é um hino à liberdade que gradualmente se estabelece numa métrica fugue mas a natureza ventosa das almas impõem que se altere a canção para uma fúnebre em que constam os alicerces de uma outra sociedade destruída pelos romanos e os arqueólogos que a descodificam reinscrevem um apocalipse detalhado num salmo de seda esburacado por aparos intelectuais e onde é que nos encontramos talvez num centro que paulatinamente se reinsere num outro tempo que se limita a ser uma escapatória para o além que imaginariamente é possível que seja algo tão abstracto quanto surrealista e um lastro de heresias percorre o céu como uma estrela cadente que anuncia o nascimento de um menino sem braços ou pernas que tem uma cruz vincada nos lençóis de linho setenta vezes sete e ressuscita completo no teu regaço de gaivota tonta desorientada que despe as penas hediondas oriundas de uma lixeira no fundo de um oceano que se consome em cada corrente que se prende a um hemisfério invertido que inverte as coisas à nossa volta e ao minuto se discorre uma outra história em que domina a harmonia num retábulo de Mestres que representam uma fábula que defende um mundo a céu aberto às modas ditadas para serem dissecadas pela tua língua viperina.

SUUNS + Vive La Void, 31 de Outubro, Stereogun, Leiria.