domingo, 23 de março de 2008

The Boys Next Door

A corrente de som fustiga o ar, desloca-se das altas para as baixas pressões, faz tinir os tímpanos por onde entram The Vicious 5. “Alguém disse vulva?”, questiona o vocalista Joaquim Albergaria: “é um prazer estar no Alfa Bar, onde somos sempre muito bem recebidos”; “este é o nosso primeiro concerto de apresentação de ´Sounds Like Trouble`, o concerto no Lux foi uma merda!”. A voz eclode das colunas colocadas dois degraus acima do chão, onde os outros três membros deste “Suicide Club” colidem, a bateria perfura a síntese da Laranja Mecânica, tão perversa quanto eloquente, com as guitarras a distorcer em speed ritmado e rifts numa cadência urgentemente perpétua: “You have allways been a member of the suicide club!!”. “Quando falo em mudar, estou a falar de vocês e de mais vinte e quatro pessoas que andam por ai!” e “esta sala é bué da sexy!”. Tem a cabeça rapada e a barba é uma extensão desta cabeleira, quando abre a boca saem uns dentes de piranha sequiosa por sangue humano, “sexy”! Ah! “Coffe Helps” to do “Fallacies and Fellatio”, uma sequência a induzir o sufoco premeditado, “alguém falou em vulva?”. As luzes de cores vivas acendem e apagam-se cavando no palco um espaço inexistente, o baixista, Rui Mata empurra o vocalista para a multidão, encena a moshe, segura a cabeça a um puto de camisa branca, enrola-o como um pião e lança-o para a direita. O som cilindra a multidão aquando dos disparos de “Your Mouth Is A Guillotine”, a pausa inadvertida com o problema mecânico do baixo, que é trocado e afinado através da entoação de “bring it on, bring it on, bring it on”. A única disposição possível é iludir o alarme e fugir deste sítio que recusa limpar-me da ironia que perpassa um crime, os médicos vestem-me o colete de forças e injectam-me doses massivas de laxantes, revejo-me num “Bad Mirror”, a projecção de uma frase que impõe: “Pensem todos ao mesmo tempo, em algo muito violento!”

“Sounds Like Trouble Tour”, The Vicious 5, Alfa Bar (Marinha Grande), 14 de Março

sexta-feira, 21 de março de 2008

Cure for Pain

O cenário, transparente, é constituído por um jogo simples de luzes semicirculares que rodeiam The Cure, como uma teia que os sustém e lhes fornecem estrelas que se suicidam ao ouvir as três guitarras em “Plainsong”, e a voz disléxica de Robert Smith começa a ganhar corpo. “Alt.End” acentua o alinhamento rude onde o baixo e a bateria ganham predominância pós-punk, num pulsar enérgico violento vertiginoso, que nunca abandonam Robert Smith. Um romântico de alma gótica flamejante, que se exacerba ao estabelecer as regras sentimentais de uma nova tratadística que perpassa: “Love Song”, despida da ligeireza que caracteriza o original, a sua voz está por vezes “faraway” e mesmo assim “I `ll always love you”. A guitarra branca distorcida de um careca de trela ao pescoço, e camisa preta transparente e saia de folhos negra, vagueia acompanhando o ritmo. Quando estilhaçam “Pictures of You” o dramatismo excede-se para lá do obscuro, a esperança é uma linha tão vaga quanto o horizonte. E o fim é sempre tão abstracto em “Lullaby” , numa cadência angustiante , “meet me in the morning” e “spider-man is allways hungry”, com direito a uma longa introdução ditada pelas leis freudianas. Robert Smith dirige-se para a bateria e bebe “Cartuxa” e retira a guitarra acústica e dedilha “Kioto Song”, com contornos geográficos desconcertantes. Tal como é estar perdido “In Between Days”, projectam imagens de algo imperceptível, sobre a parede branca do Pavilhão Atlântico. Onde por vezes se espelham as sombras dos quatro músicos, o baixista de t-shirt de cavas preta, e botas da tropa, cirandei-a agressivamente pelo espaço vazio. As estrelas pendem na vertical, a imitar os virilities e os strobes, utilizados equilibradamente de canção para canção. O psicadelismo como fonética predominante é concretizado em “One Hundred Years” a roçar a vertigem causada pela sua rítmica progressiva. “Obrigado” por vezes abandona o seu canto à frente do palco e acerca-se de micro a cantar nos vértices do mesmo. Vemos a sua mascara uniformizada, com base branca, lábios esborratados de baton vermelho, olhos sujos de preto e uma cabeleira desfiada, transplantada de uma boneca alfinetada em sessões de macumba. Abandonam o palco sob uma ovação de quinze mil flashes, uma multidão sequiosa por retornar a uma floresta onde passeia a caveira de Hamlet. “A Forest” é pontuada com o público a acompanhar o baixo e a guitarra de Robert Smith, numa união sincrónica, a prolongar o fim. “Love Cats” leva Robert Smith encanar um urso polar, que foge dos glaciares que estão a derreter, dança tão timidamente que todos os seus gestos são aclamados. “Why Can I Be You?” uma clara alusão às duvidas da adolescência, quando se anseia por um modelo, líder a seguir, a voz de Robert Smith, uiva dilacerantemente esta duvida. Mas aos rapazes não é permitido chorar, “Boys Don ´t Cry”, iluminada pela intermitência das estrelas que são utilizadas em filmes porno de Bollywood. Desaparecem e deixam as luzes de lápis azuli, a receber as palmas, que se separam depois de (terem) “Killing an Arab”, o épico que não apazigua as almas, antes, parece que estoira num fim rebelde, apoteótico, dor, prazer, soturno, luminoso, “Obrigado”.

“04: 33 Tour” The Cure, Pavilhão Atlântico (Lisboa), 08 de Março

quarta-feira, 19 de março de 2008

O Heterónimo do Heterónimo

O pró-reitor para o património da Universidade de Coimbra, António Filipe Pimentel, inaugura os trabalhos com um tom seguro e confiante, que eleva as expectativas, depositadas num número extenso e heterogéneo de convidados, reunidos em redor: “Os Heterónimos da Imagem”.

A primeira a subir ao palco do Anfiteatro II da Faculdade de Letras, é Simonetta Luz Afonso, presidente do Instituto Camões desde 2004. A sua palestra versa: “A Importância da diplomacia cultural na construção da Imagem de um País”. Retrata com precisão os mecanismos, que para além da leccionação do português nos Institutos espalhados pelo Mundo, e, até através de e-learning: “Uma vez recebemos o telefonema de um ucraniano que `quero apreender português`” e imita-o com sotaque tipicamente do leste: “Nós temos que fazer alguma coisa por essas pessoas!”. “Foi através das feiras, que nós promovemos, de livros, como a de Frankfurt que lançou Saramago para o Nobel”. Através da utilização do “coração, que pedimos ao `Eleven`, da Joana Vasconcelos”, “e que esteve exposto nos grandes palcos da política europeia”, porque, “hoje em dia a politica também é espectáculo, como sabem.” O seu instituto permite o intercâmbio cultural “usando as diferentes embaixadas portuguesas, desta forma não precisamos de mais funcionários,” através deste intercambio, “os artistas portugueses podem-se expor no estrangeiro, e nós iremos divulgar por exemplo, os africanos”.


“Dêem quinze minutos a um advogado e ele falará de qualquer coisa” é com este complexo que José Miguel Júdice inicia o ambicioso “A arte do retrato: as duas faces dos poderosos. Revelações e ocultações”. “Há precisamente vinte anos atrás o meu amigo Luís Pinto Coelho, pediu-me para escrever um texto para o catálogo da sua exposição, portanto recorri a esse texto”. Na sua dissertação cita Rousseau em francês imperceptível, e explica que na “corte”, não especificando qual e em que tempo, era “importante ser visto, mas não muito”, o importante era a imagem que as figuras projectavam, a sua representatividade. Dai o bom retratista era aquele que ocultava “o rosto do soberano”, e a linearidade do discurso e o déjà-vu é constante, tudo o que enumera seria vanguardista nos anos sessenta. Para recordar a parte cor-de-rosa: “Sarkozy e Chavez, flirtam com modelos…”; “o Fuck do Berardo!”


Júlio Machado Vaz faz o uso do PowerPoint de forma eficaz, o seu texto corresponde às imagens. “Na Grécia os senhores, sequestravam um rapaz, com o aval da família deste, durante três semanas” com o “intuito de o assumir como amante”, se fosse o escolhido oferecer-lhe-iam várias oferendas como “um boi”. A relação mantinha-se até o adolescente “ganhar pêlos” que é o “primeiro sinal de envelhecimento” muitos “retiravam-os com pinças”, já era uma questão de amor que se “estabelecia entre ambos”. Quando chegam os romanos “invertem este processo”, mas é-lhes permitido violar seja quem for quando ganhavam ao inimigo. “E é já nesta altura que a mulher é quem monta o homem” como se o acto fosse retrato da submissão do homem. “Hoje em dia já não se estuda o doente mas a doença”.

“Instalação e performance em João César Monteiro”. A dissertação de Paulo Filipe Monteiro é circular, e recheada de termos codificados, que de parágrafo para parágrafo se vão multiplicando, oferecem um toque burlesco às suas definições. As citações de João César Monteiro, pontuam e suportam o discurso. Chega a relacionar o realizador com o “cosmos” com uma “não-imagem”, “nos filmes de João César Monteiro não há sexo apenas sensualidade” esquecendo o voyeurismo, a perversão sexual, e o paralelismo evidente entre a vida de João de César Monteiro com os seus heterónimos, e nem o familiariza com Luiz Pacheco. Depois de ter mostrado excertos de alguns filmes, “os pintelhos circulares, que se encontram no diário, na `Comédia de Deus” a sua circularidade desbocava numa conclusão hiperbólica do génio do cineasta figueirense.

Delfim Sardo toma posse da palavra fluidamente e até por vezes pontua-a com um simplismo explicativo, que permite a concentração e a visualização das peças escultóricas, que se transmutaram em instalações. “Imaginar e Espaço” é o titulo da sua palestra onde é recorrente citar Freud, para justificar a existência de uma determinada obra. “Já não queremos que o espaço seja um caixão pintado”, é a frase que perpassa o seu discurso, procurando questionar o espaço através de um escultor “que subdividiu a sua casa continuamente, colocando-lhe elementos como uma mesa e cadeiras, nas divisões” ,“este projecto questiona os espaços que habitamos, a sua dimensionalidade”. O cubismo “é o surgir de uma tridimensionalidade” . Exibe uma maquete de uma torre que faz sombra à Praça Vermelha, algo “completamente utópico!” Ou o facto de um autor ter gravado a feitura de uma caixa de madeira que durou trinta e cinco minutos, “o único que ouviu a gravação até ao fim foi John Cage” (risos). Um outro ter disparado contra os vidros do “museu, é óbvio que foram logo substituídos!”

Anfiteatro II da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, “Os Heterónimos da Imagem - Arte e Imaginação", inserido na X Semana Cultural da Universidade de Coimbra, 08 de Março.

terça-feira, 4 de março de 2008

A Ilha dos Amores

Há uma sereia ou fada anjo maternal de útero com proveniência de Cabo Verde. Uma arte ancestral de procriar uma voz excelsa de calor tépido e virginal. Na “Dispidida”, a terceira canção, apresenta-se no Pavilhão Multidesportivos de Coimbra, já espreita o solo de guitarra eléctrica. A cadência aumenta ligeiramente em “Nha Sibitchi”, num canto que se alarga na latitude e na longitude. Mayra Andrade apresenta “Comme s´il en Pleuvait” , “esta música é muito especial para mim, lembrei-me de contar história da D. Emília” recorreu à ajuda de “Tete, o autor da música”. A personagem diz-lhe um dia, no tempo em “que eu ia para a escola com o uniforme: ´sabes que no passado também fui uma princesa como tu”. Alguém do público dirige-se em crioulo e ela responde: com o estalar da língua, sorri evidenciando os seus dentes de marfim, cabelo solto e um vestido salpicado de veludo de topázio, apenas no tronco frontal, até aos joelhos cobertos por meias negras em salto alto de pedra vulcânica. “Não digam isso” e “já conheci em Portugal duas ou três pessoas que conheceram a D. Emília”, que caiu do pedestal quando “a sorte se virou e ela [teve que] pedir moedinha” e estende a mão direita. Ela conduz o público para um trance existencial em “Comme s´Il en Pleuvait” e a complexidade da métrica e, consequentemente, do ritmo, evidenciam-se como a encenação melodiosa do divino, a romper as margens da Ilha dos Amores, com a junção do acordeão de Celina da Piedade. O efeito é mágico e sensual. Abstracto e concreto. Se é blues ou jazz é fruto da nossa fantasia. A capturar uma baia tórrida em “Destino Maior: Amar”, ao deixar a voz deambular de cadência como se fosse uma gota liberta por uma nuvem aventureira que pernoitou sobre o Mindelo. O violão emula-se enquanto ouve a voz de Mayra Andrade, um dueto conjugal a verbalizar “Kem Ki Bem Ki Ta Bai”. Insurge-se contra o fado em “Alfama”, numa ousadia melódica hiperbólica e ainda assim delicada e respeitosa, pois não é tingida como antítese ao original, antes coloniza-a através da cadência que impõe as temperaturas ardentes de São Vicente. Em “Navega” pede uma guitarra emprestada e lidera o pulsar da estrutura musical, recolhe em si a liderança do comunicante empático, o cavaquinho ensimesma-se numa morna francamente efervescente. Que vê a “Lua” da Ilha dos Amores obter uma narrativa estilística suportada por um baixo grave e bateria eclética e as guitarras eléctricas? Ligadas à corrente que dá sangue aos nossos corpos.

Mayra Andrade, Pavilhão Multidesportivos de Coimbra, 29 de Fevereiro.

sábado, 1 de março de 2008

Utensílio Moderno

Paulo Pereira é alto, magro e, acrescente-se uma calvície prematura, não o serão todas? O historiador esteve na Faculdade de Letras de Coimbra, no Anfiteatro III, 4º piso, sob a égide, “A História de Arte e a Gestão do Património”. A eficácia de um discurso destituído de formalismos linguísticos, “sim, eu não me lembrei disto por eu ser brilhante”, mete a mão no bolso esquerdo, desloca-se para a direita e abana a cabeça, a instigar constantemente a comicidade. Segundo Paulo Pereira, “esta última Ministra foi devastadora para a Cultura, tem que se começar tudo de novo”.
Coloca como o ponto de saída desta conferência a Revolução Francesa, a partir da qual deixou de existir uma estrutura social, vertical, “mas há muitos países europeus que [ainda hoje] são monarquias, a Finlândia, Dinamarca”. Mas, quando se deu esta equação, que “não foi ao meio-dia de 1789”, desapareceu o “tempo circular”, que até aí era manipulado pelo Clero/Nobreza/Reis, e surge o tempo linear, “onde há uma evolução” económico-social.
De seguida, enumera e explica sucintamente os diferentes tipos de “coisinhas” que foram acrescentadas à História de Arte, e em particular, ao Património, “desde a acústica e o cheiro de um espaço”, há “coisinhas” e mais “coisinhas”, “é por isso que digo que a História de Arte está sempre a receber novas tipologias de estudo”. Consequentemente, aumenta o âmbito da sua universalidade, como se a História fosse vítima do tempo que a produz, por exemplo desde 1990 que se acrescentaram mais de dez disciplinas à História de Arte. A este quadro teremos que “implicar arqueólogos e arquitectos e a História de Arte” para “ avaliar o objecto de estudo”, em todas as suas vertentes. Para Paulo Pereira, “les monuments”, que é como os franceses se referem aos “monumentos”—(e repete, sublinhando a ênfase no sotaque parisiense: “Les Monuments, son notre monuments)-- isto é, representam o passado [patrimonial] que deve ser preservado, não foi por acaso que os museus nasceram em França”. Estes foram os primeiros a lucrar com esta nova deliberação.
Num país pobre como o nosso, é natural “que não consigamos defender o nosso património”, mas “podem criar-se mecanismos”, e exibe em powerpoint-- o conferencista recorreu sempre a este apoio visual-- uma lista de estruturas que foram sujeitas a escrutínio, quando desempenhou o papel de vice-presidente no extinto Instituto Português do Património Arquitectónico. Paulo Pereira defendeu que “os lucros” ganhos nas diversas instituições deveriam ser divididos pelas outras, “que não atraem muitas pessoas”. No entanto, contrapõe com o Palácio Nacional da Pena que: “sofre com a chegada constante de turistas”, “não chegam todos ao mesmo tempo, como é óbvio”. A afluência destes agentes “obrigará ao seu encerramento uma vez por semana, ou mesmo duas, mas depois, isso vai-se reflectir na conta da luz e até nos vencimentos” dos funcionários de toda a rede de monumentos nacionais.
No ecrã, exibe obras que são “impossíveis de preservar pelo Estado” e dá como solução a “semi-privatização dos edifícios”, transformando-os em pousadas, mas “os espaços continuavam a pertencer ao Estado”. Apesar de não lhe agradar, na totalidade, esta solução, sublinha, “que é melhor do que ver os edifícios a degradarem-se”. Como exemplo paradigmático dá o Convento de Mafra, que é o que “tem a maior área coberta” em Portugal, um quarto do seu restauro custou, “um milhão de contos [faz suspense] e quatrocentos mil contos”.
Stockhausen caracterizou o ataque às Torres Gémeas como uma “obra de arte”. Paulo Pereira, vê neste ataque uma guerra entre dois tempos antagonistas, “os terroristas foram extremamente inteligentes, atingiram o coração de algo que representava um bem maior”, ao fazê-lo “estiveram a contrariar um tempo que não é teocêntrico” e logo linear, “que não submete a evolução a um dogma profundamente religioso, fundamentalista”. “Eu não me lembrei disto porque sou um génio, eu estava na cozinha a falar com a minha mulher e comentei com ela: `já não lhes bastam as pessoas?”. E o seu rosto de barba por rapar, ganha contornos de quem está a ver a verdadeira extensão do horror do 11 de Setembro.

Paulo Pereira, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de História de Arte, Utensílios Modernos/ A História de Arte e a Gestão do Património, 27 de Fevereiro.