domingo, 27 de abril de 2008

Nan Goldin

O Coliseu de Lisboa composto por corpos negros datados de 1969, esperam ofegantes por Nick Cave and The Bad Seeds. Por vezes somos iluminados por uma luz central que me varre o rosto envelhecido, “Red Right Hand”, mal acompanhada pelos braços reumáticos dos espectadores. Quando “Dig, Lazarus Dig!!!” é projectado na tela que espelha as sombras dos seis músicos, descontando a bicéfalia de um baterista, não coincidem no ritmo e a voz é incapaz de suturar a canção. “Tupelo” é um cântico shaman, de tal forma é inexpressiva a sua vocalização, como se tivesse a garganta colada ao microfone, “until The King is born!Until The King is born! In Tupelo! Tupelo-o-o!Until The King is born in Tupelo!”. Elvis é o alter-ego de Cave, que o instiga a apunhalar: “OOOOH Deana, and I ain't down here for your money,” a verdade: “ I ain't down here for your love, I ain't down here for your love! Or money! I'm down here for your soul!”, a canção excede-se, quando o ritmo debitado é certeiro, “your soul!!”, ecoa por entre os corpos alienados, perante a violência de Cave.”Three years in Brazil!” e apenas recorda quatro palavras: “Obrigado” e “na cerveja porfavoor”, mexe o braço direito e abana a cabeça semi-calva, os olhos enterrados sob as sobrancelhas fixa-nos. “This next song is about… Pacos?”; “This next song is about… Barcos?”, “come loose your dogs upon me”, se prosseguirem na utopia que exaspera os versos de um romantismo ácido, estarão na escuridão impeditiva de visionar a tridimensionalidade. “Jesus of the Moon” soul nervosa, cru, flácido, harmonioso quando perfura a flauta de bissel a quebrar a delicadeza bucólica. A esperança de ser retalhado pelos acordes violentos de “Let Love In”, mas o sangue que impulsiona este orgasmo é lento e penetrante, tardio, sublinhado pela guitarra acústica de Mick Harvey. Mantêm-se a profecia incestuosa nos acordes de “Papa Won’t Leave You, Henry”, “paa wo`nt leave you boyyy!!" De seguida redundam num coitus interruptus “Get Ready for Love”: “That was a fiucking disaster”, insulta a striper por ser um travesti, tatuada no peito Jesus Cristo. Bebe e o baixista fuma, ladeado pelas baterias, branca e cor-de-rosa. “Satgger Lee” é vocalizado em formato sincopado a cuspir as palavras a narrar o sucedido incisivamente, numa confrontação recíproca, os cúmplices aniquilam-se mutuamente, da subtracção, predomina a desordem. "´Yeah, I'm Stagger Lee and you better get down on your knees. And suck my dick, because If you don't you're gonna be dead`. Said Stagger Lee”, o desabar dos sinais iconográficos de uma igreja gótica, bastardo. “What do you want to hear?”, “fucking Idiots!!!” e convida: “”sing among us: oh mama, oh mama, mama”, os versos canibalizam-se. O ritual perpetua-se com a reverb da viola de arco Velvet Underground em “Your Funeral My Trial”. “Straight to You” é a eterna promessa que acende as velas de luzes redondas que emolduram a boca de cena, convidando ao cabaret voltaire. Cave dedilha o piano da eternidade e segura nos braços “oh, Lord”, “into myy arms” , acrescenta à sua volta um remoinho de predições. O profeta dos antípodas: “This song has everything in it! Your destiny, past, is in these next song! Belive in me!” Tem a camisa negra aberta até ao terceiro botão, exibe um colar de prata e uma cruz baptizada, sobre o peito estreito, do lábio superior pende-lhe o bigode queer, “Albert Goes West” é entrecortada por um sample disco sound, numa anomalia que se repete, bloqueando a pontuação Stax. O fim é a balada da propulsão, a deambulação pela origem do milagre, da ficção à dramatização, o adeus, "nobody` s baby now".

"Dig, Lazarus, Dig!!!” Nick Cave and The Bad Seeds, Coliseu de Lisboa, 21 de Abril.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Caged.Uncaged

A veia é espetada por uma agulha grossa e o sangue é consumido por uma narrativa violenta do Conde Lautréamont: “Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos em que viveu feliz. Está dito!” Na bondade: “Apercebeu-se depois que havia nascido mau”, protegeu-se, “escondeu o seu carácter tanto quanto pôde, durante um número grande de anoss”, é a maturação da voz de Maldoror, a besta que hipnotiza o inconsciente. O “Herói (pt.1)” subjuga-se às leis: “Quando beijava uma criança de rosadas faces teria gostado de lhe arrancar as bochechas à navalhada, e te-lo-ia muitas vezes feito se a justiça, com o seu longo cortejo de castigos, o não tivesse sempre impedido.” Mas, “não era mentiroso, confessava a verdade e dizia-se cruel. Humanos ouvis?? Humanos ouvis?”, Maldoror corta a emissão sonora e anula a harmonia do ecrã, que é uma torre que sustenta o baterista, à sua direita, teclados, do lado oposto as guitarras e o contra-baixo erótico Man Ray. O herói projecta o seu rosto, através de uma micro-camara para esta tela, exibindo a sua macrocefalia e desloca-se lentamente para a direita: “Depois, de repente, no momento em que ela menos espera, enterrar-lhe as unhas compridas no peito mole, de modo a que não morra!”. A crueldade sanguinária é associada a uma vertigem com destino, ao céu escuro, lusco-fusco, negro, vermelhos pintados por Fancis Bacon que conspurcam “Maldoror”. Encenada por António Durães, representada pelos Mão Morta, apoiam a detonação verbal de Adolfo Luxúria Canibal, que acendeu um cigarro que troca com António Rafael, no Cine-Teatro de Estarreja. Maldoror veste um fato de pássaro de palácio transatlântico, os músicos da corte são bonecos de madeira que escavacam os braços nos instrumentos, agridem-nos em cada melodia numa circularidade claustrofóbica, doente. “Entretanto uma mulher nua veio deitar-se a meus pés”, a balbúrdia, que não é anunciada pelos acordes do piano: “fiz um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias”, “´não é de mim que vem esta ordem suprema.` Uma vasta luz cor de sangue, em face da qual me bateram os dentes e os braços me caíram inertes, espalhou-se pelos ares, até ao horizonte.” Dominado pede à Maria Madalena, “e eu para ela, de rosto triste ´podes levantar-te.`” A exaltação petrarquista da beleza dos seus “ombros de mármore” que Maldoror agride com os dedos espetados no cérebro quente, “privar-te do espectáculo do universo, e pôr-te assim na impossibilidade de encontrares o teu caminho, não serei eu a servir-te de guia”, agarra-lhe pelas pernas e gira-a à sua volta como uma “funda” e lança-la contra o muro, a guitarra percorre todo o drama, agudizando o minimalismo, assinalando a reencarnação como ciclo milagroso a obliterar. Maldoror capitaneia um galeão que se afunda “majestosamente”, os náufragos socorrem-se uns dos outros e afogam-se na imensidão de um aquário servido por um garçon tétrico. “Afunda-se lentamente”, e explica a sua condição, “fora-me dado ser testemunha das agonias da morte de alguns dos meus semelhantes. Minuto a minuto, seguira os incidentes das suas angústias.” Na “Cópula” a dinâmica entre os instrumentos e as programações ganham densidade, tubarões rasgam-se mutuamente, com fome, morte alimenta-se da morte. Ah! O Conde narra: “Maldoror batendo as assas com os braços, e retiveram a respiração, numa veneração mútua, ambos desejosos de contemplar, pela primeira vez, o seu retrato vivo.” O herói na “Poesia” é um orador de salas de cabaret, “haverá nos meus cantos uma imponente prova de poder, por desprezar assim as opiniões herdadas”, movimenta os braços a comprometer a multidão com a auto-recreação, e bate num microfone de rádio com uma audiência de inúmeros e profícuos acólitos. As luzes inertes exaltam-se: “porcos quando olham para mim vomitam”, explodem em distorção: “estou sujo os porcos quando olham para mim vomitam!”, esta “Porcaria” que é a mortalidade, “uma víbora malvada devorou-me o pénis e tomou o seu lugar”, ah, “estou sujo! Os porcos quando olham para mim vomitam!”, e a alucinação enuncia-se, a que viria encarnar em Luiz Pacheco. A degradação da humanidade é sublimada num “Sonho”, blues de pendor fílmico de David Lynch, penetrante, angústia, as guitarras a declinarem dissonantemente a subir e a descer as escalas em sentido oposto, complementando-se, “tinha chegado finalmente o dia em que eu era um suíno.”? A besta encontra-se à solta: “Agora não havia mais constrangimentos. Quando queria matar, matava! E isso até me acontecia muitas vezes e ninguém mo impedia. As leis humanas perseguiam-me ainda com a sua vingança, embora eu não atacasse a raça que tinha abandonado com tanta tranquilidade. Mas a minha consciência não me acusava de nada!”. Renasce a síncope em “Escaravelho”, recolector da merda eterna, Maldoror reveste-se de barbatanas de tubarão, e escarafuncha no estrume. A pederastia defende-se: que a idade não diminui a intensidade do sentimento, numa vertente decadente, obliqua, onde o narrador é a personagem e esta todas as que a rodeiam “eu não gosto de mulheres! Nem mesmo dos hermafroditas! Preciso de seres que me sejam semelhantes, em cuja fonte a nobreza humana esteja assinalada em caracteres mais nítidos e inapagáveis.”. “Quem ma quer chupar, para me livrar dela?”, e, “até já assassinei um pedrasta que não se prestava suficientemente à minha paixão: atirei o seu cadáver para um poço abandonado e ninguém tem provas decisivas contra mim!” Maldoror procurava-os “desde a praça Royal até ao boulevard Montmartre”, “é preciso que não tenha mais de quinze anos!”, “sobretudo se és belo”. A narrativa é sumptuosamente negra, como os fatos de cerimónia de Maldoror e do seu séquito, exangues, o seu hálito sopra cadáveres, numa fogueira onde emulam “Maldoror”. “Está dito.”

“Maldoror”, Mão Morta encenação de António Durães. A partir do texto de Isidore Ducasse sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, “Les Chants de Maldoror”. Cine-Teatro de Estarreja 12 de Abril.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Manuelino

As cordas do baixo são esculpidas por João Aguardela, a orientar as velas da Nau que se despede do Portal Sul dos Jerónimos. Na proa está Maria Antónia Mendes, ela possui uma auréola semelhante à esfera armilar, o seu canto desvia as tempestades da viagem e cospe nos Velhos do Restelo: “ensinar-te em meu amor a praticar a caridade, nunca digo saudade, ligo pouco ao que se diz, mas nunca levo a mal a ideia de ser feliz”. Do lado esquerdo do portal estão os quatro grandes Profetas da Igreja, no lado oposto simétrico, os quatro Doutores da Igreja que ladeiam a Nossa Senhora com o Menino Jesus: “uma rima obsessiva, indecente nas suas maneiras, desligado o motor do carro, as criadas tornavam-se indisciplinadas”, o seu canto está pejado de anjos puti a dançar a ritmo do groove, que anula o tenebrismo das cores do fado popular. Durante a viagem para a Índia, as embarcações seguem o canto da Mãe de Deus, que profetisa que “todo o amor do Mundo não foi suficiente”. A guitarra portuguesa: “um dia, um dia tão bonito e eu não fornico!”, as notas das doze cordas são apertadas por Luís Varatojo, “um dia tão bonito…”. A gestualidade da Santa é escassa, o seu rosto imaculado é a certeza de uma beleza exaltante, que vê o futuro caminho para a Índia uma intencionalidade Manuelina. “O ferro de engomar” fora de descanso, “ a velha telefonia mal sintonizada”, é uma marcha sanguinária sobre os que nos afrontaram em Mazagão, as cores saltitam ao iluminar o palco instalado no Teatrão. A primeira data da digressão “Uma Inocente Inclinação para o Mal”, d` A Naifa que rasga o teu “pequeno retrato”, onde se inserem os portugueses. Fomos “o povo de marinheiros”, que um dia vestiu as Naus de cravos benzidas na chegada com as especiarias, tecidos, animais exóticos, proventos do nosso tectónico feito. Abandonam o palco e a cantora questiona-se: “porque tenho eu arranhões se os meus gatos são tão meigos?”, a guitarra portuguesa acompanha-a e insere-se como um eco de uma ambivalência portuguesa. “Quero ser amada só por mim e não por andar enfeitada”, como as senhoritas que dessacralizamos em cada invasão, mães e filhas, avós e netas. Numa desfolhada estética, que imortalizou o panteão do omnipresente, criou uma distante Belém fora da Palestina, o erigir do mito lusitano.

“Uma Inocente Inclinação Para o Mal”, A Naifa, Teatrão (Coimbra/Museu dos Transportes), 3 de Abril

quinta-feira, 3 de abril de 2008

d3ö

Há uma reconversão de matérias que foram cuspidas pelo mar: cartão, pneu, paus, tudo convertido num novo utensílio carregado de uma outra utilidade: a representação de gôndola, canas de pesca, túmulos. É este o feito de Robert Rauschenberg: reequacionar a realidade e transpô-la para uma outra dimensão, um jogo austero, que é o espelho de uma sociedade industrializada que não reciclava os matériais (as peças datam de 1970/76) e acumulava o lixo como se fossem troféus de uma nova época. Rauschenberg questiona a evolução e confronta-a com a sujidade, com a morte presente nos sudários e nos sarcófagos. Arrepia a clarividência e a coragem de converter o perecível em algo eterno e com valor patrimonial.

“Em Viagem 70-76” patente de 26 de Outubro de 2007- 30 de Março.

“Cadeia da Relação”, é afinal uma cadeia sensual e exótica onde as ilhas são órgãos erógenos, pénis cavalgam lábios suculentos, há banhos turcos, toalhas manchadas de sémen, vaginas equiparam-se a vulcões em erupção. Júlio Pomar, reúne obras da década de setenta, quando a idade já lhe estava a secar o desejo e as rugas começavam a cravar o rosto. As telas são dotadas de cores suaves por contra-posição aos motivos representados, este paradoxo dão-lhes um carácter duplo: por um lado o que é imaginado (o acto), por outro o resultado que se assemelha a um paraíso suave e leve.

“Cadeia da Relação” patente de 22 de Fevereiro- 20 de Abril.

Alvess (Manuel Alves, radicado em Paris) é o mestre da ironia, o realista anti-realista, o verdadeiro e o seu oposto, o objecto sempre a questionar o que é a arte e as suas consequências e responsabilidades. Há um frasco com insectos de papel, telas recortadas, desenhos automáticos a tinta da china, um pneu a pisar uma tela branca. As dimensões picturais predominantes são o preto e o branco, como as páginas de um jornal antigo, ou, a forma como os que ignoram a arte vêm o Mundo.

Alvess patente de 22 de Fevereiro- 20 de Abril.

Museu Serralves- Museu de Arte Contemporânea (Porto), 30 de Março.

O Meu País Inventado

Vivencio uma daquelas tardes de Setembro em que o calor é algo ténue e por essa razão efémero. No palco da Praça da Canção em Coimbra a ensa...