segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

One Thousand and One Nights

A cidade de Aveiro para celebrar o São Gonçalinho instalou o palco, que verte luzes azuis, sobre o canal da Ria à frente do qual se encontra atracado um moliceiro. O beat é pesado e tenso e com a conivência rítmica do baixo eléctrico de Jorge Romão oferecem a “Sete Mares” a rumorosidade típica de um sangue em progressiva fermentação. O crescendo do beat propõe a dança a corpos bronzeados numa dançateria com palmeiras e biombos de fancaria, porém a sua frequência ritmica é repetitiva o que provoca nos dançarinos uma perniciosa incapacidade de a transcrever gestualmente. Uma das meninas bamboleia-se como um ciclóstomo a cortar as correntes marítimas que a impedem de chegar à foz de um rio de prata, platina e ouro, e as suas mãos esfregam um copo com veneno e questiona-se: “Haverá alguém mais belo que o Rui Reininho?”; a resposta é-lhe concedida por São Gonçalinho com um hábito medieval a saltitar sobre o palco e a cantar: “Vejo destroços de metal a flutuar”, a guitarra eléctrica de Tóli Cesar Machado alinha numa perspectiva delicada e simultaneamente nervosa, e o som tétrico de “sinos sinetas ao acordar” revela a “ria” a “enferrujar”. A intervenção do teclado incute uma densidade tenebrosa à melodia hipnoticamente pop e os “dedos estalando” é “matéria por soldar”, e o seu corpo de Santo inala “diáfanos por envenenar” , vê a ponte-- que se encontra a vários metros do palco-- e resume: “Vejo este, vejo esta ponte, Aveiro a navegar”. Ao agudizar da melodia sobrepõe-se sub-repticiamente o verso: “aguentam a violência de um beijo mas nunca a do mar”, vêm-se e “voltam-se devagar”, as vogais são rasgadas pela voz crispada de São Gonçalinho um agente provocador que identifica o público à margem da sua performance. A guitarra eléctrica de Tóli Cesar Machado insere através do mecanismo do pedal de Wha Wha uma repetição aguda que perpassa o acelerar da progressão hipnótica e São Gonçalinho retira o capuz do hábito castanho e surge Sua Alteza Real Rui Reininho:“E vêm-se devagar”. “Toda a gente!”. O Coro de Jorge Romão é onomatopaico: “LáLáLáLáBomBom”. Rui Reininho: “LáLáLáBomBom”. Jorge Romão: “LáLáLáBomBom”. As luzes apagam-se e Rui Reininho despe o hábito de São Gonçalinho e enfrenta de frente o charco que tem à sua frente: “Aveiro obrigado!”. A secção rítmica implementa uma métrica Rock and Roll e a guitarra desenha acordes luminosos de provêem de um deserto com esqueletos com os crânios perfurados por shots de Jack Daniels. “Sexta-feira em Albufeira”, “o mundo esteve para acabar”, “era tal a bebedeira”, a melodia rock and pop é adensada por uma fluência inesperadamente grave, e a certeza da lógica enunciativa: “É Domingo na Suíça, Cascais e Funchal”. Para decretar o fim da corrupção em Portugal sublinha: “Chamem a polícia ninguém vai levar a mal”. O recrudescer do ritmo é perpassado por um solo da guitarra eléctrica de Andy Torrence “confissão”, “beija mão”, “Everybody!”. A progressão rítmica é marcada por um complemento rítmico com o solo de Andy Torrence a revelar numa fluente e consequentemente profundeza épica. “Falto eu no beija mão”. “Já não sei em quem votei”. Rui Reininho é assertivo sobre o canal da ria situado na Praça do Peixe: “Fantástico este cenário” e enuncia a antropomorfia: “Crocodilo fêmea com uma vagina”, que vitimaram os maremotos com os seus cânticos encantatórios. O teclado é o centro rítmico e melódico de “Efecticamente” a mimetizar o saltitar de um ser vivo por domesticar, e a guitarra semi-acustica representa um prado decapitado de “jarros perpétuos amores”, o poeta declara-se abertamente aos portugueses “adoro os bichos do mato”, ao pormenorizar uma caracteristica que os identifica como: “cagados de pernas para o ar”, e adora “os panascas que passam”. A melodia é tão pop quanto uma paisagem campestre à beira mar grafitada por Bansky “engatar”, e o verso que é livre de preconceitos e como tal liberta a mente e sossega o corpo: “Efectivamente gosto de aparências sem moralizar”. A alteração na métrica do teclado para um ritmo mais curto, e a cumplicidade dos breaks da bateria, reviram-na para um cenário em que Ícaro voa em direcção ao sol, por fim o riff agudo da guitarra elécrica é minimal sustenido e corresponde ao som das suas asas de metal a derreterem-se à luz dos raios lazer. “Lálá”. “Efectivamente escuto as conversas sem moralizar”, efectivamente Rui Reininho gosta “de aparências sem moralizar”, “everybody!”. “Obrigado! Senhores e senhoras e meninos e meninas”. A questão: “Sabem que a nossa secção rítmica é de Aveiro?”. O convite de um D. Juan: “A próxima música é um slow e podem exibir o seu feeling heterossexual”. Em “Tirana” a melodia é proposta pelo baixo eléctrico de Jorge Romão, a única fonte de delicadeza, a partir do qual se assoma uma harmonia à qual convergem os GNR constituindo uma nuvem que é nevoeiro lacrimogéneo. A promessa: “Tirana é um lugar quem sabe difícil de encontrar”. Rui Reininho eloquentemente: “foi sempre sedutora”, mas cruel “3-2-1 subtrair”, “sem o intuito de acertar”. Os GNR progridem e adensam as cores que formam as paredes de um reino que é “Tirana”, onde a ditadura determina que seja “ sincera mas apenas por um momento”. Rui Reininho lança as amarras em nome de uma lei proibicionista: “Não vais partir” e o ligeiro crescendo do ritmo faz balançar “Tirana”, num baloiço onde se encontra uma adolescente cobiçada pelo olhar de Balthus. Os seus habitantes são “carne para canhão, espírito investir”, o Hammond serve-lhe a esteira onde podem dormir o sono dos mortos. “3-2-1”. Rui Reininho empunha o microfone a Tóli Cesar Machado que responde: “Milhares deles!”. Rui Reininho: “Here we go!”. A componente binária com a profusão constante do baixo eléctrico de Jorge Romão constroem uma melodia neo (funk) pop e o sintetizador a fluir através do fuzz, conferem a “Vídeo Maria” uma estrutura subliminarmente pop: “Shake your ass”. A intervenção da guitarra ritmo de Tóli Cesar Machado incute-lhe uma memória estética com proveniência na década de oitenta do século passado. O poeta decreta: “Península inteira a chorar” que purifica “uma igreja fria”, a pulsão do baixo de Jorge Romão inscreve-a no domínio do épico melódico. Surge um ser ideal para ser amado “como um círio cintilante” que em carne e osso corresponde à Santa Joana que se encontra: “em frente ao altar” com uma silhueta que é como “o esboço de um anjo fumegante”; e os acordes de Tóli Cesar Machado ganham uma preponderância rítmica-melódica e instituem uma tragédia que é concentrada no verso: “Sinto a língua morta o latim vai mudar”. A Santa Joana “estará a meditar?”. “Vídeo Maria” acresce o ritmo e consequentemente os GNR instalam na melodia uma tensão que atinge o tempo produzido pelo cérebro. “Virou”. “AiUi”. A declaração de amor com o intuito de apaziguar a autocombustão que deflagra no seu corpo puro “atirem-me água benta”, em nome de um exorcista “Assalto a caixa de esmolas”.A súplica dita bem alta, “Atirem-me água fria”, atinge a janela do Mosteiro de Jesus de onde espreita tristemente Santa Joana. Dito muito alto: “Atirem-me água fria”. O teclado é impositivo e converge concertadamente com os GNR para adensar o cromatismo pop convertendo “Vídeo Maria” em Rock and Roll. Jorge Romão é o gerador de um solo que é respondido pela bateria, e Tóli Cesar Machado insere o riff de uma fábula em que as crianças aprederam a dançar, “se é sexy ou não depende da vossa fantasia”, com os GNR em contínuo crescendo até ao fim. Rui Reininho olha para o charco que está à sua frente: “Público mais difícil! Nem o Padre António Vieira!”. Um galo cacareja fantasmagoricamente e de imediato sobrepõe-se o timbre de um piano com teclas de marfim. O baixo de Jorge Romão está ominipresente em cada verso de Rui Reininho: “Felizmente a noite sai”, “ainda bem que há névoa por aí”, crescendo de Jorge Romão, e a súplica: “por favor”. O break da bateria de Jorge Oliveira transferem-na para uma entidade que tem o mar como horizonte e onde “as trevas vão demorar”, “rouca voz”, a melodia é de uma espessura incandescente como lava a percorrer na íris de um cego. “Se o amanhã perdido for”, “por favor”, a síntese do modo de vida de um noctívago sem abrigo: “Directa sim eu declaro morte ao sol”. Quando um foco ilumina a consciência lúgubre de Rui Reininho este revela-se através do seu retrato de pirâmide de espelhos: “Aí vem a luz”, irmanada ao solo épico de Andy Torrence. Sobre o público uma perspectiva estética: “Thank you belezas”, e apresenta “Andy Torrence” . E a próxima canção “é misteriosa”. “AAA”. “Reis do Rock” em que Rui Reininho encarna em Rui Reininho. O beat é progressivo e flutuante como um nevoeiro esvoaçante, “cheira-me a fêmeas fatais”, o ritmo é hipnotizante por se instalar em círculos como uma anémona radioactiva ao largo da Ilha de Bikini. Quando o ritmo aumenta confere ao corpo da canção uma incandescente melodia pop kitsh, “Rei do rock dá-me a voz”. O povo à espera de um resgate da poesia, “compõe por nós”, “Rei da rádio que morreu por nós” . A frequência hipnotizante ganha novamente preponderância e confere uma perturbante melancolia às “cidades tão iguais”. O fundo da sua garganta: “Faz das tripas corações”. “Rei da rádio dá-me a voz”, acompanhado por um fraseado pop rematado com a assertividade suprema dos GNR: “hoje somos nós”. Os GNR estabelecem um groove lento como se estivessem a emularem-se mas a guitarra eléctrica revertem-na para a adjectivação Rock and Roll. Quando emerge o groove transpõem-na para o domínio do progressivo psicadélico. A penúltima declaração de amor: “AAA Aveiro podiamos ser paneleiros mas não. Nós somos Rock and Rolleiros”. Os teclados instauram um mantra dark com lampejos de luminosidade pop, os raios de luz derivam do verso sentido que estoura no peito de Rui Reininho: “Quando o sol se põe a seus pés”. Quando o ritmo intercede na narrativa é para se assumir como cúmplice da vertente pop alocando-se à perspectiva sobre um cliché beatleano. A bruxa má “nas mãos uns dentes de alho”, e a boa “és única a dar gás”. Tóli Cesar Machado retira do teclado um solo com epicentro na Bossa Nova, “Rainha das marés sei quem és”; e por sua vez Andy Torrence, através de solos agudos mimimais com textura rock, fornece uma luminosidade dramática à canção “UUU” quebrando-lhe os agrilhões que a prendiam ao quarteto de Liverpool. A última declaração de amor: “Os mísseis estão apontando para Aveiro”, e assevera que “O São Gonçalinho está rouco” como se este fosse um alter-ego de ocasião. “Las Vagas” é estruturada a partir de um ritmo electro analógico contínuo mas circular, “de ouro a mina”, e um anúncio fortuito à população: “somos todos de quem gostas”. Quando o ritmo e a altura aceleram inserem em “Las Vagas” uma relação promíscua entre a pop e o Rock and Roll e surge “a cabra cega”, “fui andar de voga não havia vaga”. Rui Reininho dança como “O Príncipe” de Maquiavel a evaporar-se da lâmpada do Aladino, e o solo de Andy Torrence promovem-na para a ilusão fomentada pelo rock psicadélico. O Príncipe dança, solo, “eu serei a gorda tu serás magra”. O jogo de cintura: “tirar à sorte”. O rebelde sem uma causa senão a de cantar: “Eu sou um peixe fora de água” . O break da bateria transferem-na para uma linguagem Rock na Roll e este ajustamento é correspondido pelos GNR directamente para um estádio de futebol. A confissão de Rui Reininho: “Trinta e tal anos da banda mais genial de Portugal! GNR!”, e ri timidamente para o microfone. A guitarra eléctrica de Andy Torrence gradualmente em crescendo faz reverberar as cores suaves mas tropicais de um universo edílico. Quando o baixo de Jorge Romão marca o compasso dá-se uma serena combustão numa “banheira decorada”. A voz de Rui Reininho é tragicómica numa novela abstracta: “Senti as nossas vidas separadas”. Sobre a sua musa: “Ana Lee”, “Ana Lee ópio do povo”, ela é um “Tigre de papel” a conduzir um “Lotus azul”, rainha de copas, “triângulo dourado”. O break retira-a da melodia exótica pop para uma conversão rock: “E ao vir-me, enfim em verde tónico, no país onde fumam as cigarras”. A certeza poética de que “Ana Lee” está deitada numa cama opulenta a “sonhar por mim”. A guitarra sobrepõe-se e ecoa na Ilha dos Amores, redescoberta por Costeau, e que tem um“poente queimado” onde nada uma sereia que revela a sua ferocidade através das “unhas que cravam em mim”. Grita: “AUU”. “Eu sei que metade de Ílhavo simpatiza comigo. Este pessoal de Aveiro!...”. O baixo eléctrico de Jorge Romão domina o início de “Asas”, o compasso da bateria é lento, e a guitarra insere acordes como se fossem pontos visíveis no escuro. “Sonhar”. “Espreitar”. “Mil casas no ar”. A corrente rítmica cresce serenamente para culminar melodicamente numa apropriação do espectro da bossa nova: “Mas só quando quiseres pousar na paixão que te roer”. “Já não há leis para te prender aconteça o que acontecer”. Colocam um microfone no palco e Rui Reininho questiona o roadie: “Que é que estás a fazer?”. O teclado assume-se como o ponto emissor de uma canção outonal que por vezes é dominada por tempestades. O microfone destinava-se a Isabel Silvestre, que através do seu timbre de cristal transporta os cagaréus para um universo rural, onde os “tontos chamam-lhe torpe”. A esperança vã: “Hemisfério traga outro forte”. Rui Reininho declara independência ao medo: “Por nem querer nem bairro ou corte”. Isabel Silvestre: “Corre o rio para o mar”. O acordeão de Tóli Cesar Machado injecta-lhe a substância necessária para catalogar “Pronúncia do Norte” de épica. A voz da cantora minhota ganha uma fluência de soprano que comanda as almas para a utopia proposta pelas Belas Artes. Rui Reininho: “Secaram”. Quando as duas vozes cantam há uma união de sentir profético: “É a pronúncia do norte”. A voz de Isabel Silvestre assume o papel de campo de fuga para com a ansiedade que mata lentamente o povo português através da saudade: “E as teias que vibram nas janelas esperam por um gajo parecido com elas”. Rui Reininho e Isabel Silvestre ecoam numa igreja neo-gótica com uma profusão de janelas com vitrais com a inscrição: “Pronúncia do norte”. Rui Reininho: “Corre o rio para o mar” que simbolicamente representa o passar do tempo psicológico. A esperança da diva do rio Douro: “Não tenho barqueiro nem hei-de remar”. Os cantores dramatizam o timbre em dois níveis: o seco e o cruel de Rui Reininho, e o encantatório da diva: “ Mar”. A melodia é o centro de uma queimada que incendeia o cérebro através do fervor da alma: “Não tenho barqueiro nem hei-de remar”. “Obrigado Pessoal! Isto é melhor que Justin Bieber ou Lady Gaga?”. O ritmo é duplo e crescente e as harmonias quentes e tépidas. “Yeah”. Rui Reininho encontra-se numa casa de fados no Bairro Alto com a presença do barbeiro António Variações : “Quando um barco tem pés para andar”, a melodia é um efervescente pop, “e quando a maré negra chegar e não houver ninguém para a crude limpar”. A melodia transforma-se num remoinho que nos banha com água salgada, “sereias sensuais”, a métrica da lírica é pontual com o aumento do ritmo: “Se ainda se ama o mar salgado então é ver no cinema se ´Há lodo no Cais`”. O fadista à desgarrada: “Bai Abeiro não tenho bergonha nem caralho!”. Palmas. Rui Reininho recompõe o seu canto a um fado pop, “imundo imenso sais”; e o poente é um sol radiante que é um déjà vu: “voltas ao cais”. E alerta “às raparigas de Aveiro” , que estão estáticas como estatuetas de sal ,que está disposto a roubá-las aos pais: “Ai carago!”. O domínio estético de “Popless” reside num crescente groove e a intervenção da bateria introduz-lhe um carácter orgânico colocando-a numa frequência soul pop kitsch. O poeta vê a sua ninfa a emergir da Ria de Aveiro que reflecte “a imagem dela sem reflectir”; surge na cama de dossel “é ela a dormir”, mas ao abandono ela não ficará: “deixa-la”. O seu peito ganha uma textura insuflada, “cresce”, Rui Reininho não esquece quem se encontra à varanda especialmente as mulheres de romances de cordel :“sabendo que é bela à janela”. “AAAA”. “POPLESS”. “POPless” o groove ganha uma circularidade hipnótica confiscada pela guitarra solo semi distorcida de Andy Torrence e com um remate com a evocação pontual aos Depeche Mode. A marcação do ritmo é espaçada e proporcionada pelo bombo “atenção!”. “Mal de vivre mal le faire”. “Toda a gente a cantar ´Dunas`”, dos acordes que emergem sub-repticiamente irradiam uma luz em que os corpos na praia se expõem aos raios ultravioleta concentrados no respirar do acordeão de Toli Cesar Machado. “Patchiuari”. Aponta o microfone para o público e este responde: “Patchiuari”. Rui Reininho incentiva-os atráves da imaginação: “Faz de conta que estamos no Estádio da Luz”, ouvem-se assobios de bocas incapazes de usar o pensamento formal. “Patichiuari”. “Benção! Esta música é ´Sangue Oculto`. De puta madre!”. A bateria é o ponto concêntrico a partir da qual os GNR se assumem como uma chama acesa pelo Rock and Roll e o solo contínuo e agudo de Andy Torrence conclui a equação epicamente. “Ardem chamas de dois sóis”. O recrudescer do ritmo importam-na para um domínio em que predomina uma lasciva sedução, “uma barragem uma fronteira”. “Ao fugir da própria vida sem correr e sem saltar”. O poeta sacrifica-se pelos portugueses: “Oculto sangue que tenho para dar”. “Flores num funeral”. “Sangue que tenho para dar”. “Olé!”. A celebração rock da sobreposição da guitarra eléctrica sobre o ritmo bateria são centros narrativos de uma canção destinada a dominar a Ibéria. Pausa. “Ao fugir da pópria vida sem correr e sem saltar oculto sangue que tenho para dar”. “+ Vale Nunca” predomina o dedilhar infantil da guitarra semi acústica de Tóli Cesar Machado com a resposta da guitarra de Andy Torrence e o pulsar de Jorge Romão, ligam-na à terra; e o órgão é a sua soul, o dois por dois tempera-a com um compasso profundamente pop. “Há um bicho novo para limpar”. Rui Reininho abandona o palco e passa sobre uma boia rectangular e clama: “Estou a molhar-me!”. Toma de assalto o moliceiro de onde canta: “Mais vale nada, nunca mais crescer”. “Ei!”. O agudizar da melodia é uma tragédia que escurece a alegria dos acordes e o testamento é assinado pelo solo de Jorge Romão mas paradoxalmente o pulsar da bateria ilumina as luzes do palco. Pausa. Rui Reininho canta como se fosse um golfinho suicida: “nada apetecer”, que se recusa a intoxicar-se sempre que vem à superfície para respirar.



GNR 11 de Janeiro, Festas de São Gonçalinho @ Aveiro



Dedicado a Elizabeth Dunn.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Bipolaridade

A guitarra introduz acordes agudos mas predominantemente sub-reptícios e a bateria expele uma tonalidade serpenteante, “com licença” é a voz do actor-narrador que está a passar por entre o público que se encontra em pé no Salão Brazil situado na baixa de Coimbra a capital do Rock and Roll. “Boa noite nós somos os TRACTOR”, “agradecer o convite por estar aqui aos Subway Riders”, “na verdade nós não sabemos o que vamos fazer aqui, talvez teatro do absurdo com rock progressivo”. A peça que o trio liderado pela bateria de Kalo leva à cena é um excerto de “A Varanda” (1956) de Jean Genet, onde as personagens “satisfazem os seus desejos sexuais” e que por sua vez reportam para “as figuras da nossa sociedade”. O bombo ensimesma-se provocantemente e a guitarra ecoa epicamente, e o espaço onde decorre a acção “tem as paredes pretas” sobre a qual se reflectem as personagens: surge a silhueta de “uma mulher” que “tem as mamas à mostra”, e há um “Carrasco ” e um “Juiz” que tem “debaixo das suas vestes tem umas andas”. A relação entre bateria e a guitarra é composta por camadas que alternam pontualmente no tempo, uma composição com as veias a circular o jazz e o coração como núcleo rock em progressão Frippiana. O Carrasco “de bruços vai rastejar até à mulher” e “ela diz”: “lambe, lambe primeiro o Juiz”. Perante esta afronta o Juiz intervém: “Então você não é uma ladra?”. “Os meus capangas viram todos os seus movimentos”. O Juiz aponta sobre a mulher em topless: “O que tem a declarar?”. “O Carrasco passa-lhe a mão debaixo da saia” e apalpa-lhe os lábios vaginais. “É um idiota!”. “Perfumes”. A guitarra é insidiosa e indecorosamente subtil como um fio de nylon sobre os pulsos de uma sereia envenenada pela poluição das centrais nucleares. O Carrasco entrega ao Juiz o objecto que constitui a prova da marginalidade da mulher: “Sr. Juiz é uma echarpe”. O Juiz associa o objecto a dois crimes: “Você é uma ladra ou uma estranguladora?”. A voz aguda da mulher: “Sr. Juiz vou ser espancada?”. Resposta: “Até ao poder das lágrimas”. “Você já não é nova”. E o Juiz denomina-se um “Juiz modelo, está claro?”. Voz de mulher indefesa e submissa: “Sim senhor Juiz”. Pausa. “Que barulho foi aquele? As portas estão bem fechadas lá em baixo? “. Carrasco: “Posso garantir”. A voz deste último é samplada e maximizada como um eco de uma gruta repleta de vampiros a sangrar dos caninos e a pingar sobre as pedras da calçada portuguesa com o rosto de António Oliveira Salazar. A voz do mal: “Tenho o bem e o mal”. O Juiz: “Você aceita ser amada?”. Ela submissa como uma cadela “estou a um hiato de vós”. A progressão é de uma densidade em que o timbre reflecte o preto das paredes, “e você está”, ela: “AHAHH”. Juiz: “Cale-se!”. “Profundezas do Inferno”, o break de Kalo induz à repetição da voz diabólica através da qual o homem se transforma num ser antropomórfico. “O bem é proveniente do mal”, “querida serei criminoso? Querida meu amor?”. “O que estas a dizer?”. “Não me deixes nesta posição”. A progressão é dominada pela guitarra aguda que expande uma luz escura e o “Juiz deita-se de bruços e rasteja até à ladra” e a intervenção do break subtil mas agressivo de Kalo conquista o Rock and Roll. O Juiz: “Peço-lhe: estou pronto para a lamber”. “Seus pés”, “ladra”, “ladra”.
Subway Riders iniciam o espectáculo através de uma revisitação minimal do ritmo minimal dark rock dos Velvet Underground quando estes se faziam acompanhar da misteriosa Nico, os saxofones em paralelo são a sombra sobre a melodia tétrica gravada em “Stereo” dito bem alto por Carlos Subway o estratega de um campo de batalha em constante canibalização, “mono”, a fluência rítmica coabita com os saxofones como se fossem gémeos siameses unidos pela heroína que lhes corre pelas veias. A segunda canção tem um falso início “a coisa não entra” e por fim Victor Subway introduz através da guitarra eléctrica os acordes de um hino dos The Rolling Stones. O Chau Subway percorre-a com um ritmo seco e retira-lhe o grau de urgência da insatisfação que alimenta o corpo de um adolescente. Carlos Subway grita: “I Can`t get no Satisfaction”, a bateria repele uma violência inesperada, “I Can`t get No”, “Nono”, “I can´t get no” o teclado electrónico é o fantasma de uma adolescente a masturbar-se pela primeira vez através da Internet e as maracas introduzem uma adejectivação caliente. “I can`t get no”, “NoNo”. “And I try, and I try”, a progressão rítmica que encetam é uma memória distante do original, “I Can`t get No”.“Vamos cantar uma música sobre uma mosca muito alucinada”. Victor Subway retira da sua guitarra eléctrica um punhado de acordes western billy, “Lálálá”, que dominam a terceira canção continuamente, e a voz está alta: “Sky”, e o bombo reproduz um ritmo infantil de uma criança descalça e com um ventre proeminente. A voz de Carlos Subway é grave e sustenida “I`m flying in the sky”, e os saxofones em surdina mimetizam o som das asas de um casal de moscardos à procura de uma poia reluzente com arqueológos asquerosos: “In the sky”. “Agora vamos chamar um dos nossos convidados. O Toni Fortuna, onde estás? Vai-nos ajudar a dar um impulso à amizade ibérica”. “Oh Toni!”. Os Subway Riders absurdamente desenham um pasodoble e o rufar do tambor propícia a dança flamenca de Calhau Subway que rodopia juntamente com Carlos Subway, e as guitarras rasgam a pele da pélvis de Joaquín Cortés, e o ritmo do sapateado dos bailarinos é repetido pela multidão “Ó Toni”. “Olé!”. Aos dois bailarinos associa-se um espontâneo e com o apoio de Carlos Subway transportam em ombros Calhau Subway para fora da praça de touros. Que retrata a “amizade entre Portugal e Espanha sempre em grande”. Para a quarta canção é imperativo que “o grande Toni” fique “mais um bocadinho”. “Vamos pedir silêncio”. “Eu e o Calhau” vamos “cantar uma música de piano”, “este é o novo single do segundo álbum” que à semelhança do primeiro ainda não foi editado. Do teclado é emitida uma nota acompanhada pela voz cacofónica- romântica de Carlos Subway: “Popopop”. O Calhau Subway é mais incisivo nas vogais e canta: “Pópópóp” dramatizando a lírica romântica com complexos edipianos. E a relação que se estabelece entre as vozes e o teclado minimal convergem numa emotiva enunciação da música contemporânea para uma obra do João Cesar Monteiro. O fado é apenas concretizado com o absurdo do verso “pega na lancheira e vai dar o almoço ao pai” declamado violentamente por um ardina alcoolizado. “Agora uma música com amor, somos muito dedicados ao amor. Não há aqui isqueiros? Mas podem por as mãos no ar”. A batida é um beat longo que ensombra o teclado que ilustra o cor-de-rosa como lampejos de pétalas com perfume patcholi, numa casa portuguesa com certeza com mulheres de bata com pernas por depilar. Apesar do seu forte pendor kitsch dominar a melodia os Subway Riders subvertessem-na para um blues apropriado para urbes desertas. “Baby” das colunas sai uma frequência radiofónica a circunscrever a canção para uma emissão em directo para a televisão. A dor de novela: “Oh oh oh baby I love you so”. As guitarras teletransportam os estudantes para papéis subservientes “I love you so”, coro: “I love you so”. Carlos Subway em discuro directo: “Façam o amor!”. “Para não pensarem que só tocamos originais, vamos tocar uma versão ´Riders on the Storm`” e para o original dos The Doors “vamos chamar o Padilha”. A canção dos Doors é executada do princípio para o fim relegando- lhe uma violenta decomposição que transmite a abstracção do sonho americano. “Riders on the Storm”. Para o nono tema os Subway Riders socorrem-se de Sérgio Cardoso no berimbau e as tonalidades que emitem são sombrias, a dupla dos metais conferem-lhe um contínuo e progressivo aprofundar da perspectiva sobre uma paisagem conspurcada com canábis a crescer a céu aberto e quando eclode a subtil cacofonia é uma fumaça diáfana. A guitarra eléctrica de Victor Subway numa frequência reggae billy colocam-na num a frequência estranha que se impõe como um objecto não identificado. “Ganja in Jamaica”, os metais produzem um fluxo contínuo sobre o qual Sérgio Cardoso sola, e a bateria impõe a que seja inscrita no domínio do épico. “E agora vamos chamar o Rodrigo para o blues” o tocador de theremin de “ nome artístico El Rodrigo”. A décima canção é dominada pelo solo fraseado de Carlos Subway e é a partir deste centro que os restantes instrumentos divergem ritmicamente e consequentemente melodicamente. Palmas. “Obrigado! Vamos ver se tocamos mais uma música”. “El Rodrigo é a primeira vez que pisa um palco”. “Chama-se ´What time is It?`agora tocamos uma versão arty. É a música mais rápida que alguma vez compusemos”. A voz grave de Carlos Subway: “O ink está rabinho”. A vertente rápida instituída pela bateria repercute-se nos outros instrumentistas convergindo para uma contínua dissonância: “What time is it?”. “What time is it?”. O distúrbio sonoro elucida um tempo psicológico desenquadrado da realidade e o emergir dos saxofones são suspiros efémeros de esperança associado ao recrudescer da bateria. “Achtung”. “What time is it?”. “Por favor, me puedes decir la hora?”. A dissonância por vezes lampeja quando revela a cacofonia “please tell me what time is it?”. Na décima segunda canção as colunas emitem uma banda sonora de um filme western spaghetti e a guitarra de Victor Subway está engatilhada num fraseado rock and billy; e é a partir destes eixos que a bateria progride marcando o compasso de uma perseguição entre os saxofones dissonantes. A guitarra eléctrica de Victor Subway agudiza a sua perspectiva tédio billy, conduzindo os Subway Riders a mergulhar numa massa que se converte em Wall of Sound e é o theremin que gradualmente se emancipa da erosão que pretende manter cativa a melodia tétrica. O recrudescer do ritmo promove uma síntese e concertação melódica com contornos épicos. “Bruno Simões no theremin”. “E temos mais uma estrela convidada que é a Paula”. “A Paula que é do Brasil”. “Esta música é uma Afro beat normalmente tem uma hora mas vamos tocar” uma versão reduzida. O sintetizador de Augusto Subway é lúgubre mas a sincope/sampler do beat afro encobre-o e a guitarra de Victor Subway desfere um fraseado rápido e agudo que mimetiza a melodia alegremente. “África”, “África” e os saxofones reviram-na para uma subtileza inesperada. Carlos Subway grita: “África”. Quando o sampler e o teclado desaparecem é a guitarra que se assume como o elemento predominante e as baterias de Paula e de Chau Subway diluem-na numa África com crianças a batucar em pratos depois de terem inalado cola. “África”. “África”. “África”. “Vamos tocar uma música que é uma homenagem ao James Brown” a melodia versa a soul da Motown mas o que lhe aplicam é uma contínua decomposição que a transforma numa obra estranha. Carlos Subway grita: “James Brown”. “James Brown”. Sobre a subtil e serena decapitação da soul surge a voz “James Brown”. E Carlos Subway num assomo encarna “James Brown “ enquanto atira o casaco contra a parede preta que se encontra atrás dos Subway Riders. “James Brown”. “Vamos tocar a última”. O beat é longo com a guitarra a versar sobre Madchester, o aumento gradual do ritmo e da altura associam-se paradoxalmente a uma missa em nome de Ian Curtis.

Subway Riders e os convidados especiais TRACTOR, 04 de Janeio, Salão Brazil @ Coimbra

Para a musa Tracy Vandal