segunda-feira, 23 de junho de 2014

Vandaluzia


À frente do edifício da Câmara Municipal do Porto está instalado um palco com dois ecrãs a ladeá-lo. A voz que anima e atraí a multidão sublinha: “É o primeiro concerto dos GNR em quinze anos”; suponho que ao ar livre? “Por isso quero um aplauso à Porto!”. O público aplaude e desperta as gaivotas que cruzam a noite iluminada pelos focos da Avenida dos Aliados. “Daqui à pouco, vamos mostrar imagens do backstage.”. A promessa demora em ser concretizada, por fim, surgem Rui Reininho, Tóli Cesar Machado, Jorge Romão, e Rui Moreira o mayor da cidade invicta. O público aplaude. A primeira canção, “Quando o Telefone Pecca”, tem como princípio o piano e a sua ondulação é constante e invariável, a claridade fusca Pop é imposta pelo baixo eléctrico de Jorge Romão e a bateria de Jorge Oliveira. A estes alia-se a guitarra elétrica de Tóli Cesar Machado que simultaneamente confere à melodia uma acentuação mais luminosa. A voz de Rui Reininho revela-se jovial: “A tua violenta, violenta”, mas os GNR inscrevem reiteradamente uma negritude compulsiva. Rui Reininho está fixo na boca de cena do palco e canta: “Máquina que fala”, e discursa para o microfone: “A tua traiçoeira e pura”. O ditado de Rui Reininho foi escrito numa máquina “que fala”. Jorge Romão: “LALALALA”. A Pop é progressivamente corrompida e a sua transcrição é para uma rugosidade rock. Rui Reininho mantém o timbre de um narrador, que conhece as máscaras usadas pelas pessoas para comunicarem entre si, e que trocam “um beijo imaginário”. A componente rock é vilipendiada através de um timbre em que se inscrevem tonalidades ásperas e negras. “Se o medo estala”. Jorge Romão: “LALALALA”. Rui Reininho: “Quando o telefone peca”. Pausa. E a sequência final é um bloco rítmico e melódico que em segundos atinge o clímax. Rui Reininho dirige-se aos portuenses: “Bom dia Portugal!”. O universo sonoro da segunda canção, “Sexta-feira (um seu criado)”, tem uma melodia inscrita no rock popular e esta conjugação impregna-a de uma violência kitsch; e as responsáveis são as guitarras de Tóli Cesar Machado e de Andy Torrence cúmplices na textura cromática. Rui Reininho saltita de nota em nota e quando se encaixa na frase melódica surge o boémio: “Que saudades lá da feira”. Ao convergirem as guitarras a associação resulta na aproximação para um espectro maioritariamente rock. Rui Reininho é o mestre-de-cerimónias ao determinar que: “É Domingo na Ribeira em Cascais e no Funchal”. “Falta a tua confissão”. As guitarras dominam. “Já não sei de quem gostei”. O solo semi-distorcido de Andy Torrence confisca-lhe definitivamente a vertente country/kitsch e remete-a para uma onda rock. “Nem para o Dj”. Os ecrãs transmitem imagens de um documentário em que se vêm imagens da maior banda do país. O terceiro tema, “Efectivamente”, é o despoletar de uma Pop incontornável, alicerçada numa métrica liturgicamente festiva, “na esplanada de um bar”; “pássaros estúpidos a esvoaçar”. Quando aumentam o ritmo a canção é perfurada por raios de luz que descobrem: “Efectivamente içi é diferente”. Coro: “IEIEIE”. Rui Reininho observa a multidão e fecha os olhos e vê: “Finjo sem reparar na atitude tão clara e tão óbvia de quem anda a engatar”. “Efectivamente gosto desta gente”. O público responde-lhe com palmas festivas, porque reconhecem no Grupo Novo Rock a bandeira Pop portuguesa com origem no Porto. A bateria instaura um ritmo expressivamente alegre, e os acordes da guitarra semi acústica de Tóli Cesar Machado introduz uma delicadeza naturalista. O público acompanha com palmas e Rui Reininho canta alegremente ao saudar a chegada da Primavera: “Efectivamente gosto de aparências, efectivamente sem moralizar”. Palmas. “Obrigado senhores e senhoras, meninos e meninas”. A tepidez rítmica da quarta canção, “Tirana”, é iluminada por um pôr de sol providenciado pelo jogo melódico das guitarras, que se complementam delicadamente. “Tirana é um lugar quem sabe difícil de encontrar”. As ondas sonoras que irradiam os GNR correspondem a uma Pop em que a melodia é flutuante de tão absorventemente bela. “Tirana é uma menina, foi muito sedutora”. A pop é contaminada pela bossa nova, e o que floresce é uma lava viril que consome a terra e a transforma em pedra. A voz de Rui Reininho corresponde a um apelo de tágide do rio Douro: “Atirar à sorte sem o intuito de acertar”. A sedução da melodia, contrasta com a crueldade da figura, que é caracterizada psicologicamente por Rui Reininho: “Tirana é sincera mas só por um momento”. Na sua índole está a destruição de quem a circunda: “2-3-6”; “3-2-6”, “aprender a dividir para poder reinar”. Sobressai um solo agudo mas sustenido da guitarra eléctrica de Andy Torrence, com o devido sombreado do baixo de Jorge Romão. “2-3-6”; “para poder reinar”. Rui Reininho dança por entre as chamas semeadas num país onde reina a pobreza, o desemprego e a fome. O tónico slow tropical pop é acrescido por um contínuo e acutilante solo de Andy Torrence. Palmas. “Obrigado, capital mundial do futebol”. Nos ecrãs surgem imagens dos GNR a narrar momentos específicos da sua carreira, como por exemplo, terem sido a primeira banda pop a pisar o palco do Coliseu dos Recreios. A bateria insere um ritmo binário, o público bate palmas e acompanha a pontuação proporcionada por Jorge Oliveira, sustentado pelo sintetizador que expurga um arfar espaçado que caracteriza a quinta canção, “Vídeo Maria”. Jorge Romão insere através do baixo eléctrico os acordes da canção, proporcionando-lhe um tónico dançante. Rui Reininho situa-se geograficamente num culto animista: “Tarde de chuva a Península inteira a chorar”. A semente irrompe da terra feita caule, e sem que lhe sopre a brisa sobre as folhas minúsculas, dança acompanhada por “um anjo fumegante”. Jorge Romão emancipa-se como se fosse o único elemento aglutinador de uma substância sonora tão bela quanto inalcançável. Se Rui Reininho é um ditador, que tem o peito repleto de aves migratórias que anunciam que “o latim vai mudar”, não é mera ficção. “O que ela faz aqui fumando? Estará a meditar?”. Há um aumento do ritmo que perspectiva um falso climax: “AiUi”. “AiUi”. “Atirem-me água bem fria”. “Por ela assalto a caixa de esmolas”. A guitarra de Andy Torrence responde-lhe com um solo que ecoa, e encontra na de Tóli Cesar Machado uma tímida cumplicidade. “Atirem-me água fria”. “Casta eu sei, virgem ou não? Depende da mente dela”. Palmas. “Estou muito feliz, não jogava assim, desde a época passada”. A sexta canção, “Morte ao Sol”, tem como principio um fraseado de piano, que serpenteia sobre a areia escaldante e se encaminha para um púlpito empalhado. “Felizmente a noite sai”. A guitarra introduz, alguns discretos mas luminosos acordes, que trespassam a sombria expressão da melodia que é uma ode às trevas que alimentam a alma. “Se a luz se esvai”. O dramatismo é crescente e emoldura a imagem do holocausto: “Se o amanhã perdido for?”. “Metamorfoses de horror”. A intromissão da bateria de Jorge Oliveira contribui para que as tonalidades da canção ganhem uma melancólica alegria. “Se o amanhã perdido for baby”; “baby”. E o narrador é determinista: “Sim, eu declaro morte ao sol”. A guitarra eléctrica de Andy Torrence, confere à estrofe: “lá vem a luz”; através de um solo épico a presença de um jacto contido de tão dilacerante. “Esta imagem atroz”. Rui Reininho: “Vai até lá abaixo!”; convida a multidão que mina o declive da Avenida dos Aliados a entoar: “OOOOO”. Rui Reininho declara-se aos portuenses: “Ich liebe dich”. A sétima canção, “Sub 16”, é a reinvenção da Pop, destinada a adolescentes que estão destituídos da razão. “E que causa inveja”; a voz de Rui Reininho pertence a um narrador, que observa um grupo de indivíduos emergidos num tédio dilacerante: “Vida tão chata”; “Moda tão fora sai”. A pausa, apenas permite ao ouvinte uns segundos de silêncio, apagam-se as luzes do palco. “Djs”. “96”. A Pop ganha contornos de matéria épica, pois o sintetizador é o elemento preponderante que instaura na canção a sua verve requintada da década de oitenta. “Nuvem”; “em pó”; “e o rádio berra: ´estou farto e farto de estar só`”. A métrica é mais curta e contida com o leve polvilhar de um forte e persistente colorido Pop: “Aos 16 é um desgosto pagar pelos Djs”. A guitarra eléctrica de Andy Torrence contorna a canção através de um solo que prenúncia o princípio do fim: “Sweet Little Sixteen”. Coro: “Parapara”. “O ´Senhor dos Anéis`”. Vídeo com Rui Reininho a declarar que a igreja católica teve uma política inquisitória para com “Vídeo Maria”. A oitava canção, “Las Vagas”, tem como princípio a programação de Miguel Amorim. Rui Reininho declara: “Cidade maravilhosa”. A guitarra eléctrica de Andy Torrence sobrepõe-se à vertente analógica e introduz o rock, “macro onda”, e a de Tóli Cesar Machado relega-a para um maneirismo anos oitenta. A estrutura da canção é substancialmente alegre, porém a conjugação do baixo inscreve-a numa densidade cromática negra: “Roleta russa aceita apostas”. As guitarras ganham preponderância virando da pop analógica, “gostas”, “gostas”, para o rock analógico com a devida conivência da bateria. “Eu serei a gorda”. O afunilar da perspectiva entre os instrumentos promove um efeito de urgência inapelável, “Sou um peixe fora de àgua”; e a guitarra sola agudamente. Palmas. “GNR os primeiros trinta e três anos. Obrigado!”. A nona canção, “Ana Lee”, é marcada por uma tonalidade tropical kitsch. A guitarra eléctrica de Andy Torrence é progressivamente o guia, ampliando seu efeito terapêutico porque irradia uma beleza indescritível. “Senti as nossas vidas separadas”. “Aquário de ostras crus”. O público entoa: “Ana Lee”, “Ana Lee”. Rui Reininho: “Ana Lee”; “Ana Lee”; “Lotus azul nada de novo”. A intromissão da bateria de Jorge Oliveira convoca uma súbita e inesperada alegria, e os GNR crescem em potência estilística como se por instantes o sol roda-se em redor de um girassol. “Trono de jasmim”, a melodia provém de um universo em que a fábula é apresentada num território idílico, “no país onde fumam as cigarras”; “ópio do povo”. O público apela por: “Ana Lee”, “Ana Lee”; e Rui Reininho descreve-a através de uma abstração: “Poente queimado”; o teclado confere-lhe um serpentear hipnotizante a partir do qual Andy Torrence efectua um solo luminoso despertando os presentes para a eventualidade de estarem hipnotizados. “Ana Lee ópio do povo, tigre de papel”. E a sugestão de um paisagem erótica: “Triângulo dourado”. Rui Reininho cruza os braços sobre o peito e crava as unhas das mãos nas costas: “Que cravam na pele em mim”. Rui Reininho olha directamente o público e discursa: “Sabem que nós dávamos a vida por vós, por alguns de vós. Em especial os que não têm voz, deveria ser assim em Portugal”. Ovação. A décima canção, “Asas Eléctricas”, tem um meio tempo contínuo, e os elementos difusores da melodia Pop é o teclado e o baixo elétrico de Jorge Romão. “Olhar-te, sacrificar-te no alto do ar”. Há uma intenção solene por parte do narrador de inspirar a emancipação da consciência, retirando-a da sua menoridade que transforma as pessoas em belos rebanhos de ovelhas em fila para a tosquia: “Asas são para combater”. O ritmo encurta a sua frequência, e o que antes era um sonho Pop onde imperava uma ingenuidade pueril, passa para um recorte em que há uma angústia proporcionada pelo aceder da consciência aos sentimentos: “Na paixão que te roer”. “Sem prazo ou idade de acabar”. Os ecrãs transmitem imagens dos GNR, no seu contínuo períplo por Portugal e pela Galiza. A décima primeira canção, “Pronuncia do Norte”, é iniciada pelo piano do qual emana uma melodia triste de tão melancólica, onde as aventuras e as desventuras não são meras abstrações. “Lá do fundo donde eu venho”. Surge Isabel Silvestre e coloca-se ao lado de Rui Reininho, e este através de um soturno falseto canta: “Novos ricos são má sorte”. Público e Rui Reininho cantam: “É a pronúncia no Norte os tontos chamam-lhe torpe”. Rui Reininho abraça Isabel Silvestre. “Hemisfério traga outro forte”. “E o dia não estejas triste, a bussola eu sei que existe, aponta sempre para Norte”. O piano emoldura a poesia, tornando-a numa onda que se desfaz contra um rochedo, e ao qual baptizaram de Portugal. “Corre o rio para o mar”. O acordeão de Tóli Cesar Machado ganha folego, seguido pela bateria, guitarra, baixo e piano, que constroem os alicerces da exortação de um hino. Isabel Silvestre: “Não tenho barqueiro ou hei-de remar, procuro caminhos novos para andar”. Rui Reininho e Isabel Silvestre: “Da geada às perolas, as fontes secaram”; “Corre o rio para o mar e há um prenuncio de morte”. O piano reintroduz a memória triste que revela a canção, mas o andamento dos GNR é mais acelerado tonificando-a com uma volumetria dramática. “Procuro caminhos novos para andar”. Rui Reininho: “É a pronuncia do Norte, corre o rio para o mar”. Rui Reininho declara em nome da maternidade: “Vivam todas as mães em todo o Mundo”; e ergue o braço direito de Isabel Silvestre, o público bate palmas, prisioneiros de um êxtase indomável. E o piano e o acordeão irmanados conferem um crescendo à canção, que é perseguido pelos GNR. Rui Reininho e Isabel Silvestre: “Parecido com elas”. Rui Reininho aponta o microfone para o público e Isabel Silvestre responde-lhe: “È a pronúncia do Norte, corre o rio para o mar”. Rui Reininho segura na mão direita de Isabel Silvestre e coloca-lhe a mão direita no cimo da anca e dançam a valsa do Norte. A décima segunda canção, “Cais”, tem uma melodia em que impera o meio tempo, e consequentemente segrega uma tonalidade que dá tonturas a quem a ouvir atentamente, já que remete para um percurso que nos encaminha para um reino onde impera uma saudade inesperada. A entoação que Rui Reininho incute às estrofes de “Cais”, tem uma relação directa com o fado. “Quando um barco tem pernas para andar”. O ritmo encurta-se e desta periocidade, surge a Pop única e incontornável, genial, “imundo imenso sais”, “sereias sensuais”. O acelerar do ritmo cava uma profícua exorbitância e a melodia é um conjunto de raios de luz, que projectam um imaginário inalcançável: “Se ainda se ama o mar salgado”; “OOOO”; “muito cuidado atina voltas ao Cais”. O solo de Andy Torrence é um resumo semi distorcido da melodia, e dilui-se numa auto combustão. “Gajas excepcionais”. A realidade é-nos apresentada através da frase de guerra: “Então é ver se há Bancos à mais”.
A décima terceira canção, “Dunas”, fundeia a sua métrica num ritmo Rock and Roll oriundo da década de sessenta do século passado. Jorge Romão bate palmas e o público acompanha-o festivamente; o acordeão de Tóli Cesar Machado instaura uma quentura delinquente que arrepia um adolescente incapaz de cometer um parricídio. Rui Reininho queixa-se do facto de ter a camisa suada, e fá-lo irreverentemente: “Tenho que mudar a fralda. Está um calor do caralho”. Quando os GNR emergem as “Dunas” pertencem a uma ínsula com vista para a costa Atlântica; o público entoa: “As dunas são como divãs”. A poesia é narrativa, uma curta-metragem em que o público se vê no passado, onde reinou a inocência dos primeiros amores, belos e idílicos, virgens. “Alheios a tudo”. “Pensamentos lavados”. “Em câmara lenta como na TV”. “Sacos de cama salgados”. Numa praia onde reina o ócio como fonte suprema para a reflexão, “roendo maçãs”, que engrandece a consciência, mas que é vilipendiada por um solo ié-ié de Andy Torrence. Rui Reininho apresenta o maior compositor Pop que ainda impera em Portugal: “Tóli o nosso membro fundador”. A convergência do baixo e bateria aceleram o tempo da narrativa. Rui Reininho: “Patchi wari OOO”. Público: “Patchi wari OOO”. Rui Reininho: “Cantam vocês!”. Público: “Patchi wari OOO”. Rui Reininho: “Outra vez”. Público: “Patchi wari OOO” . As palmas ecoam e instala-se uma festa que culmina com o fim. A décima quarta canção, “Popless”, é manchada por uma frequência em que predomina uma programação rítmica; adicionada ao baixo de Jorge Romão que lhe inspira uma volatilidade dançante, e a guitarra de Andy Torrence confere-lhe um riff com timbre de uma fera indomável e insaciável. O groove pop é perturbante por se inscrever num domínio em que o onirismo é uma cadeia que liberta a consciência da rotina. “A imagem de ela sem reflectir”. Os acordes são promovidos através de uma circularidade repetitiva, o elemento que se assoma a partir desta prespectiva é a guitarra ritmo com efeito wha wha de Tóli Cesar Machado. Rui Reininho por vezes aproxima-se de um sussurrar, que obriga a uma redobrada atenção por parte do ouvinte: “a relva cresce”. “Sabendo que mexe”. Quando a circularidade dos acordes é mais rápida, culmina com o refrão: “Popless, Popless”. A décima quinta canção, “Sangue Oculto”, tem como vértices a bateria/baixo e o solo da guitarra eléctrica de Andy Torrence, correspondem ao erigir de uma nova Vandaluzia, povoada por vândalos condenados a matar a besta, que encontram num toiro latino. O universo é constituído por uma “matéria principal”, onde ardem “chamas de dois sois”; e escorre “corre o sangue”, e a lógica suicida é absurda: “Mato-me primeiro e a ti depois”. Os GNR remetem através de “Sangue oculto”, as sementes de um rock que se transcreve através de um vermelho rubro de tão kitsch, e quando aceleram o ritmo os raios que exalam são dissimilais. Rui Reininho encarna no Cavaleiro dos Espelhos que vê: “uma barragem é uma fronteira”. Assume a sua raça: “Oculto sangue que tenho para dar”. O solo pontual e intermitente de Andy Torrence conspurca-a com uma inevitável sangria, e a bateria irrompe como cutiladas no pescoço de um vitelo, sacrificado em nome do Cavaleiro dos Espelhos. “Sem correr e sem saltar”. O solo ganha um domínio bélico que estecticamente poderá ser adjectivado de épico. “Ao fugir de uma investida é como saltar a fogueira”. O público delira com a lembrança: “É o Porto sem fronteiras”. A décima sexta canção, “Sete Naves” (a primeira do encore), é um caso de esquizofrenia melódica. O elemento que se sobrepõe à programação, é o baixo distorcido de Jorge Romão. A guitarra wha wha de Tóli Cesar Machado é o emissor de uma sonda de um golfinho enviado para o Espaço, cobaia para estimular o amor dos humanos. “Vejo um rio, vejo destroços de metal a flutuar”; a voz de Rui Reininho corresponde à de um narrador que tem o vício maldito de subtrair à sobrevivência a sua lógica: “desejo de me afundar”. O groove é contínuo e desconcertante de tão hipnótico, “martelar”, mas a relação do baixo de Jorge Romão e da guitarra eléctrica Andy Torrence entram em clivagem algo que a incendeia desconcertadamente. “Ao acordar”. O narrador abomina o ritmo soturno, assim como as luzes intermitentes, que iluminam o palco instalado no cimo da Avenida dos Aliados. “ Não param de martelar”, a hipnose é acrescida de uma tensão libertária, à sua volta surgem Naus oníricas que “não são feitas para navegar, aguentam a violência de um beijo mas nunca a do mar”. O dramatismo erótico: “Voltam-se e mas vêem-se devagar”. O acelerar do groove confere-lhe um psicadelismo apócrifo e a guitarra eléctrica de Tóli Cesar Machado ensimesma-se através de um solo magistral. O narrador delira: “Drogas, haxixe, Mão Morta e agora punhais”. Pausa. Os GNR reinscrevem a aspereza dos acordes numa circularidade abstracta, onde o groove é indomável. “E elas vêem-se mas voltam-se devagar”. Jorge Romão repete: “LABOMLALABOMBOM”, estes termos como se fossem uma determinação suprema de um manipulador de Eco. “Vêem-se devagar”. Jorge Romão: “LABOMLALABOMBOM”. Rui Reininho: “LABOMLALABOMBOM”. Antes da décima sétima canção, “+ Vale Nunca”; Rui Reininho apresenta o seu currículo de estrela Pop: “Em penaltis ganhamos aos Rammstein”. O teclado de Miguel Amorim marca a melodia com tonalidades infantis, revertendo-a para a Pop com potencialidades para reintroduzir a juvenilidade no público que canta: “Mais vale nunca, mais crescer”. Os GNR não dão sequência à progressão dos acordes, e transmitem ao público um impasse que roça a eternidade. Público + Rui Reininho: “Mais vale nunca, nunca mais crescer”. Rui Reininho: “ficas à aprender”. Por fim, dá-se a coligação dos GNR, com a devida conivência do Rei: “Mais vale nunca mais beber”. Rematada com um solo de Andy Torrence com resposta à altura de Jorge Romão. Rui Reininho despede-se da multidão: “Obrigado! Até à próxima!” . Esta partida deixa atónito Jorge Romão, que fica especado à espera do regresso de Rui Reininho; e este marca o início da décima oitava canção, “Inferno” (popularizada por Roberto Carlos): “1-2-3-4-5”. A guitarra de Andy Torrence em regime de semi distorção projecta um espaço sonoro ié-ié, e sobrepõe-se ao rock tropical chic. Rui Reininho canta, mimetizando o timbre de uma vítima a que o Cupido acertou no líbido: “céu azul, sempre a brilhar”, “no meu pensamento”. A celebração é apropriada pelo público, que acompanha a narrativa entusiasticamente, que ignora mas acompanha o drama Pop: “Eu quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo o mais vá prá o Inferno”. A predominação da guitarra de Andy Torrence sobre a moldura tropical rock, promove uma luminosidade impenetrável. E Rui Reininho goza: “e a solidão me dói”.

GNR “Rock in Rio Douro”, 21 de Junho, Concertos na Avenida @ Porto

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Patty Diphusa

O palco do Salão Brazil tem uma tela instalada atrás da bateria, onde está estampada uma fotografia com os cinco músicos que compõe os The Walks, surpreendidos por um paparazzi conimbricense. O cantor surge com um blazer branco sobre a camisa e as calças pretas, a secção rítmica tem gravatas escuras, estes pormenores são fundamentais para os enquadrar numa moda Mood “clean”, e muito orgulhosa da coroa inglesa. O mapa estético que os Walks promovem já não se coíbe somente ao Mood, e o exemplo disto é a primeira canção onde as tonalidades negras são mais desgarradas. E este ponto de partida é fundamental porque infecta o alinhamento de um condimento que os ouvidos teimam em expurgar. As guitarras, no terceiro tema, revelam uma agressividade arty mas paradoxalmente a letra versa sobre um “disaster”, e o baixo marca o compasso de uma dança educada. Palmas. “Muito obrigado! Boa noite Coimbra. Nós somos os The Walks”. A quinta canção é marcada por uma visceralidade contida que corresponde um dejecto sónico de pura poesia. O trajeto que percorrem até ao fim do espetáculo é percetível que são uma máquina de rock and mood-- com a presença em palco do maior guitarrista de Coimbra, Victor Torpedo-- algo que aparentemente é paradoxal, mas que faz sentido nos The Walks, porque há uma entrega total como se fosse uma overdose de adrenalina. E a catarse é um convite que domina e modifica a percepção sobre a realidade algo que incute uma sedutora alienação.
A estrela que se segue é Victor Torpedo, veste fato escuro, tem uma poupa de rockabilly. A performance de Victor Torpedo denomina-se de” Karaoke”, este conceito é devidamente sintetizado por um ecrã, onde são projetados vídeos legendados com as respetivas letras das canções, e das colunas saí a música. A primeira canção tem um ritmo tribal de um grupo de pretos africanos em redor de uma fogueira onde grelham um porco branco. A segunda canção-- que é marcada pelo estoiro do microfone na testa de Victor Torpedo-- tem uma melodia rude muito próxima a um lowfi punk. Victor Torpedo atira o microfone a um membro do público que canta para o seu interior. Enquadrado nesta mesma vertente encontra-se a terceira canção, Victor Torpedo exercita a autopunição cravando o microfone de murros. “Obrigado aos The Walks”. Quando a herança punk gradualmente desaparece do alinhamento o concerto ganha uma profundidade kitsch pop, com a exploração de tipos rítmicos com origem em Madchester. E é nestas canções que sobressai a persona Victor Torpedo, pois se vê infetado por uma lascívia que orienta o imaginário para uma ambiguidade sexual. Em “Meet my Tribe”, é o drum and bass com MD a efervescer, e o microfone é atirado para Pedro Calhau que canta: “meet my tribe” e dança. Palmas. Victor Torpedo: “Obrigado Capital do Rock”. A última canção tem uma batida disco com intervenções constantes de uma frequência Rock and Roll, datado de 1950, Victor Torpedo coloca o microfone na boca e faz flexões, e vêm-se: “baby”.


Victor Torpedo “Karaoke” + The Walks, 14 de Junho, Salão Brazil @ Coimbra

domingo, 1 de junho de 2014

El Ultimo Tango

Surgem no palco do Casino da Figueira da Foz três mulheres, uma é loura e alta acompanhada por duas morenas, todas envergam a cor preta, sentam-se nas suas cadeiras. A primeira música tem uma programação festiva quase de festival da canção, surge um homem de boina com lantejoulas, que canta juntamente com a guitarrista, a letra versa sobre uma dona de casa fútil mas que foi baptizada de “Maryjoana” que “faz a mise” ao espelho onde descobre o vazio que a inocuidade provoca. O segundo tema cruza o tango com o flamenco mas este ultimo é apenas um leve apontamento. “Boa noite. É com muito prazer que estamos nesta sala fantástica”. O terceiro tema é profundamente romântico de tão delicado, principalmente quando o violino da loura se ensimesma epicamente. Quando as canções não são apoiadas nas programações é pertinente perguntar como é que o violino, guitarra acústica e um acordeão soam como uma orquestra em que os músicos são tão surdos quanto Beethoven. “Video Maria”, dos GNR, perde a componente de pecado em cada andamento para ganhar um exotismo que até aí lhe era estranho. “Normalmente o Elton John tem nos seus camarins uma barbie e o Kent, e eu tenho duas Barbies. A ´Sharon Stone` Ianina Khmelik e a ´Grace Kelly` a Fátima Santos”, e a Cristina Baselar é a “Madonna do tango”. Para acentuar uma perspectiva que apela a um saudosismo kitsch socorrem-se de Simone de Oliveira, que com a sua voz grave canta sobre a perdição que a perda incute em quem nunca está habituado a ganhar. A sua presença faz levantar a plateia que ovaciona a sua figura levemente imponente de Diva da rádio nacional. Ao executarem um tema do Astor Piazzolla, com uma programação que não o perturba esteticamente antes lhe confere uma tonalidade de contemporaneidade que sub-repticiamente aprofunda a sua fatalidade, o músico argentino encarna em três mulheres que irradiam genialidade. Para o primeiro tema do encore regressa Simone de Oliveira que discursa: “Do fundo do coração. Este país tem que perceber que estão aqui três músicos extraordinários”, nem La Passionaria teria coragem para ser tão pertinente quanto sintética. Mas a diva esqueceu os óculos que lhe permitem ler a pauta, “eu dava-lhe os meus que são só para o charme”. A diva responde a Cristina Bacelar: “Estou velha”. Este contratempo obriga a Simone de Oliveira a entoar a letra enquanto a Cristina Bacelar canta as suas estrofes. O último tema fica à escolha do público que determina que seja a “Maryjoana”, surge o cantor da boina com lantejoulas escuras que através de gestos ensina a coreografia da letra, “que faz a mise”. O público está levantado das cadeiras a abanar as ancas e a bater palmas efusivamente ao ritmo da canção pop kitsch que poderia ser usada numa casa como a Pérola Negra.

As 3 Marias, “Bipolar”, 31 de Maio, Casino da Figueira da Foz @ Figueira da Foz

Dedicado ao Miguel Soares