sábado, 26 de setembro de 2009

Electric Love

The Cult: a imagem que prevalece no fundo do palco é um índio, apesar de serem uma banda inglesa, a iconografia relacionada com o seu álbum Love de 1985, é o universo dos índios americanos, que irão apresentar na íntegra. O Coliseu de Lisboa encontra-se repleto de t-shirts pretas, góticos, botas de tropa, ou, de plataforma, adolescentes, e quarentonas. Esta banda faz parte de um imaginário libertário, que através da conjugação das guitarras e de uma forte secção rítmica, expressam “Nirvana”. Ian Asturby já não é magro e com cabelos até à cintura, está gordo e com os cabelos encaracolados, e perdeu a voz límpida de barítono. Está alheio ao facto de que estão trinta graus, o casaco de cabedal, o cachecol, e as luvas que seguram uma pandeireta, levam-nos a julgar que ainda crê que está nos Estados Unidos, onde decorreu a primeira parte da digressão Love Live. “These way “, “Nirvanaaa”, atira a pandeireta para o público. “Only you baby”, “only you baby”, “think a solution”, “yeah, yeah, yeah”, “baby, baby, baby”, com o solo de Billy Duffy, a completar, “Big Neon Glitter”. “Thank you for coming tonight”. “Love” é apresentado de forma irrepreensível, com uma voz insidiosa e o riff da guitarra percorre a canção, quando Ian se cala, a guitarra de Duffy liberta-se num solo majestoso. “Brother Wolf, sister Moon”, é um slow épico em que o amor entre o lobo e a lua é um conto de fadas negro, e o uivar é de Ian: “sister Moon”, “help me”, “sister Moon”, “OOOOO”. A chuva cai sobre o deserto onde crescem escorpiões que se reviram e espetam o seu veneno que intoxica quem se atrever a enfrentá-los: “Here comes the rain”, “I Have been waiting for her, for so long”, “yes, it comes again”, “I love the rain”, “Yes, it comes again”, “I love the rain”, solo da guitarra de Duffy. “The Phonenix” é uma sequência de acordes de wah wah, em que a voz é um mero elemento decorativo, sem grande presença na canção. “Do you now Cristi Ronaldo? He sucks!”, é Ian Asturby a provocar os portugueses, que não reagem, ficam inertes, confusos. Despe o cachecol, “away”, “get away”, pausa, “hollow man”, “every day”, solo, “yeah”, “yeah”, “yeah”. Os índios foram devastados pelas doenças dos europeus, pelo alcoolismo, pela tecnologia das armas, roubaram-lhes a cultura, roubaram-lhes a alma: “Flowers”, solo, “There`s a revolution”, “revolutuion”, “revolution”, “revolution”. No ecrã que se encontra atrás dos músicos surgem imagens da queda do muro de Berlim e do Maio de 68, “There`s a Revolution”, “revolution”, “revolution”, “revolution”, “revolution”, “revolution”, com solo de Duffy a finalizar. “Sanctuary”, e, “Black Angel”: “now he thinks he `s at home”, “Where to go?”, Ian ajoelha-se: “Goodbye!”. E encerram a sequência do álbum Love. “Electric Ocean” é uma mistura de hard-rock que provoca que as ondas produzam curto-circuitos, com Ian de pandeireta e Billy, a fazer solos, a levantar o braço direito, a empunhar o indicador como se estivesse a liderar a catarse do público, “EEEElectric”. “I love you every hour”, “Wildflower”, com solo compassado, “I love you every hour”, “Wildflower”. “These `s our first concert for the European tour, thank you so much for coming!”. A apoteose final é apresentada através de “Firewoman”, “common litlle sister”, “Fire”, solo, “baby”, “baby”, Firrereerwomanna”.

Love Live, The Cult, Coliseu, 25 de Setembro.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A Casa da D. Celestina

Em 1965 Paula Rego expôs em Lisboa, pela primeira vez, na Galeria de Arte Moderna nas Belas-Artes, estiveram presentes os progenitores (o pai viria a falecer seis meses depois), e a alta sociedade da capital. Nesta altura, Paula desenhava e posteriormente recortava-os, e colava-os na tela sobre fundos monocromáticos, era fortemente influenciada por Francis Bacon amigo do seu marido Victor Willing. As telas eram de uma agressividade voraz, e os temas manifestos contra o Estado Novo, que era dominado por um homem: António Oliveira Salazar. Paula havia realizado o seu percurso artístico-escolar em Londres, para onde partiu com 16 anos, na Slade Scholl of Fine Art. Na exposição de Lisboa foi interpelada por um convidado que lhe perguntou se os seus quadros são coisa de prostituta? “Não, se fosse estaria a desenhar igrejas”, foi a resposta mais politicamente correcta que se pode dar a um ignorante, dominado pelo preconceito e pela insegurança. As pessoas que me rodeiam na inauguração da Casa das Histórias, são na sua maioria pertences à nata de Cascais, de bronzeados ainda latentes e perfumados com fragrâncias inevitavelmente elitista, há artistas, empresários, executivos, críticos de arte. Não há espaço para se ver as obras e seguir o percurso que é predominantemente didáctico, desde um trabalho de escola, onde começou a desenhar à vista, passando pelas óperas, Vivian Girls, Pillowman. A mulher é a paisagem que Paula Rego prefere explorar, pelas razões que se prendem com a sua sexualidade, que era censurada durante o Estado Novo. A artista é todas as mulheres, em especial aquelas que sofreram por não terem liberdade para abortar, ou, que são manipuladas pela vontade de Deus, ou, pela sociedade. Estes vértices, são dominados por homens? É contra o falocentrismo que a obra se insurge, algo que é típico da sociedade latina, neste ponto aproxima-se de Portugal, e quanto mais se focaliza mais dilacerante é o seu discurso. Esta política de confrontação irá dominá-la sempre, mesmo quando relaciona as suas telas com obras literárias, algo que já a cativava em criança quando ouvia a leitura do pai, sobre o “Inferno de Dante” com ilustrações de Gustavé Doré. Este interseccionismo, marca obras como “Under a Milk Wood” de Dylan Thomas e “Birthday Party” de Harold Pinter, ambas peças de teatro. Surgem através das diversas personagens que cria mas acima de tudo, pelos fundos falsos, que remetem para cenários, esta contra-posição, entre: algo real, as personagens, e algo artificial, os cenários, provocam uma dicotomia que projecta relevância às personagens. A Casa das Histórias, poderia ser um teatro onde se colocariam em cena as peças que marcaram a vida de Paula. Ela criou inúmeros vectores de entendimento com a realidade, a sexualidade, a ópera, a literatura, drama, a arquitectura, religião, a portugalidade, a pedofilia, o aborto, o alcoolismo, a paternidade e a maternidade, a demência, abandono, a violação, regicídio. Estes temas não são preocupações de uma prostituta, nem tão pouco é tema de conversa dos convidados, que se fazem valorizar por serem vizinhos da Casa das Histórias e ter sido uma maçada ter vindo de carro, porque não havia lugar para estacionar. Aceitam Paula Rego porque é consagrada por uma sociedade anglo-saxónica, onde dominam critérios de liberdade e onde se premeia o mérito, assim, como existe uma forte educação artística que reúne nomes como Turner, David Hockney, Damien Hirts, Bansky. Paula Rego realizou uma longa peregrinação, viveu na dependência emocional de Victor Willing, que a orientava em termos estéticos, sobreviveu à sua morte. Colocou nas telas Lila Nunes, a enfermeira que o tratou até aos seus últimos dias, e que é o espelho de Paula, na raiz deste triunvirato há uma história de amor, que encontrou a sua casa com vista para o mar tantas vezes navegado para descobrir o desmistificar do medo de existir.

A Casa das Histórias, Paula Rego, 18 de Setembro, Cascais.

Camane, homem de estatura baixa, de voz grave que canta o fado. Foi escolhido por Paula Rego para animar a Cidadela de Cascais, uma área rodeada por edifícios que formam um quadrado. A entrada é um túnel com origem na arquitectura militar, e o fadista, canta como se fosse um farol, que em noites de nevoeiro perfura as ondas e traz de novo à vida as ninfas que viviam no Tejo e que Camões tanto enalteceu. “Fica preso à saudade”, “naquele rio tão puro, o tempo inseguro”, o rio, a corrente, como metáfora da passagem do tempo que é domínio de Deus e não do homem. Camane, tem consigo a guitarra portuguesa, a viola e o contra baixo, “entre o passado e o futuro”, “mas não acho o que procuro”, “quando o tempo é inseguro”, “entre o passado e o futuro”, “mas não acho o que procuro”, “o amor quando se revela”, “não se sabe revelar”, “quem quer dizer o que sente, não sabe o que dizer”. “Mas se ela adivinha-se”, pausa, “fica sem alma, fica só inteiramente” com a voz de Camane a subir como se fosse um apelo de comiseração. À capella “partiu zangada comigo, deixou um retrato que me aqueceu na noite friaaa”, surge o trinado lento da guitarra portuguesa, “o céu que não é meu”, “porque é que partiste? Ainda vivo sofrendo a minha agonia e não me levaste a morte”, com um final apoteótico, pois a voz arrasta os três instrumentos. A introdução é realizada pelo trio de músicos, devagar entra a voz do fadista, “livre pensamento foram-te hoje encerrar”, “levaram-te”, pausa, “a meio da noite”, “de todas as mais sombria”, “foi de noite e nunca mais se fez de dia”, “noite, o veneno”, “persiste em envenenar”: “ao menos ouves o vento de cristal?”, “ao menos ouves o mar?”. É o veneno que as palavras incutem na memória e nos recordam da paisagem que passou e amanhã a noite será diferente, venha Deus ou seu irmão gémeo o Diabo, para nos resgatar desta mortalidade. Aha saudade. O fado corrido é cantado do “Bairro Alto, vou dar o salto?”, “para o tempo que aí vem”, “ouvir Lisboa a chorar”, “Lisboa morre por sair à rua”, “para as tristezas que Lisboa tem”. As notas arrastadas são fruto de um dia “azarado”, “céu que nos agarra”, “de cem milhões de guitarras”, “pode ser que nos mate”, “só por séculos de fado”, “só milénios de NAAAAADAAA”. A mulher é o objecto do amor de Camane: “os teus olhos sedutores são duas Avé Marias”, as guitarras trinam, a portuguesa sola sobre a viola, o baixo faz a ponte entre ambas: “REZO TODOS OS DIAS”. Quando Camane era criança era-lhe proibido cantar os fados dos adultos, “e as quintinhas, sextilhas, e os decassílabos” que eram escritos pelos seus amigos, juntava-lhes as guitarras e cantava, quando ascendeu à idade adulta foi-lhe permitido cantar: “Alfredo Marceneiro, este fado é dele”, a guitarra portuguesa ensimesma-se solenemente, devagar, devagar, devagar, “de uma noite menos fria onde não sinta a agonia”, “vou de um fado a outro fado, porque o fado sou eu”, “o meu destino assim mudado”, “ser fadista”, pausa, “triste sorte”. “Antes de acabar quero oferecer um ramo de flores à Paula Rego”, o fadista entrega o ramo ao Ministro da Cultura, que se levanta para as receber e entrega-las à artista plástica. “Sei de um rio”, as margens nocturnas do Tejo unem-se: “a minha boca a separar-se da tua”, “sei de um rio”, a voz é tão funda quanto o Cabo da Roca, “dá-me os lábios desse rio que nasceu na minha sede”, “e a minha boca até quando vai separar-se da tua?”.

Cidadela de Cascais, Camane, 18 de Setembro.

O segundo dia de festa na Casa das Histórias, conta às três da tarde com a “apresentação das publicações e da programação para 2009-2010”. No auditório o primeiro a discursar foi o Presidente da Câmara de Cascais, António Capucho. “Como é que chegamos até aqui? Tenho duas irmãs que são pintoras, uma delas fez uma tese de mestrado sobre o desenho de Paula Rego. Ela não conhecia Paula Rego, ou conhecia de se cruzar com ela no paredão, conheceram-se, e foi daí que elas se aperceberam da vontade de Paula Rego em ter um Museu”. Posteriormente, António Capucho, encontrou-a no Palácio de Belém onde a artista estava a fazer o retrato de Jorge Sampaio que a “apresentou aos Conselheiros de Estado, aí, ela percebeu que eu era o Presidente de Cascais”. Após este encontro o Presidente visitou diversos locais com a artista, que “acabou por se apaixonar da Casa Zamora”, “onde D. Carlos jogava ténis”, “depois foi a escolha de Souto Moura, tinha que ser um dos expoentes máximos da arquitectura portuguesa”. Quando “este local começou a crescer, Paula, perguntou-me: ´Para quê quero uma casa das histórias tão grande`”, por fim, “convidamos a Dra. Dalila [Rodrigues] que aceitou o desafio”. E antes de finalizar: “O impacto de Paula Rego teve sobre a opinião pública de Lisboa, foi enorme, todas as pessoas vieram para ver a exposição”, “até podíamos transformar a Cidadela em Casa da Paula Rego, porque não?”. Conclui: “Espero que ela seja feliz neste regresso a casa”.
A Directora da Casa das Histórias, Dalila Rodrigues, considera a Casa das Histórias: “não é o Museu Nacional de Arte Antiga”, mas antes, “uma marca internacional, tem um reconhecimento claramente internacional, não pode ter outra marca”. A ex-Directora do Museu Nacional de Arte Antiga, lidera uma equipa que se ocupa das diferentes vertentes da colecção. A Casa das Histórias, terá “duas exposições temporárias ao ano, com a possibilidade de ter mais uma”, no acervo constam “seiscentas obras, gravuras, desenhos, modelos”, “irão prevalecer conferências internacionais”, “onde estarão especialistas internacionais”. Prevê-se para Abril uma exposição de Victor Willing, para além da eventualidade de uma de Goya, que Dalila Rodrigues se encontra a negociar.

Casa das Histórias, António Capucho, Dalila Rodrigues, 19 de Setembro.

Às cinco horas sobe ao palco do auditório da Casa das Histórias Jake Auerbach`s, inglês documentarista. Começou por dizer que havia feito um primeiro documentário sobre Paula Rego em 1988, quando expôs “in Serpentine Gallery”, mas não ficou satisfeito com o resultado e aproveitou a retrospectiva no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em 2007, para iniciar outro documentário. Neste basicamente apresentou a vida e a obra, em que os comentários eram realizados pela artista, sem que surgisse um contraditório ou alguém que desse uma perspectiva mais ampla das telas. Enigmaticamente não referiu que Victor Willing, já era casado quando se juntou a Paula, e que ele era consagrado mesmo antes de Paula ter almejado esse cunho em 1988. Não colocou nenhum dos críticos de arte que a têm estudado, como é o caso de John McEwen, Ruth Rosengarten, Fiona Bradley, para assegurar algum contra-ponto. Focou o seu trabalho na vertente mais sensacionalista e pessoal da artista as depressões crónicas do pai de Paula Rego, e o domínio que a mãe exercia sobre ele. E deixou que Paula, se diminui-se ao ponto de que se, “não fosse a pintura estaria num manicómio, que é o lugar onde poderia estar”. Jake pergunta-lhe: “Está a dizer isso literalmente? “Sim, eventualmente será para onde um dia irei”. Não lhe pergunta se ao longo da vida recorreu a psiquiatras para controlar a demência. Apenas, deixa o quadro da mulher perturbada, que é um clichet redundante, que pinta para exorcizar os demónios que a vida lhe consignou.

Casa das Histórias, Jake Auerbach`s, Documentário sobre Paula Rego, 19 de Setembro.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Pintura e Poesia

Henri Fantin-Latour (1836-1904) foi um artista plástico que tinha um domínio profundo sobre a poética romântica. Era esta a raiz do seu trabalho, que se dividia em três temáticas: o lirismo suportado na música clássica, a natureza-morta, e o retrato. O primeiro ponto, é realizado através da inspiração proporcionada pela Ópera, em que a técnica aplicada é de pinceladas individuais policromáticas, a intenção é transpor cenas lúdicas, em que as figuras surgem esotericamente. A natureza-morta é levada ao extremo da delicadeza que o pormenor permite, são pequenas composições de um realismo desarmante, pela sua representação de um género que tinha tanto de académico quanto de obrigatório a qualquer artista do século XIX. No retrato, Fantin-Latour, excedia-se através de figuras de corpo inteiro, ou, de meio corpo, sentadas ao piano ou a ler, os fundos— tal como na natureza-morta— são meios-tons invariavelmente pardos, as figuras sobressaem, e a perspectiva criada é a partir destas por contra-posição do fundo. É neste capítulo que Fantin-Latour se transcende ao representar o exterior dos seus familiares e amigos como Baudelaire, mas simultaneamente incute-lhes uma gestualidade “invisível”, quase passiva, estática, mas que obriga o olhar a incidir e a tentar perscrutar o seu carácter.
No catálogo consignado à exposição da Fundação Calouste Gulbenkian e que será também publicado no Museo Thysen-Borneisza, para onde seguirá a mostra. Eduardo Lourenço intitula a sua dissertação de “Pintura e Melancolia”, e inicia a sua tese da seguinte forma: “Diz-se do génio que é como os anjos, uma espécie num só individuo. Pelo menos foi assim que o Romantismo o teorizou e o mitificou. Só na nossa memória como pura legenda os génios vão aos pares para a Arca de Noé. Nos meados do século XIX, Baudelaire, num poema famoso, dedicou aos génios da pintura ocidental um retábulo mítico onde a sua visão romântica do génio inventa a genealogia da própria Modernidade. Baudelaire desce ao limbo da aventura pictural menos para resgatar quem o não precisa—de Rubens a Delacroix—que para assinalar à pintura mesma o estatuto sublime por excelência.
O reservado Fantin-Latour não figura nesse cânone poético destinado a influenciar o discurso estético desde Élie Faure a André Malraux. Nem pela idade, nem pelo estatuto discreto, o futuro autor de Le Coin de Table podia pretender aos olhos do poeta de As Flores do Mal essa consagração. O seu lugar na cena pictural da sua época e na sempre viva memória dela que ainda conservamos, é mais modesto. Quase frisa o apagamento. Como se tivesse escolhido adoçar a luz ofuscante do génio, segundo Baudelaire, semelhante à dos “´faróis`” que aclaram por intermitência a vaga sinistra que de “´idade em idade vem morrer à beira da eternidade`”.

Henri Fantin-Latour (1836-1904), Fundação Calouste Gulbenkian, 02 de Setembro. Patente de 26 de Junho- 6 de Setembro.