segunda-feira, 16 de setembro de 2019

The Picture of Dorian Gray

Estou no Douro num festival com um nome deveras pomposo Wine & Music Valley e de facto há inúmeros postos de venda de vinho assim como senhoras e senhores com os seus copos de vidro a bebericarem uma casta qualquer há quem vista de branco e use um panamá apesar da noite quente de Setembro suponho que seja a burguesia rural a imitar o estilo dos ricos da Comporta e por isso aparentam tal brilho dourado a maioria está aqui a mando de uma rádio FM que os tortura com músicas da sua juventude que os recordam que em tempos foram jovens que ouviam música pop rock mas de cariz predominantemente comercial e que ignoravam a música clássica a moderna ou a contemporânea e o jazz somente o que não lhes perturbasse o raciocínio de baixa altitude mas há uma alegria tipificada pelo esquecimento de que estão alcoolizados ou os que não estão fazem de conta que não estão sóbrios quanto ao guarda-roupa das idosas e das jovens há um traço comum isto é uma castração da sua sexualidade pois temem que algo ousado lhes seja posteriormente criticado safam-se os estrangeiros que estão por aqui para ver o Bryan Ferry o ex- Roxy Music que assinala no Douro a última data da sua digressão mundial mas antes há que ouvir a Mariza que veste um vestido cor de espumante rosé das Caves Messias constituído por lantejoulas a cantora é de uma entrega vocal multifacetada seja nas canções românticas ou na pop ou na morna e no fado e este género é que é responsável pela sua fama de eximia cantora mas algo que desconhecia é a forma constante com que comunica com o público dizendo algo assim: “o que são esses brilhantes nessa barba? Tu vais dizer que foi do meu vestido!?! Isso querias tu!”, “primeiro não queriam bater palmas depois não queriam cantar e agora querem acabar uma canção minha?”, uma Diva que saiba o que isso significa jamais teria esta familiaridade em relação à audiência com a agravante de que o primeiro comentário seja personalizado e este excesso mancha negativamente o concerto durante o qual abana o traseiro (por duas vezes) ao ritmo da bateria revelando um sex appeal que não é habitual nem em artistas pop nacionais e somente por este estrondo visual é possível participar que a Mariza é um portento de talento sensual; os roadies estão a instalar a parafernália que acompanha Bryan Ferry vê-se a bateria os teclados o baixo e duas guitarras e três microfones para as respectivas coristas e junto ao microfone central onde estará o músico inglês há um teclado e o périplo musical é de uma lugubridade que extravasa a pop de contornos kitschs é algo melodicamente denso e de estrutura insinuante de tão elegante e nessa constante há um aprofundar da natureza das canções e outras geram um psicadelismo épico que se socorre do repertório dos Roxy Music e ou preferencialmente das canções que transformaram o Bryan Ferry numa estrela mundial na década de oitenta e sublime é o jogo (arriscado) entre os músicos que ultrapassa as convenções instituídas pelo rock e nesta transposição projectam-nas para algo indescritível de tão belo e por vezes é o cantor inglês a prolongar as músicas com o seu teclado que os outros seguem estoicamente outras dá indicações discretas com as mãos para aumentar ou diminuir a densidade de uma harmonia e quando a saxofonista sola sintetiza o centro da melodia em algo pleno de uma urgência apoteótica e ainda a simpatia desarmante de Bryan Ferry pois não se associa ao mito da responsabilidade da imprensa inglesa e isso é prova as inúmeras vezes que se dirigiu para o público e como engrandeceu a paisagem circundante da qual destacou a “moon” e prossegue por um mapa em que o que consta é uma poética romantizada ou uma dependência pelo amor que canta e por vezes o fala ou o sussurra oferecendo-lhe uma consciência de um dandy decadente mas por isso misterioso de tão sensual que consigna ao seu amor uma verosimilhança idílica (ao fim de uma hora e quarenta minutos Bryan Ferry merecia ser traduzido numa epopeia mas para tal falta-me talento).

Wine & Music Valley (Bryan Ferry + Mariza), 14 de Setembro, Porto Comercial de Cambres, Lamego.

sábado, 14 de setembro de 2019

Plan 9 From Outer Space

O Figueira Film Art 2019 promove Cine Concertos e convocou diversos músicos para musicarem filmes com os quais se identificavam o primeiro é “O Barão” (2011) de Edgar Pêra e é Vítor Rua que com a sua guitarra eléctrica faz o complemento sonoro-- originalmente o filme tem banda sonora mas encontra-se anulada e tal é discutível porque há uma alienação de um filme sonorizado para um mudo e esta transposição é no mínimo arriscada e discutível-- e os acordes dos primeiros vinte minutos são repetitivos e sem qualquer poder de indução no filme que segue uma narrativa que não encontra reflexo nas partes subsequentes salva-se a mestria técnica do músico que é de facto eloquente; Victor Torpedo, “A Bucket of Blood” (1959) de Roger Corman (com o som original audível), e o músico mune-se de uma guitarra eléctrica e invariavelmente insere três acordes mas por vezes introduz um som wah wah algo insípido e que se limita a se submeter à narrativa sem lhe introduzir outras perspectivas e nem o facto da banda sonora original ser o jazz altera o seu registo; The Parkinsons, “A Long Way to Nowhere” (2015) de Caroline Richards corresponde a um documentário que registou o périplo do quarteto conimbricense por Londres e as vicissitudes e incongruências e ou paradoxos que ditaram quase a implosão da banda e há ainda a realçar que a realização da Caroline Richards é fantástica; Subway Riders, “Missile to the Moon” (1958) de Richard E. Cunha (com o som original audível), são um caso estranho de sonorização ao se enunciarem através de elementos mínimos que sublinham o filme de um lo-fi que enaltece a narrativa e a tolhe de elementos que a engrandecem e a traduzem de uma forma minimalista (épico); Marcelo dos Reis, “White Dog” (1982) de Samuel Fuller (com o som original audível) (que esteve presente há vinte e sete anos no Festival Internacional da Figueira da Foz), tem banda sonora original do Ennio Morricone e somente este facto faria temer o pior mas se inicialmente há somente um complemento ao filme através da guitarra eléctrica gradualmente logra ultrapassar este óbice ao introduzir outros timbres e equiparar-se dramaticamente à música do maestro italiano no mínimo apoteótico; Pedro Chau, “A Viagem Cósmica” (1936) de Vasili Zhuravlov, que é originalmente um filme mudo e a proposta do músico enquadra-se na trama futurista hoje meramente retro e é esse o universo que evoca através do teclado ou do baixo eléctrico porém se as texturas são por si só um indutor poderoso falta na primeira meia hora uma adequação à narrativa e na restante ultrapassa-a ligeiramente mas somente é suficiente; Vítor Rua, “A Caverna” (Versão inédita 3D 2019 Mix) de Edgar Pêra, Filme & Câmara ao vivo Edgar Pêra, Vjamming Cláudio Vasques, o filme é composto por diversos níveis uns encontram-se gravados outros são filmados ao vivo pelo Edgar Pêra que por sua vez são misturados pelo Cláudio Vasques e projectados na tela e que são traduzidos sonoramente pelo Vítor Rua e o resultado é um somatório lúdico por vezes ou muitas vezes psicadélico que poderia ser o reflexo de um cérebro sob o efeito de ácidos; Luís Pedro Madeira, “The Unknown” (1927) de Tod Browning (filme mudo), encontra na música um sustentáculo que acrescenta à história um aprofundar que lhe confere uma natureza evocativa de inúmeros universos mas tolhidos por uma ingenuidade que afunila o drama vivido pela personagem principal e através deste encontramos um quadro psicológico complexo que atrai e repele o espectador (épico).

Figueira Film Art 2019, Cine Concertos, 5; 6; 7; 8; 9; 10; 11; 12 de Setembro, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, Figueira da Foz.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

La Isla De Los Jacintos Cortados

Não há luz por aqui parece que a memória é uma pauta composta pelo Nino Rota para um filme negro e as suas notas correspondem a uma melodia voluptuosamente orquestrada dando destaque aos violinos que correspondem a um coro da época clássica e num palco com uma cenografia naturalista dança um casal que se movimenta tão lentamente quanto levemente parece que desaparecem e a melodia versa um andamento fúnebre que não sossega sobre o futuro dos bailarinos talvez sejam vitimas da sua ganância ou de outra incongruência qualquer e a fita rebobina sem que alguém a faça parar e os números sucedem-se numa ordem decrescente como se fossem os últimos segundos de vida do casal e por fim alguém carrega no Stop e substitui a bobine por uma outra e ouve-se “acção” mas o que sucede é um ecrã negro e uma voz reclama para si a narrativa que versa sobre algo estranho de tão distante e essa voz mistura-se com outras que encadeadas divagam sobre algo inexacto e essa continuidade é de um tédio preocupante que prossegue e por vezes é perceptível o que falam mas não as palavras essas que conduzem o espectador pelos diferentes estados de espírito das personagens a máquina é indiferente a essa monotonia e sucede que por fim surgem os contornos das personagens flutuantes a beijarem-se poeticamente numa lentidão de câmara lenta que lhes oferece um poder sedutor e que se esfuma assim que olham um para o outro e ouvem violinos em pizzicato que prolongam a cena para além de qualquer reconhecimento do que está verdadeiramente a suceder e este enigma equipara-se ao silêncio de que é composto a inexistência de verbos ou adjectivos somente um olhar entre eles e se despegam das sombras azuis e vestem o corpo de humanos de idades diferentes; She Wants Revenge encontram-se no palco do Teatro José Lúcio a convite da Fade In que promove há uma década o único festival gótico do país o ENTREMURALHAS é hoje EXTRAMURALHAS devido às obras de requalificação do castelo de Leiria mas não se confinam a esse género obscuro como é exemplo o convite endereçado aos She Wants Revenge que é uma dupla de músicos que encabeçam este colectivo que se fazem acompanhar por um baterista e baixista e a primeira música é uma continua expansão de acordes monótonos que perturbam e gradualmente se instituem como um denominador comum que é simultaneamente belo e negro e os primeiros quarenta e cinco minutos do concerto encontram o público maioritariamente sentado aparentemente hipnotizado perante a incidência e a cadência negra das canções e é convidado a que se levante e dance mas esta deve ser lenta e que esteja tolhida por um prazer umas vezes sedutoramente e outras vertiginosamente acutilante pois o ritmo é de uma verve contagiosa da qual ressaem melodias tolhidas com uma melancolia poeticamente negra que encontram no cantor um eloquente narrador ou pregador e é umas vezes o primeiro outras o segundo mas há o caso em que fazem parte de uma canção e a mensagem é de uma violência assertiva que se ergue contra qualquer recalcamento e liberta a consciência de outros atritos de similar índole as pessoas dançam e aplaudem e os She Wants Revenge que decidem porque lhes agrada esta festividade calorosa em prolongar o concerto por mais três canções e o encerram de forma épica; mas de similar sensibilidade observam uma tela abstracta em que a tinta é sobreposta a outras e diversas cores que se subjugam a uma monocromia em que impera o branco e o cinzento e sem que haja a percepção qual destes é que lhe oferece a luz símbolo do amor é-lhes fascinante este retrato que lhes oferece um destino que somente essa luz tem o poder de constituir e de realizar e se é um sonho ou algo que faça sentido entre as paredes que os cercam como se fossem muros que se erguem ilusoriamente contra os dias cinza de Inverno ou os dilúvios da Primavera e rasgam a tela e abandonam a ficção para recriarem uma outra em que domina uma rotina controlada pelo fuso horário local e desligam a projecção e na sala escura tentam encontrar algo que os retire dessa condição de cegueira momentânea e a luz branca de sala de cinema torna-os em figuras que dão continuidade ao tempo narrativo em que se consubstanciam em matéria similar ao tempo em que eram personagens de uma imagem que se flutuava porque a vibração destas é mais forte do que um batimento cardíaco que se alimenta dos sentimentos positivos para florescer um jardim ou uma ilha rodeada de muralhas de pedra calcária para sofrer com o desgaste das intempéries e um dia o dia da sua derrocada será hoje.

She Wants Revenge, 31 de Agosto, EXTRAMURALHAS, Leiria.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Liberdade Livre

O festival de surf de cariz internacional que decorreu durante cinco edições no centro da Figueira da Foz muda-se para a praia do Cabedelo onde há dois palcos: um situa-se junto à praia (palco 1)-- onde irão decorrer as diversas provas consignadas ao long board assim como a prática do surf nocturno (algo há muito reivindicado à edilidade pela comunidade surfista da Figueira da Foz) e através desta revolução transformaram a praia no último reduto de liberdade da região centro-- e o outro é fronteiro ao rio Mondego e onde irão decorrer os concertos nocturnos (palco 2); Elephant Maze são uma dupla de destruidores de acordes de heavy metal e de outros universos hard rock e nessa ordem inscrevem algo especialmente vibrante e desafiador a somar a este cocktail a movimentação endiabrada do guitarrista (palco 2); Dead Club são um caso estranho de demência synth que tem contornos repetitivos ou desconstrutivistas numa cadência marcial e por isso épica e a incluir nesta equação a ambiguidade sexual do ou da vocalista e realço este binómio porque por vezes era um outras uma especialmente a cantar e a sua performance é de um confronto contra as ordens morais instituídas pela religião católica (desconcertante de tão soberbo; a seguir com atenção) (palco2). Subway Riders— depois de dois excelentes concertos a fasquia encontrava-se altíssima— mas as provas superam os precedentes pois as canções de diversas índoles seja no pastiche ou no kitsch são apresentadas com uma profundidade emocional eloquente da ordem do divino (palco 2); (esta noite teve como dj Da Chic que se passeou virtuosamente pelo funk e ou pelo disco sound), (palco 2); Manda Blitz uma dupla que usa fundos sonoros pré-gravados sobre os quais sobressaem em diversas cores umas tórridas ou vibrantes que têm como raiz o jazz o senão prende-se quando se libertam das programações e o duo perde a sua eloquência algébrica (palco 1); Ruby Ann & Marc Valentine rodam cds de rockabilly e rock and roll (palco 1); Buster Keaton são um trio de rapazes compenetrados a musicar curtas-metragens do Buster Keaton que na altura era rival Charles Chaplin e a incidência é dividida em dois vectores nos planos curtos (o que pormenoriza o desempenho dos actores) a métrica musical corresponde a esses planos incisivos (com inúmeros pormenores sonoros) quando a sequência é rápida a música é de uma rudeza alarmante o resultado é um delírio para quem gosta de estar concentrado (palco 2); Drunks on the Moon são um casal que tem uma gravidez de contornos melodiosamente densos que evoca o rock de cariz americana ou a pop associada ao cancioneiro francês mas não existe qualquer clivagem entre estes dois universos antes um savoir faire magnifique (palco 2); Birds Are Indie salientam uma rugosidade rock que oblitera a natureza das suas canções pop de recorte britânico mas tal não é negativo antes pelo contrário porque esta revelação ou transposição é tão segura e assertiva que o nervo nunca se quebra antes ganha dimensão de músculo exorbitado mas sempre controlado de forma sublime algo que se repercute no público que reage em diversas moches (impagável), (palco 2); Daltonic Trio Jazz de contornos clássicos a que não é alheio o Miles Davies óptimo para iniciar a tarde junto à praia (palco 1); Palmers delineiam uma sequência de rock indie sem muitos preconceitos ou outros atritos que os possam bloquear se por vezes ou diversamente se são fantásticos isso deve-se à aspereza dos acordes e à sua cadência que é de uma raiva estonteante (palco 2); Wipeout Beat são três máquinas de teclados analógicos processados por humanos e um dos quais por vezes empunha a guitarra eléctrica numa configuração rock que associado à densidade dos teclados remetem para o kraut mas ainda mais marginal do que este género musical pois se sublima para além de qualquer podium e este é reflexo na dança dos surfistas e melómanos (palco 2); PSICOTRONICS encontram no Marquis Cha Cha o centro da sua essência que vestido de Diabo transexual canta e dança mas num registo performativo que é de uma eloquência kitsch e as canções punk synth são decorações de um palácio em que os ocupas dançam dia e noite sem que se apercebam em que tempo se encontram organicamente presos e que ao invadirem o palco o partem (palco 2); Junior Makenzie é um homem de cabelo comprido e barba de vários anos devidamente estilizada e as canções à guitarra acústica e voz grave têm uma latitude norte americana mas de tal forma tipificada que é alarmante a falta de originalidade porém estas tornam-se obsoletas perante a eloquência entre as mesmas pelo músico de Benicassim: “esta música foi gravada com o Paolo Nutini produtor do Michael Jackson eu acredito que o Michael Jackson foi assassinado”; “estava no meio do deserto mas não sabia onde e escrevi esta canção”; “e estava de ressaca e escrevi esta canção”, perante estas provas advogo que siga a carreira de comediante “Makenzie Zoo” (palco 1); Jesse Erikson and the Vessel Virgins (somente foi possível presenciar uma música) e a sua toada lenta remete para o rockabilly mas tal é somente desenhado (palco 2); Niki Moss é um rapaz de boné vermelho mas que se encontra rodeado por outros músicos que se exprimem num indie rock que tem inúmeras fragilidades nomeadamente na estrutura das suas canções algo que se agudiza quando fazem um medley de três canções (palco 2); Aiur Coue têm dois centros o que remete para o onírico outro para o denso e quando se unem numa canção são vertiginosamente belos tal é impossibilidade de os categorizar talvez soturnos e profundos (palco 2); Lonz Dale`s Fantasy a dupla synth rock e house e por vezes tecno rap e outras misturas tóxicas que provocam um vómito corrosivo que se equipara a um reflexo virtualmente da ordem do homem animal de palco que é o de um performer que se traveste nessa irracionalidade que provoca tanto a atracção quanto a repugnância (palco 2); Red Bean Rice são uns adolescentes que ainda se encontram num processo de crescimento criativo que desconhecem o cânone da pop (palco 1); Rapaz Improvisado é um rapaz que raras vezes improvisa talvez essa designação não lhe seja favorável e está acompanhado por um contrabaixista e as canções são de uma delicadeza desarmante evocando diversos estados de espírito num percurso em que se confia no narrador com prazer (palco 1).

Gliding Barnacles, 28; 29; 30 e 31 de Agosto; 1 de Setembro, Praia do Cabedelo, Figueira da Foz.

Dedicado ao Mestre Cruzeiro Seixas.