segunda-feira, 26 de agosto de 2019

The Letters of Vincent Van Gogh

No início estava deitada sobre um estendal de roupa que o vento havia atirado os atoalhados brancos sobre a relva que usava para a mesa da sala de jantar repleta de móveis antigos e nas paredes máscaras velhas que secretamente a observavam a meditar sobre o que vestir ou o que comer segundo a dieta mediterrânica que tanto a deliciava mas que infelizmente aumentavam-lhe o peso que em tempos a faziam sorrir para a balança quando o ponteiro se detinha tremulamente nos sessenta quilos mas há meses que teme prostrar-se sobre a sua tampa branca com o receio de que ultrapasse os setenta de massa corpórea e tal desdém causava-lhe uma tristeza miudinha que a roía diariamente como se fossem os bichos que se alimentavam dos seus móveis ao estilo holandês de onde é originária e onde deixou a família para se aventurar num país que tem a maior costa da Europa e o mar Atlântico roliço e de temperamento agreste que apaixonou os portugueses que somente tinham como horizonte o sol sobre o firmamento e foi este ímpeto aventureiro que a atraiu (isto apesar dos holandeses posteriormente terem colonizado primeiramente o que hoje identificamos como New York) encontrava-se numa aldeia que somente é possível descobrir no mapa em letras minúsculas mas que deu muitos homens ao mar onde se encontravam sepultados e as suas viúvas amaldiçoam-no isto apesar de terem sido desde que nasceram a sua fonte de rendimento a holandesa tinha o hábito de passear com a câmara fotográfica e pedia permissão para fotografar a preto e branco os seus vestidos negros que escondiam outras tantas saias talvez sete ou mais e uma sorria e revelava uma dentadura postiça desgastada e o rosto enrugava-se tal terreno que estava a sofrer um cismo e os olhos castanhos parcialmente cegos olhavam para a objectiva sem a ver na sua totalidade e através desta subtracção somava o que restava e compunha a imagem da jovem de cabelos louros a esvoaçarem lentamente como se estivesse a untar de beleza as casas humedecidas pela maresia e a velha encontrava um género de beleza que até aí desconhecia e que parecendo-lhe estranha rejeitava-a e por fim ouvia-se o click; Dino D` Santiago faz-se acompanhar por três mulheres africanas que se encontram atrás de teclados e de uma precursão digital vestidas elegantemente de branco estas são as responsáveis pelos instrumentais e pelos coros já o cantor é dono de uma voz segura que tanto tem um timbre assertivo quando se expressa em português ou em crioulo e esta língua é que domina algo consentâneo com os géneros musicais africanos que cita ou que estruturam as canções synth que são de um equilibro tal elegância sublime a somar a isto o desempenho inexcedível dos músicos que quase ou nada pararam como se estivéssemos numa ilha onde somente o que interessa aos ilhéus é dançar mas numa discoteca imaginaria e isso é proporcionado por uma candura subtil dos ritmos que por vezes eram mornas ou coladeiras e é este folclore que oferece ao Dino D`Santiago uma origem musical e consequentemente uma herança que é de uma riqueza rítmica e de alma tolhida por uma estranha saudade e antes de cantar à capela “Sôdade” (popularizado pela Cesária Évora) se atreve a descer do palco e a invadir o Espelho de Água que o separou do público durante uma hora mas tal não foi impeditivo de o instigar à dança e a receber severas salvas de palmas e descalço canta por entre a água como se estivesse a fazer uma ponte cultural entre dois países que muito têm em comum (somente épico); e a jovem enrolava o rolo e ouvia-se o respectivo som analógico e prosseguia a meditar sobre o passado destas mulheres que se tornaram em símbolos obscuros da castidade que representava uma dimensão absurda de fidelidade assim como um choro ou lamúria em pessoa com corpo gordo em pardos saiotes sujos de peixe fresco eram estas as sua vizinhas mais próximas do local ermo onde habitava num lógica de auto-sustentabilidade ecológica e cresciam rabanetes e outros tubérculos que os moldava em figuras de bonecos de trapos e numa parede isolado uma reprodução das sete versões dos “Girassóis” do Van Gogh e perguntava-se como era possível que uma obra de arte fosse tão ou mais representativa da realidade que sob a perspectiva do génio holandês as flores se deveriam encontrar num vaso com pétalas de amarelos de diversas tonalidades e com pinceladas sobrepostas que lhe ofereciam uma dinâmica que era de uma beleza hipnótica que a seduziam e a levavam para junto dos seus familiares que pernoitavam em Haarlem numa casa barco num canal mas tal imagem evaporava-se e misturava-se com outras que subsequentemente se processavam sem que tivesse noção que tal está a ocorrer e focaliza o olhar sobre o quadro e reencontra uma calma que a nutre de uma satisfação saudável e colocava a sua mão direita sobre os seus lábios e beijava-a e fixava-a sobre a reprodução dos “Girassóis”.

Dino D`Santiago, 24 de Agosto, Espelho de Água- Preguiça, Figueira da Foz.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Música e Músicos Modernos

Portanto receio acabar de escrever esta canção porque se tal suceder a sua memória seria um silêncio interior que era um vai vem de dentro para fora e vice-versa que me provocava um desequilíbrio existencial como se este fosse as minhas mãos ou pés e até pénis ou calçava a saia e vomitava nos ténis se me ouvia com atenção não tinha a certeza de quem é que estava ao comando da nau de velas desfraldadas a navegarem com destino incerto talvez alguém conhecido nos bordéis universitários ou se calhar um mero justiceiro que via nascer um prazo que se prolongava infinitamente e ou possivelmente o autor de tramas fundadas na paranóia crítica não sei se tais eventualidades se aproximavam de meras máscaras que de transparentes revelavam uma distorção com feedback que se aglomeravam em redor de dúzias de figuras naturalmente disformes que se socorriam do meu oxigénio para viverem como se fossem uns parasitas íntimos que me manipulavam segundo caprichos horrendos que se digladiavam com mandíbulas de tubarões famintos por carne humana pela minha alma essa luz obscura mas bela segundo as normas do tenebrismo que era constante mesmo à luz de um dia de Verão numa tempestade perpétua e era este ciclo que se fazia passar por algemas que me cegavam perante a eventualidade de um abismo que seria o último e por isso o mais perigoso e tentava esquecer e fazer desaparecer essa constância prolongando-a numa dose de alienadas injecções sobre a veia que se encontrava no meu pescoço e o sangue salpicava o Rei Artur que se fazia passar por um gato persa castrado para abandonar as fêmeas do seu harém constituído por adolescentes imberbes que a partir dos seis meses estavam activas para procriarem mais gatinhos; Mundo Segundo e Sam The Kid são dois MCs que se fazem acompanhar por dois Djs de renome e a relação entre as duas estrelas é a da simbiose ou mais concretamente de uma intercalação quase perfeita que passa por um ter o predomínio de rapar sobre o outro que é secundário e as rimas encaixam-se nos beats que predominam sobre a melodia (que raras vezes se fez presente) e o ritmo que imprimem é rápido não só o das canções hip hop como na sequência de umas para as outras (quase) sem pausas e esta chega a quase uma hora de show quando os Djs se mesclam em ritmos diversos e regressa o ritmo e as rimas que se plasmam segundo uma lógica do senso comum que alterna entre eu bom versus o(s) outro(s) mau(s) (uma perspectiva infantil de reconhecimento da realidade) as que versam sobre rivalidades entre MCs são muito pobres porque revelam um ego que é meramente competitivo e nessa medida destruidor e por fim as narrativas que remetem para a adolescência ou um amor chamado “Sofia” são derivativas de uma lógica näive e a envolver estes elementos estruturalmente encontra-se um moralismo que se limita a criticar os moralistas detentores do poder na sociedade e é este paradoxo que afunda as rimas e consequentemente as canções para o nível zero da estética hip hop (nota negativa onde decorreu o espectáculo que tem um lago entre o palco e o público algo mais adequado para o jazz ou a música clássica e a moderna); e temia que o efeito fosse imediato e letal mas jamais se concretizou a sua vertente funesta violenta e venenosa língua a sugar-me em definitivo para o exterior por vezes tremia e as palavras tremiam imersas num signo que não se revelava com a força que lhes estavam contidas e derrapava num jogo de representações inócuas que somente afundavam-me para uma sonolência que provocava a dispersão de um eu que jamais respondia a questões que o deixassem de rastos caso contrário o paciente (isto é) eu ou talvez um outro eu ou tantos quanto diversos não desapareceriam antes assimilavam-se aos palhaços da fase rosa do imortal Picasso que os transformou em tristes figuras circenses se me deixar cair no engano de uma falácia instituída por quem detém o poder no interior deste país de órgãos nucleares outros são meras pontes que fazem passar nas suas portagens a toxicidade e não percebo como é que ainda tenho corpo ou melhor nem sei se este ainda existe isto segundo os cânones da saúde e bem-estar que obriga a respirar a um ritmo relaxado para iluminar a dopamina e limito-me a contorcer-me como se fosse uma raiz de um plátano destinado ao abate por parte dos defensores dos animais e por isso reviro o olhar para tentar focalizar sobre quem se diz o meu patrono esse que me parece viscoso de tão nojento que tem o poder nas assas brancas que em tempos ou se calhar foi ontem cristalizaram sobre os ombros de vidro de um busto da Rainha Isabel II que se assemelhava aos acordes destrutivos de um hino que a decompunham num retrato de peças que encaixaram num carril que une numa soldadura uma ilha velha egoística e miserável onde cresci vizinho de boxers famintos que snifavam o que me ofereciam.

Dia Mundial da Juventude (Mundo Segundo & Sam The Kid), 13 de Agosto, Espelho de Água- Preguiça, Figueira da Foz.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Corpo-Delito na Sala de Espelhos

As sombras jamais vitoriosas ocultas no interior de túneis de vidro fosco sossegam perante a fluidez de luz que lhes percorre os contornos negros e cinza e parece que tremem ao serem consumidas pelo crescer do dia e temem que isso suceda mas tal é inevitável porque falta-lhes o corpo para lhes dar vida e nessa perspectiva a tragédia dá-se e os seus contornos estreitam-se lentamente até desaparecerem e quando a madrugada se emancipar da noite o processo repete-se e a dor ressurge num fluxo que se reduz ao poder cego do Sol porém nos dias cinzentos são as sombras que dominam o dia e a noite ao perturbarem os sonhos dos que ainda sonham mesmo que pareça mais uma banalidade imposta pela vida e nesses dias de Outono reina a incerteza sobre quem sobraçara a um pesadelo que de repetido se confunde com a rotina de serpente no advir de outra com sete cabeças que é somente uma múltipla e eloquente vivificação de um coro polifónico e por isso hipnótico que se arrasta como se fosse uma memória que ruidosamente se prende às torrentes que ressoam sob a terra marcada por cal que desenha uma silhueta de contornos helénicos em que sobressai a cabeça de uma mulher de tronco inclinado e sem braços de cabelos encaracolados marmóreos que se aparenta a um principio de beleza proponho que se materialize em sombra e se transfira para um outro tempo em que o que decorre é da ordem do abstracto e nesse espaço que se lhe faça justiça e se erga a estátua da liberdade da beleza e se subjugue o ogre à sua condição de artigo decorativo utilitário e se institua uma outra desordem com um lastro de destruição; faltam umas horas para o início do concerto dos GNR na Gafanha da Nazaré localizado paralelo a um canal onde está atracado um navio que pode ser visitado mas o que de facto é perturbante é a chuva que não cessa assim como o vento frio e já no palco encontro dois roadies que ficaram a assegurar o backline dos GNR que se encontrava coberto por diversas telas e a conversa versa sobre aspectos diversos sobre a vida na estrada e o relacionamento com as estrelas pop nacionais e internacionais e a chuva e o vento continuam a bombear sobre o palco e instala-se a eventualidade do concerto ser cancelado e às dez da noite ninguém explica aos poucos presentes se haverá ou não concerto e esta resposta somente é dada às onze quando a protecção civil dá o aval a que se realize o show mesmo que pareça que está a decorrer uma tempestade e os GNR estão no seu camarim a estudar os riscos inerentes a tocar sob tal temporal e por fim sobem ao palco sem a intro habitual “Decapitango” e ejectam a dançante “Impressões Digitais” prosseguem sem que lhes seja adversa a chuva que afasta algumas pessoas que desaparecem e o que já era exíguo ganhou uma dimensão de pequenez de guarda-chuva abertos e há quem grite durante as canções “Rui Reininho és o maior”que são executadas segundo numa perspectiva que sublinha o rock em detrimento da pop que também se vê contaminada pelo rock e é nesta deriva que os GNR são divinos porque transformam algo que não lhes é tão familiar (o rock) em algo graciosamente urgente e por vezes de uma beleza atroz e nessa violência por vezes soft outras hard que se registam os clássicos como “Dama ou Tigre” ou “Mosquito” que é tempero dos trópicos e que encerra o concerto isto apesar dos inúmeros apelos para que voltem e o encerrem com “Dunas”; que reconstrua uma outra realidade constituída por sombras imunes à vida e nessa escuridão irromperiam verbos estranhos pois sobrepostos semelhantes a uma tempestade telúrica que transporia o pulsar de uma natureza enraivecida num gutural e distorcido grito seguido por um intervalo fúnebre similar ao negativo de uma fotografia em que se identificaria a turbulência das sombras e num segundo alguém sufraga que tudo e todos sejam inertes e após esta sonolência a matéria orgânica irrompe da prisão como algo imprecisamente sedutor que se instala sobre o firmamento tornando-o irregular se fossem ameias de um castelo encantado estariam personagens infantis manipuladas por adultos com vozes horripilantes numa representação de amor de perdição com final feliz para sossegar as crianças sobre a condição estranha dos sentimentos e a luz no exterior é tão cinzenta que cobre a paisagem campestre com um bucolismo quase romântico onde imperam sombras que se assemelham a árvores que se insurgem contra as mutações ditatoriais da temperatura ambiente e à sua volta decorre a marcha dos que lutam por uma outra guerra que não a que irão enfrentar a que seja por uma paz que se assemelhe a um silêncio do qual irromperá um outro Mundo.

GNR, 7 de Agosto, Festival do Bacalhau, Gafanha da Nazaré, Ílhavo.