terça-feira, 15 de abril de 2008

Caged.Uncaged

A veia é espetada por uma agulha grossa e o sangue é consumido por uma narrativa violenta do Conde Lautréamont: “Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos em que viveu feliz. Está dito!” Na bondade: “Apercebeu-se depois que havia nascido mau”, protegeu-se, “escondeu o seu carácter tanto quanto pôde, durante um número grande de anoss”, é a maturação da voz de Maldoror, a besta que hipnotiza o inconsciente. O “Herói (pt.1)” subjuga-se às leis: “Quando beijava uma criança de rosadas faces teria gostado de lhe arrancar as bochechas à navalhada, e te-lo-ia muitas vezes feito se a justiça, com o seu longo cortejo de castigos, o não tivesse sempre impedido.” Mas, “não era mentiroso, confessava a verdade e dizia-se cruel. Humanos ouvis?? Humanos ouvis?”, Maldoror corta a emissão sonora e anula a harmonia do ecrã, que é uma torre que sustenta o baterista, à sua direita, teclados, do lado oposto as guitarras e o contra-baixo erótico Man Ray. O herói projecta o seu rosto, através de uma micro-camara para esta tela, exibindo a sua macrocefalia e desloca-se lentamente para a direita: “Depois, de repente, no momento em que ela menos espera, enterrar-lhe as unhas compridas no peito mole, de modo a que não morra!”. A crueldade sanguinária é associada a uma vertigem com destino, ao céu escuro, lusco-fusco, negro, vermelhos pintados por Fancis Bacon que conspurcam “Maldoror”. Encenada por António Durães, representada pelos Mão Morta, apoiam a detonação verbal de Adolfo Luxúria Canibal, que acendeu um cigarro que troca com António Rafael, no Cine-Teatro de Estarreja. Maldoror veste um fato de pássaro de palácio transatlântico, os músicos da corte são bonecos de madeira que escavacam os braços nos instrumentos, agridem-nos em cada melodia numa circularidade claustrofóbica, doente. “Entretanto uma mulher nua veio deitar-se a meus pés”, a balbúrdia, que não é anunciada pelos acordes do piano: “fiz um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias”, “´não é de mim que vem esta ordem suprema.` Uma vasta luz cor de sangue, em face da qual me bateram os dentes e os braços me caíram inertes, espalhou-se pelos ares, até ao horizonte.” Dominado pede à Maria Madalena, “e eu para ela, de rosto triste ´podes levantar-te.`” A exaltação petrarquista da beleza dos seus “ombros de mármore” que Maldoror agride com os dedos espetados no cérebro quente, “privar-te do espectáculo do universo, e pôr-te assim na impossibilidade de encontrares o teu caminho, não serei eu a servir-te de guia”, agarra-lhe pelas pernas e gira-a à sua volta como uma “funda” e lança-la contra o muro, a guitarra percorre todo o drama, agudizando o minimalismo, assinalando a reencarnação como ciclo milagroso a obliterar. Maldoror capitaneia um galeão que se afunda “majestosamente”, os náufragos socorrem-se uns dos outros e afogam-se na imensidão de um aquário servido por um garçon tétrico. “Afunda-se lentamente”, e explica a sua condição, “fora-me dado ser testemunha das agonias da morte de alguns dos meus semelhantes. Minuto a minuto, seguira os incidentes das suas angústias.” Na “Cópula” a dinâmica entre os instrumentos e as programações ganham densidade, tubarões rasgam-se mutuamente, com fome, morte alimenta-se da morte. Ah! O Conde narra: “Maldoror batendo as assas com os braços, e retiveram a respiração, numa veneração mútua, ambos desejosos de contemplar, pela primeira vez, o seu retrato vivo.” O herói na “Poesia” é um orador de salas de cabaret, “haverá nos meus cantos uma imponente prova de poder, por desprezar assim as opiniões herdadas”, movimenta os braços a comprometer a multidão com a auto-recreação, e bate num microfone de rádio com uma audiência de inúmeros e profícuos acólitos. As luzes inertes exaltam-se: “porcos quando olham para mim vomitam”, explodem em distorção: “estou sujo os porcos quando olham para mim vomitam!”, esta “Porcaria” que é a mortalidade, “uma víbora malvada devorou-me o pénis e tomou o seu lugar”, ah, “estou sujo! Os porcos quando olham para mim vomitam!”, e a alucinação enuncia-se, a que viria encarnar em Luiz Pacheco. A degradação da humanidade é sublimada num “Sonho”, blues de pendor fílmico de David Lynch, penetrante, angústia, as guitarras a declinarem dissonantemente a subir e a descer as escalas em sentido oposto, complementando-se, “tinha chegado finalmente o dia em que eu era um suíno.”? A besta encontra-se à solta: “Agora não havia mais constrangimentos. Quando queria matar, matava! E isso até me acontecia muitas vezes e ninguém mo impedia. As leis humanas perseguiam-me ainda com a sua vingança, embora eu não atacasse a raça que tinha abandonado com tanta tranquilidade. Mas a minha consciência não me acusava de nada!”. Renasce a síncope em “Escaravelho”, recolector da merda eterna, Maldoror reveste-se de barbatanas de tubarão, e escarafuncha no estrume. A pederastia defende-se: que a idade não diminui a intensidade do sentimento, numa vertente decadente, obliqua, onde o narrador é a personagem e esta todas as que a rodeiam “eu não gosto de mulheres! Nem mesmo dos hermafroditas! Preciso de seres que me sejam semelhantes, em cuja fonte a nobreza humana esteja assinalada em caracteres mais nítidos e inapagáveis.”. “Quem ma quer chupar, para me livrar dela?”, e, “até já assassinei um pedrasta que não se prestava suficientemente à minha paixão: atirei o seu cadáver para um poço abandonado e ninguém tem provas decisivas contra mim!” Maldoror procurava-os “desde a praça Royal até ao boulevard Montmartre”, “é preciso que não tenha mais de quinze anos!”, “sobretudo se és belo”. A narrativa é sumptuosamente negra, como os fatos de cerimónia de Maldoror e do seu séquito, exangues, o seu hálito sopra cadáveres, numa fogueira onde emulam “Maldoror”. “Está dito.”

“Maldoror”, Mão Morta encenação de António Durães. A partir do texto de Isidore Ducasse sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, “Les Chants de Maldoror”. Cine-Teatro de Estarreja 12 de Abril.