sábado, 27 de agosto de 2016
F
As escadas luminosas rolam na vertical e encaminham estátuas humanas para o portal de uma muralha que percorre o cimo de um monte. O scan lê no meu pulso o código de barras: 699900699900, e os anões dão-me licença que entre num recinto que em tempos serviu de fortaleza contra os invasores, fossem gnomos ou ackers de terceira geração; há um som contido que advém de um palco iluminado por luzes robóticas. Algures há uma fonte que expele lágrimas de mercúrio e encho o cantil e bebo sofregamente, sou uma pedra de pomes que absorve uma temperatura digital, sento-me num penedo de borracha e rabisco um poema infindável inspirado em Goethe, dou um pontapé numa bola que foge para o interior da terra do nunca. Oiço vozes de agrilhoados às drogas sintéticas que dão saltos como gatos perdidos num labirinto de onde não querem sair, falam línguas estranhas e tiram selfies com macacos abandonados por um jardim zoológico que faliu após ter sido adquirido por Kim Jong-un. Salto de ilha em ilha à procura da dos Amores mas parece que essa pertence a Camões ou será ao Rui Reininho? Ambos perturbam o meu périplo de saltimbanco incapaz de ler nas estrelas o respectivo caminho para a poesia, fujo de alçapões proscritos pela sociedade e de sombras que se dissolvem quando me tentam abraçar. Há um muro que poderia ser o das lamentações e que deveria ser demolido como de Berlin que está grafitado com a citação: “Achtung Baby”. No palco do festival Forte encontra-se um representante dos Cabaret Voltaire, que na primeira canção recorre a um beat repetitivo, sobre o qual se repete o termo “yeah!” como se fosse um eco de uma satisfação imediata, um snif de cocaína ou o trago de água gelada; esta relação é acelerada e o que antes se destinava a fazer dançar esqueletos intoxicados, é transformado numa música para homens máquina. Pausa. Reintroduz a equação anterior mas misturado com som agudo que dada a sua permanência é quase dilacerante, assemelha-se às ondas sonoras de baleias perdidas num oceano minado por sacos de plástico do Continente, “Yeah! Yeah!”. Pausa. E uma voz afirma: “I used to play with her when I was a kid”. A segunda canção apresenta-se através de um ritmo lento mas curto que a espaços ganha o peso de um beat digital, o baixo dança intercalado por um sintetizador que remete para Madchester destes dois sobressai o segundo num culminar de retro synth. A terceira canção é uma sucessão de breakbeats curtos repetitivos a que se soma um som digital continuo. Após a pausa, reinsere o esquema anterior mas que é vilipendiado por uma guitarra semi-distorcida; a estrutura mantem-se mas com um beat acelerado e pesado, a guitarra…. A quarta canção tem um breakbeat repetitivo oxigenado por um sintetizador-retro (fuzz) que progressivamente ora é denso ou transparente como o véu de uma gueixa. A quinta canção tem uma voz masculina processada associada ao breakbeat, sobrevém o solo de uma guitarra eléctrica, e ouve-se novamente a voz masculina com a máscara de uma alma maligna. Esta equação é repetida com variações rítmicas e decomposições da melodia soturna, como se de um quadro do Bacon se tratasse: a que o rosto distorcido lhe fosse retirado as cores negras ou os ocres e vermelhos sangue, não é um jogo de espelhos mas a assumpção da ilusão que a vida proporciona. “Two o`clock in the morning”. A sexta canção é iniciada pelo eco de uma voz masculina e uma batida curta e forte força a que a multidão abane a cabeça ou levante os braços; o breakbeat é contraproducente mas gradualmente entra naturalmente no ritmo dos humanos e alimenta o ego aos cyborgs; ecoa uma voz fantasmagórica masculina seguida de uma feminina; o breakbeat é curto e intenso e acelerado ouvem-se as vozes robóticas num jogo onde imperam os preliminares de uma relação entre cegos. O beat é a imagem de um falo a penetrar uma vulva “now a days”, as congas criam um quadro de um spa mexicano com cocaína em salvas de prata espalhadas pelo quarto e garrafas a espumarem-se para dentro do frapé; a multidão delira com a imagem divina; o ritmo aumenta. Pausa. O beat é ainda mais intenso, ouve-se a voz masculina como se fosse uma gargalhada pós-coito, e gradativamente desacelera e denuncia a sonolência dos amantes. A sétima canção é dotada por um breakbeat espaçado, surge um bombo e um som de um baixo eléctrico; o Dj isola o bombo e uma distorção intromete-se; bombo versus distorção; o breakbeat é espaçado e sobrevém o bombo e o baixo eléctrico. Pausa. O bombo transforma-se num breakbeat minimal, intercalado por um sintetizador agudo e grave; reintroduz o breakbeat espaçado com o bombo e o baixo, e seguidamente decompõe estes elementos. A oitava canção é anunciada por uma voz enigmática “yo talk”, “teenagers”, “secret depart to the universe”, “members of the…”, “members of the special fires”. Pausa. As palmas seguem o ritmo sobre o qual surgem sons digitais e vagas do toque do telefone que progridem lentamente, “special”, e prolonga-se como uma tempestade radioactiva que se transforma num fogo de artificio, “for example”, “just”, “photography”, “in fact”, “Mick Jagger” e a turbulência é tão poética quanto enigmática e surge o silêncio ignorado pelo coração da multidão.
Cabaret Voltaire, 25 de Agosto, Castelo de Montemor-o-Velho, Festival Forte.
Cabaret Voltaire, 25 de Agosto, Castelo de Montemor-o-Velho, Festival Forte.
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