Apago o que escrevi porque era como um hit de uma banda pop que almejava o
sucesso através de uma canção medíocre que perdura nas playlists das rádios
locais um dia quiçá tenha possibilidade de reescrever as notas sobre esses dias
de isolamento com a minha família em que descobri que a minha mulher não lia
apenas se sentava em frente da televisão a consumir lixo doméstico não se
incomodava com a sujeira alheia porque isso era da responsabilidade da
mulher-a-dias e a argumentação era que se descartava a esse papel de servil
estava concentrada a passar o tempo ao telemóvel com a sua melhor amiga e
conversavam ao desbarato como se apenas tivessem o prazer exclusivo de
partilhar os seus acasos sentimentais mais íntimos perguntava-me o que fazia
neste apartamento com esta mulher em que identificava uma outra pessoa pela
qual nada sentia ou talvez repulsa mas essa tinha que a ocultar para evitar que
possa despontar uma zanga que nos separe nesta altura em que dominava a
quarentena e os dias são por vezes interrompidos por questões que a perturbavam
a principal era encontrar-se numa idade ideal para engravidar e referia-se a
este assunto através de inúmeras variantes dia após dia como uma obsessão que
poderia ter o poder de engravida-a mas o facto de ignorar quando acabará esta
pandemia angustiava-a e impedia-a de processar a gravidez era recorrente
ouvi-la a vomitar na casa de banho com uns enjoos ilusórios e de camisa de
noite parecia que vestia roupa de grávida ah tanto desejava que a barriga
crescesse para se sentir acompanhada na sua solidão orgânica e que daí surgisse
a flor de lótus para que a pudesse regar no Verão; a banda de Coimbra From
Atomic apresenta no Salão Brazil “Deliverance” o seu primeiro testemunho e
contributo à música pop e o trio apresenta um primeiro conjunto de canções
infectadas com um químico agridoce com inúmeras e sublimes progressões que
remetem para algo etéreo mas substancialmente dinâmico dada a sua vibração que
conduz a consciência para outros domínios até aí estranhos à sua existência
quanto à segunda série de temas acentuam o rock e a pop num jogo que balança
entre o abismo e o precipício evocados por uma voz tão fantasmagoria quanto
sensual da Sofia Leonor para finalizar há que realçar que estas duas premissas
aqui decantadas estão emolduradas por uma equação negra que simultaneamente
lhes confere contemporaneidade e as agrega à década de oitenta do século vinte
uma memória que é mais descartada na segunda leva de canções e por isso elevam
o concerto a um patamar esteticamente mais glorioso; mas esta encontrava-se
presa a uma malha de incertezas poderia ser que estaria mesmo grávida e que
daqui a pouco eu estava a contemplar alguém tão breve na vida os primeiros
espirros e o choro de três em três horas mas olharia para a minha mulher como
um mero veículo acidental para procriar porque assim era o seu desejo desde que
por acidente nos prenderam a estas paredes brancas com fotografias de viagens a
lugares paradisíacos como Balí e a Islandia o estranho é que não me reconheço
nessas memórias mas por outro lado tenho a certeza de quem eu era por essa
altura a vivenciar rotinas estabelecidas pela sociedade como uma experiência
única e nessa desintoxicação reafirmava o meu amor eterno aliás como o eterno
do eterno nesse período escrevia umas quadras avulsas tão populares quanto
desconcertantes que lhe dedicava cada sílaba molhada ou com acne fosse como
fosse quem é esse tipo que se encontrava em Barcelona a passear de mão dada com
essa mulher que me orientava pelas ruas góticas e fotografei as gárgulas para
se um dia tal como o de hoje as possa rever num álbum em que imperavam os
elementos arquitectónicos era frustrante ir ao encontro da sua predisposição
para se silenciar para agudizar a minha angustia de que estes dias não tinham a
rotina que vivenciei desde que tive consciência de que existia e se me
encontrava ao espelho descobria pequenos cortes no meu rosto talvez amanhã nem
repare que estava dramaticamente mais velho e essa irreverência dava-me ânimo
para suportar a presença da minha mulher que de tão picuinhas aparentava ser
absorvida por uma perfeição que era estipulada segundo um critério do qual
determinava as regras do jogo psicológico e eu era o seu querido aluno
predisposto a encarnar um bom aluno para que ela se sentisse feliz por se
julgar uma princesa e este pedestal acalmava-a e suavizava a nossa relação
desgastante somente o lugar-comum era-lhe passível de ser valorizado como
raciocínio era fácil cativar a sua imaginação desde que estivesse associada uma
época idílica onde pudesse reinar.
From Atomic, “Deliverance”, 25 de Julho, Salão Brazil, Coimbra.