segunda-feira, 12 de julho de 2021

The Mental Traveller

Os critérios de divisão estão soterrados no ciclo do qual florescem os crisântemos veja-se a lua curta breve monopolista do temperamento dos bichos alguns terrestres outros extra-terrenos se simbolicamente me ultrapassa e se transforma numa luz que cruza a noite e dá-lhe um tom de pérola selvagem que cavalga os campos e lhes confere uma outra soberania que somente o ministério do mester é competente para tal e lhe inverter a cor e dar-lhe dia essa luz que aparentemente mostra ou demonstra que o divino é infinitamente um toque um sopro uma tempestade um terramoto ou uma borboleta a cheirar uma flor a alimentar-se do seu pólen a elevar a beleza do movimento lento das suas asas a um píncaro que não é perceptível nem pela suavidade da primavera estação do ano inventada pelo homem esse que tem que incutir lógica à lógica caso contrário a desordem será um eterno e desolador pretexto para abraçar uma ideia suicida um pecado mortal bastas vezes ignorado por quem censura tal acto ou facto que se resume a uma vida longa ou breve quem sejas que faça a respectiva contabilidade se o que me falta de vida é tanto quanto o que me faltava enquanto criança e acreditava nos búzios que tinham Nero na voz e no hálito no Inverno a neve somente flocos de esferovite de uma caixa de cartão de presente de Natal “deixa os anjos” pedia a minha voz “deixa os anjos dormir quantos mais dormirem mais paz terás na tua vida o que é que desejas mais meu amor?”; Rui Reininho estreia em Viseu nos Jardins Efémeros, “20000 Éguas Submarinas” o seu segundo longa duração a solo, acompanhado por quatro músicos um dos quais é Alexandre Soares que fez parte dos GNR (banda que o Rui Reininho ainda lidera) e um outro que esteve na génese deste novo álbum Paulo Borges. O concerto versa musicalmente inúmeros campos estéticos: seja a música concreta, o minimal repetitivo, o free jazz, a música oriental, e o psicadelismo, o minimal progressivo, a new wave, estes são os que se delineiam com maior assertividade no núcleo de cada uma das canções que fogem à estrutura pop/rock; antes, são erguidas através de uma estrutura heterogénea em que inclusivamente o universo oriental é reinterpretado de forma a transcorrer uma nova universalidade, que permite ao ouvinte divagar através de um psicadelismo que é sedutor mas simultaneamente causar-lhe-á alguma estranheza por derrubar a ignorância e ou o preconceito, este até poderá recair como um anátema sobre a poesia surrealista de Rui Reininho que é em spoken word ou entoada e ou declamada de forma sóbria e consistente mas paradoxalmente espectral, Rui Reininho é o detonador do psicadelismo esotérico que causa espanto por ser tão sedutor quanto genial; oiço-a e toco o seu rosto lívido marcado por vales e sombras densas talvez ela seja um fantasma um lençol branco a secar na corda bamba das manhãs de Verão tão ao vento e tão quente que o meu toque em nada toca somente sente o seu calor humano que me parece uma recordação dos tempos em que num deserto onírico ela orientava as ondas para que irrigassem as suas pernas cadavéricas onde se enrolavam as algas que não eram mais do que os cabelos soltos de Nero dá-me força para cantar como um rouxinol ou como uma sereia que atrai-a os marinheiros esses errantes que dos mares apenas trazem lembranças inesquecíveis de mulheres de vidro frágil que se tocadas como se fossem violoncelos poderão ter um orgasmo “glória glória aleluia” pergunto à outra dama das virtudes se faria o mesmo em nome do prazer tal acto como num grito soturno de liberdade para que abandone o seu aspecto espectral que lhe confere uma fragilidade que é usada por todos os outros como forma de a subjugar à ditadura das éguas submarinas a cavalgar ou deixarem-se montar por Neptuno que tanto gosta das suas crinas imortalizadas em epitáfios a poetas que tal como eu são dignos de constarem numa pedra sabão para que a efemeridade seja dona da eternidade e que de nada daí resulte sejam versos coroados de grandes e diversos feitos onde o sangue os une e transforma as epopeias em tratados de guerra em nome de Deus que sem rosto ou com rostos de animais e de pessoas misturados de animais que sobressaem nos baixos relevos e onde se encontram relutantemente imortalizados tal como os desejos mais obscuros ou os desígnios que fazem com que o homem acorde durante a manhã e se considere tão vivo que se pode movimentar livremente por entre as ruas lamacentas sem se aperceber que é essa lava que o leva para um ponto que reconhece o fim mas que se assimilado poderá ser uma passagem para um outro encontro com outros seres vivos que se assemelham a uma outra consciência que de uma outra forma ou de outra o tentam manter vivo para que testemunhe novamente que a terra é um saco azul dominado por correntes que a prendem ao universo.

Rui Reininho, “20000 Éguas Submarinas”, 10 de Julho, Jardins Efémeros, Viseu.