terça-feira, 4 de março de 2008

A Ilha dos Amores

Há uma sereia ou fada anjo maternal de útero com proveniência de Cabo Verde. Uma arte ancestral de procriar uma voz excelsa de calor tépido e virginal. Na “Dispidida”, a terceira canção, apresenta-se no Pavilhão Multidesportivos de Coimbra, já espreita o solo de guitarra eléctrica. A cadência aumenta ligeiramente em “Nha Sibitchi”, num canto que se alarga na latitude e na longitude. Mayra Andrade apresenta “Comme s´il en Pleuvait” , “esta música é muito especial para mim, lembrei-me de contar história da D. Emília” recorreu à ajuda de “Tete, o autor da música”. A personagem diz-lhe um dia, no tempo em “que eu ia para a escola com o uniforme: ´sabes que no passado também fui uma princesa como tu”. Alguém do público dirige-se em crioulo e ela responde: com o estalar da língua, sorri evidenciando os seus dentes de marfim, cabelo solto e um vestido salpicado de veludo de topázio, apenas no tronco frontal, até aos joelhos cobertos por meias negras em salto alto de pedra vulcânica. “Não digam isso” e “já conheci em Portugal duas ou três pessoas que conheceram a D. Emília”, que caiu do pedestal quando “a sorte se virou e ela [teve que] pedir moedinha” e estende a mão direita. Ela conduz o público para um trance existencial em “Comme s´Il en Pleuvait” e a complexidade da métrica e, consequentemente, do ritmo, evidenciam-se como a encenação melodiosa do divino, a romper as margens da Ilha dos Amores, com a junção do acordeão de Celina da Piedade. O efeito é mágico e sensual. Abstracto e concreto. Se é blues ou jazz é fruto da nossa fantasia. A capturar uma baia tórrida em “Destino Maior: Amar”, ao deixar a voz deambular de cadência como se fosse uma gota liberta por uma nuvem aventureira que pernoitou sobre o Mindelo. O violão emula-se enquanto ouve a voz de Mayra Andrade, um dueto conjugal a verbalizar “Kem Ki Bem Ki Ta Bai”. Insurge-se contra o fado em “Alfama”, numa ousadia melódica hiperbólica e ainda assim delicada e respeitosa, pois não é tingida como antítese ao original, antes coloniza-a através da cadência que impõe as temperaturas ardentes de São Vicente. Em “Navega” pede uma guitarra emprestada e lidera o pulsar da estrutura musical, recolhe em si a liderança do comunicante empático, o cavaquinho ensimesma-se numa morna francamente efervescente. Que vê a “Lua” da Ilha dos Amores obter uma narrativa estilística suportada por um baixo grave e bateria eclética e as guitarras eléctricas? Ligadas à corrente que dá sangue aos nossos corpos.

Mayra Andrade, Pavilhão Multidesportivos de Coimbra, 29 de Fevereiro.