Abre-se uma porta do lado esquerdo do palco e entra a sombra do Nosferatu, flutua e senta-se num piano de cauda e teclado preto. Quando coloca as suas unhas sobre o instrumento, um arrepio percorre-o como se fosse uma tempestade vermelha, no lusco-fusco de um dia de Verão. O indutor é a voz de Diamanda Galás, que percorre as escalas que separam o agudo e o grave, numa projecção do belo e do grotesco: de onde pendem morcegos de narinas aguçadas, o sangue corre-lhes o corpo de baixo para cima, as asas de cartilagens grossas equilibra-nos no tecto da sala Suggia, de olhos fechados ouvimos a sua voz electromagnética, que nos faz esvoaçar e guinchar para instituir a dor. “Do you want to Kill me?”, o discurso é de uma Madonna de cabelos negros até a cintura, nariz aquilino e sobrancelhas carregadas, lábios ruborizados emanam o timbre alcoólico no balcão de um bar nova-iorquino. A mão esquerda domina a melodia e marca o ritmo, com mestria, que se mantém quando a direita a acompanha, por entre ambas a voz, “jamais vous cherchez, le rendez-vous”, numa indução violenta de tão delicada e agressiva por ser uma fatalidade. A quarta canção divide-se em três partes: o vibrato, encurta as frases e retalha-as sobre o ritmo binário, e por fim o grito de doze mil virgens, com os flashes a rasgarem as cores azuis e negras. “Ohh yeahhhhhhh, ohh yeahhhhhhh,” a voz auto-mutila-se e fere os tímpanos de pedra da sala rectangular, que se estende como uma ondulação estática. “Mil fois, je t’ai pris, mon amour”, ah oui, “je t`aime encore”, a força de uma soprano percorre a melodia soul perversamente, a confrontação de um canto antagónico no timbre, mas suportada pela melodia do piano. Nos intervalos Diamanda Galás, sorri e exibe um rosto cálido iluminado por um nevoeiro permanente, que nos conduz para a perdição do prazer utópico. “Yes Baby”, gritos, “Yes Baby”, gritos, e assim minimalmente num suicídio colectivo de uma seita com fins comerciais. Mergulha de “empty hearts, to empty hands”, suave e sereno, profundo, contido, sóbrio, humano, “no more tears to cry, no more tears to cry”. Levanta-se do banco e desaparece para a esquerda, para o panteão, ressuscita e aproxima-se da boca de cena e vemos o seu vestido de seda negra, decote semi-circular a evidenciar o seu colo que nunca bronzeou, com uma pregadeira a segurar lacinhos, que também pendiam das mangas rasgadas, sorri, e vocaliza “obrigado” numa encenação que nos permite espreitar para o interior da sua alma.
“Guilty Guilty Guilty”, Diamanda Galás, Casa da Música (Porto), Sala Suggia, 08 de Maio.