domingo, 13 de julho de 2008

As Vinhas da Ira

Dia de calor ou apenas estufa-fria variante de alcatrão quente, os comboios passam velozmente e acordam as gaivotas que cruzam o céu enviadas para limpar o lixo. As pessoas andam devagar num tempo preciso de submissão à temperatura ardente, fogo, fogueira ou sol onde ardem florestas de almas ou serão corpos no Tejo que banha paralelamente o cenário do Optimus Alive? Postos de abastecimento de Sagres, hot dogs, pizzas, W.C, e há mulheres vindas do estrangeiro, de vestidos de seda até aos joelhos, tops de alças, tops azuis, meias brancas, sapatilhas, saltos altos, pisam a terra batida que separa o palco Optimus e o Metro, pelo meio está uma área de dança, com palmeiras de bambu a imitar o harém do Rui Reininho, de branco a engatar uma adolescente de biquíni que dança sobre a lama. Perco a merda que trazia num dos bolsos onde o papel higiénico é riscado por uma caneta permanente vermelha para me recordar que sou mortal, sanguinário ou simples atrasado mental que não consegue sair da cadeira de rodas. Descubro as a.m.o.r , o duo mais sexy deste festival de ébrios, drogado, alucinado, disparo o flash sobre os seus sorrisos de adolescentes e melenas louras, beijo de despedida, amor? Há quem diga que estou aqui para ver os National? Há quem me cuspa na cara com o preconceito do costume? Envio uma mensagem mas as gaivotas perseguem os pombos para lhes comer a cabeça, excêntrico desejo? Concerto frio e distante, longe do oferecido na Aula Magna, mas com momentos para suspender no museu da arte efémera. Encontro rostos conhecidos que enterrei em Évora, numa peripécia que me levou seis anos de vida, a derreter o tempo para fugir dali, abraçar mar e por fim morrer. Equivoco construído com vista para um futuro perpétuo, relutante e promíscuo, acelero para longe deste precipício, que fere os ouvidos numa Eurovisão que vai ser ganha pelos Gogol Bordello, um número de circo com bailarinas e um violinista que abandonou as ruas de onde nunca deveria ter saído. “Is there someone who wants to fuck me? You can go backstage and I `ll fuck you!”, o vocalista dos The Hives repetiu esta private joke três vezes, e em cada uma delas tentei esgana-lo, partir-lhe a boca com umas botas de biqueira de cimento, para que não se esqueça de mim, aos mortos nada se lhes pode privar, vistam-me de homem aranha antes de entrar no forno, cuspam-me na cara se estiverem vivos. E cantem como Zack, dos incendiários Rage Against the Machine, que rappa contra Bush e toda América branca, preta, amarela, verde, vermelha, que tem o mundo como refém, violento, concentrado de distorção sobre ritmo funk.

Dia 2: Relutantemente escurece e apresenta-se a lua em estado de graça à espera de dar à luz. O vento insinua-se através de uma brisa discreta, suave que me arrepia a pele de caveira datada de 1972, fardo de tempo, peso, leve ou o contrario também serve desde que não peças mais uma música nem cerveja. Ser subjectivo gratuitamente e cair no poço da beleza, que venham todas as mulheres que me levaram ao epitáfio da poesia, e às linhas snifadas de um livro assinado por Cervantes, épico e burlesco, cada vogal ou consoante, verbo difuso utilitário, caixão de cartão para poupar as árvores que nos alimentam a respiração, tóxico solitário. Tenho amigo ausente algures num quarto a compor a melodia que nos falta ouvir, sitiado de máquinas que ouvem o pulsar, cavaquinhos e um megafone, de onde grita o seu nome: João Aguardela. As estrangeiras estão bronzeadas como se estivessem revestidas de uma película brilhante, apalpo e exala o perfume doce, rosto delicado de poesia convexa e sexo introvertido, húmida, um fungo exorbitante de hipérbole. Beijo-a no momento em que Bob Dylan sobe ao palco, com o seu grupo de amigos com os quais verteu umas garrafas de Jack Daniels, enrolou uns charros, e riu. Os meus apontamentos ditam o seguinte: esteve em pé no órgão, e cantou como se estivesse sozinho, as músicas tinham sempre a mesma estrutura, solo da guitarra eléctrica/solo da harmónica de Bob/ a banda atenta as deambulações do mestre, no encore cantou “Like a Rolling Stone”. Foi-se embora, não sei quem é ele, se é o mito se o cadáver do mesmo, enterrem-no de chapéu de feltro e fato preto com uma fita branca nas laterais das calças. Colocam no palco umas esculturas de anjos negros, cópias góticas, mas de esferovite para lhes retirar peso, é colocado um tecelão atrás do baterista e do teclista com um anagrama: Within Temptation, a distorção das guitarras é constante, entra em conflito com a voz etérea de soprano da cantora morena, de cabelos negros compridos, com um corpete e saia brancos, a sua silhueta é o corpo de uma estátua em movimento, que canta histórias da novela das seis da tarde, que o amante fugiu com outra na hora do altar e de enfrentar o padre e outras misérias rocambolescas, “today is my birthday” anuncia a soprano, parabéns.

Dia 3: No palco Metro, sob uma tenda rectangular acumula-se o pó que o vento forte levanta, em cada onda a toxicidade é inspirada, rodam copos vazios, as saias são violadas e os cabelos conspurcados. Um dos donos das roulottes encharca o chão com uma mangueira, algo que é insuficiente para fixar a terra batida, o frio colhe os ossos devagar e poderia fazer uma comparação com algo relutantemente tétrico, mas faz parte do jogo de representação, sou uma simulação de sentimentos, apenas me exibo para me curvar para receber as palmas. Na pista do harém do Reininho vem o tecno que os machos gostam de dançar e as fêmeas pavoneiam-se numa sublime contra-cena, o jogo de costumes que acaba num W.C portátil para anular com a ansiedade. Não sei onde deixei os livros de ponto, onde gravo os acontecimentos dignos de registo, para evitar a repetição e o facilitismo das frases feitas, e ultrapassar um bloqueio artístico. Abandono a angustia e leio sobre os Midnight Juggernauts: “palhaçada com sintetizadores nojentos, um trio de gajos que parece que não lavam os dentes desde que nasceram, não fazem a barba ou cortam o cabelo e as canções são tão más quanto a dos Europe, a única banda familiar nas redondezas deste grupo de vadios que agradam os estetas que ignoram os cânones do belo”, puff, que merda, e onde é que andas? Perdi-te no primeiro dia! Estou sentado a pensar em ti, escreverei um poema eloquente, algo que dissipe a fealdade deste cubículo, esteja o céu negro e o trópico a palpitar num telemóvel onde te escrevo a mensagem: vai começar a tocar a Róisín Murphy, a ex-vocalista dos Moloko, que troca de roupa de beat após beat, brinca com as duas coristas, canta, dança, nunca tira o chapéu, beat, beat, sem intervalos, vira o traseiro para o público, abana-o, beat, beat, abana, e provoca um aplauso generalizado, Róisín é chama inglesa, é elegante, é popless. Deixo-a a cantar e avanço pelo pó para o palco principal, onde está instalada a alma de Neil Young, canadiano que tem uma vida sofrida, quase morreu nas mãos de um aneurisma cerebral, tem um filho com insuficiência mental, e desde que pegou numa guitarra que anda a cantar sobre a verdade de John Steinbeck. Há um profundo humanismo nas suas canções, ao longo de décadas colocou-se no lugar dos trabalhadores, do imigrante ilegal, dos índios expropriados e vítimas das doenças venéreas e vícios dos brancos. Executou um furacão de solos que rasgavam as canções violentamente, mexia-se como se fosse o seu primeiro e último concerto, a hipnose surgiu gradualmente. Young fecha os olhos enquanto canta e a sua boca ganha uma expressividade extraordinária, salta, senta-se no piano e instalamo-nos na sua sala de estar, repleta de pianos velhos, instrumentos de percussão, slides-guitars, um dólmen, uma pomba branca de metal, e várias telas pintadas a óleo, recordações de estrada. “Harvest Moon” como aquela que está cimeiramente instalada entre o céu e o inferno e a vertigem dedilhada por Deus.

Optimus Alive 08! Passeio Marítimo de Algés, Oeiras, 10/11/12 de Julho