A tarde está tão copiosa que sentenceia um Verão de chama vã, que arde com as barracas na praia, onde se recostavam os conimbricenses e castelhanos, há mais de um século que é assim. Para que mudar? À porta do Palácio Sotto Mayor está um polícia, uma senhora muito bem composta e escuteiros, que entrega o bilhete para “Sentidos de Estado”. Uma colectiva de obras de arte provenientes do Museu da Presidência da República, que foi inaugurado por Jorge Sampaio, pouco antes de abandonar o cargo.
A exposição inicia com bustos em bronze de Manuel Teixeira Gomes, Costa Gomes, Ramalho Eanes, e a estatueta de Sidónio Pais, todas da autoria de Irene Vilar; já o de Cavaco Silva é em terracota e tem a assinatura de José Dias, Mário Soares pertence a colecção particular e foi Lagoa Henriques quem o esculpiu. Este grupo, é constituído por peças de cariz moderno, tecnicamente irrepreensíveis, e a matéria nobre eleva-as a peças de recorte clássico.
No capítulo do óleo sobre tela: António Spinola está fardado com as insígnias do exército, sentado num maple, sob os braços e sobre as pernas, tem um livro e do seu rebordo lê-se: “Portugal e o Futuro”, obra que assinou e que causou impacto em 1974. Atrás de si, a perspectiva encaminha-nos para uma parede cinzenta, discreta que pretende sobressair o antigo chefe de Estado, do pós-25 de Abril. Tem uma dignidade inerente à sua postura, e o seu olho direito coberto com um óculo, empresta-lhe um pormenor excêntrico. Está datado de 1988 e assinado por Jacinto Luís.
Paula Rego é de facto um génio. As suas pinceladas transformaram um homem frágil, inseguro, desatento, palavroso para esconder o excesso de fluidez de ideias, num Presidente da República: Jorge Sampaio que teve a coragem de destituir um Primeiro-Ministro, incompetente com laivos de egocentrismo ditatoriais: Pedro Santana Lopes. Sampaio está sentado num cadeirão de veludo e de madeira banhada a ouro, atrás de si um pano verde, as cores nacionais cobrem uma mesinha, do lado esquerdo do Presidente, onde abre os olhos a República. Parecem meia dúzia de traços, em que Paula Rego engrandece Jorge Sampaio, apesar da leveza das pinceladas, como se o óleo e a tela estivessem omnipresentes.
Não se encontra o famoso retrato de Pomar a Mário Soares, em que este tem o rosto feliz e a mão direita levantada, e os traços a fazerem sobressair o seu corpo engravatado. Mas apenas um grande plano do rosto redondo do ex-Presidente da República, de Júlio Pomar.
Numa sala está um serviço de mesa: pratos e copos com as armas de Portugal, terrina no centro da mesa, salva e candelabros de prata, sobre uma toalha branca, poderíamos imaginar a receber Ceauşescu ou José Eduardo dos Santos, Reagan, Kadafi.
Há presentes oferecidos aquando da viagem ao estrangeiro dos representantes do Estado. Do reino do Gabão, uma figura feminina em pedra e ouro. Medalhões com a esfinge de João Paulo II. As estrelas deste grupo são o presépio oferecido por Yasser Arafat, em madeira de oliveira e madrepérola, e uma salva de prata de dimensões generosas comemorativa dos 500 anos de independência do Brasil.
A partir deste ponto em diante a colecção sublinha o óleo sobre tela de Eduardo Malta, que colocou num varandim Oscar Carmona, que tem Lisboa atrás de si. Obra de elegância e astúcia extrema, conjugando perspicazmente as cores quentes e frias, sumptuoso, brilhante dado o equilíbrio entre o retratado e a capital.
Apresenta o busto de Teófilo de Braga, Bernardino Machado, Manuel Arriaga, como se o curador desta exposição fecha-se o círculo da narrativa. Apenas abriu um posfácio nas viaturas que se encontram nas cavalariças: duas carruagens provenientes do Museu Nacional do Coche, e Mercedes Benz 600 S de 1966, Citröen Prestige CX de 1986.
“Sentidos de Estado” é um agrupamento sintético das obras pertencentes à presidência. Que permite uma aproximação à história da República, espelha Portugal através de elementos simbólicos, ou, representa os gostos dos Presidentes da República, e consequentemente o dos portugueses, naturalmente sóbrio e austero.
"Sentidos de Estado", Palácio Sotto Mayor, Figueira da Foz, 5 de Setembro, patente de 21 de Julho a 5 de Outubro.