As sirenes da patrulha dos militares, ouvem-se, assim como as pás de um helicóptero que está suspenso sobre o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz. Ninguém sai dos seus lugares estofados de tecido castanho, a temperatura é elevada, e sobe com o pano iluminado de azul, e ao abrir-se, descobrimos Ney Matogrosso sentado numa chaise longue, vestido com uma malha vidrada e uma touca com plumas em cada orelha. Abre a sua boca e a voz límpida e incisiva de um guerrilheiro que tem uma “metralhadora cheia de carga”, “eu sou mais um cara”, “o tempo não pára!”, “assim se ganha mais dinheiroooo!”, a raiva da guitarra eléctrica sublinha o dramatismo da canção. Agradece as palmas, “obrigado, boa noite”. O slow é marcado pelo piano, que dá densidade ao, “sou um homem, eu sou um bicho, sou mulher, sou cadeira e a mesa neste cabaret, sou o seu lugar no Mundo!”, a guitarra corta transversalmente a melodia, “sou o certo, sou o errado, o que divide”, esvoaça, coloca-se de joelhos, “na cama”, saltita, vira costas levanta os braços e convida-nos para a “cama”. O tango, tanguei-a, tange-se, toca-nos, dança, dança, “ser feliz não é uma questão de talento”, “o vento leva a gente”, e Ney Matogrosso baila às notas da guitarra acústica, e pára, e tudo converge à sua volta. No quarto tema, o caminho percorrido é a soul da década de setenta, e o drama ressurge “para poder, para poder, comer, dormir”, é o amor que não preenche “a minha tarde vazia”. Tira a touca, veste colares, põe a touca, coloca-se sobre uma pequena rampa, que se encontra entre os percussionistas e o guitarrista, e o teclista e o baixo, excelentes, nota acrescida para o guitarrista. “Onde está você meu amor? Eu preciso de um pouco de calor”, há desespero, medo, “onde está você meu amor?”, a tragédia, “meu carro que não quer andar, essa noite que não quer terminar”, angústia, narrada no singular. A tepidez surge numa interpretação sóbria, aguda, e chega a arriscar “uma fuga contra o tempo”, que “não tem fimmm”, “onde está você? Meu amoooor”. “Eu preciso um pouco de calor, de CAaaaloOOOrRR!”. Abana as ancas, levanta os braços, despe-se ao ritmo das palmas, olha o público fixamente, para ter a certeza que o estão a despir. Vira costas e o teclado leva-nos para o Egipto de mulheres exóticas com cabeça de esfinge, hipnotismo-sensual, é o delírio, uma intoxicação colectiva, “o tempo que antecipa o fim”. O Blues ensimesma-se e Ney deita-se na chaise, levanta a perna da esquerda, as duas, e exibe-as como se fossem de uma anúncio da Coca-Cola para animar as tropas americanas que chacinaram o Vietname e o Iraque, excitante, afrodisíaco? Abre as pernas e canta, “que venha cedo e que abra a porta devagar, que abra a porta devagar, devagar”, levanta-se, “me aperta furiosamente”, filtra com o baixista, “prometo te deixar”, de joelhos na boca de cena. Este pássaro exótico por ser pessoa, viaja através de África, não procura nada, apenas uma batida tribal, com as precursões a marcarem o ritmo e Ney delira, “o que eu quero é ser velho”. A rumba em castelhano “estoy usando mi condena”, “tu sonrrisa como bandera”, “la eternida de las peleas”, os coros: “lo que será, será, será”, o assobio sobre o ritmo, surgem vozes da selva amazónica, despe o tronco e… Regressa ao português e a história é a de um cavaleiro, “ele é filho do vento, é filho do mato”. Solo hard-rock, abre a canção, cheira a bar de alterne, “a noite nunca tem fim”, é a constatação, a reprovação: “porque é que a gente é assim?”, aventura-se por entre o público a esvoaçar, a rasgar a sala repleta de casais conservadores. “Você tem tudo para me conquistar, você tem exactamente um segundo para me aprender a amar, você tem a vida toda para me devorar”, visceral, perturbante. Guitarra acústica, pandeireta, teclado para adocicar, “existem coisas na vida, que até Deus duvida, tem gente que é só sucesso, tem gente prevenida, tem gente já falecida”, os músicos encontram-se concentrados sobre a chaise, o assobio do guitarrista finaliza-a, e o seu rosto mulato é beijado pela ave-cascavel.Regressam os helicópteros a perseguir um preto que cometeu um crime por droga, por fome, por ódio, inveja, tristeza. As sirenes acompanham o foco que o procuram, no escuro do palco. A liberdade regressa neste verso “aqui somos mestiços, mulatos”, diálogo com a guitarra, “aqui somos inclassificáveis, inclassificáveis, inclassificáveis”. O rock é imposto violentamente a contrastar com a voz límpida e aguda de Ney, uma cruz ressalta do cenário.“Não há sol, há sóis”, em rap. A rumba destila dramaticamente, “veja bem amor, onde está você? Somos no papel, mas não no viver, nunca te vou esquecer amorr…”. A loucura é imposta através do disco-sound, do Studio 54, de Nova Iorque, “se joga, se droga, e eu te dou a minha mão”, as luzes espalham-se pelos espectadores, a cobra-pássaro dança, a simbiose surreal da beleza, de Klimt ou Oscar Nimeyer.“Não temos tempo de perder a morte”, Matogrosso, desaparece para os camarins passando por uma cortina que serve de adereço erótico.“Ficar sem a proa, sorrir para qualquer pessoa, eu não quero tudo de uma vez”, e o falseto: “eu hoje, eu sou quero, que o dia termine”, “eu só tenho um simples desejo, eu só quero que o dia termine bem”. A encerrar toda esta transmutação de identidade, como se fosse um objecto lunar procriado para perturbar, com a sua voz de pássaro e cascavel venenosa intoxica a realidade para uma dimensão longe da alienação, acutilância, a batalha em cada nota e o gesto é transgressão, o corpo sublimação, “essa é a vida que eu sempre quis.”
"Inclassificáveis", Ney Matogrosso, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, 26 de Outubro.