São nove e meia da noite e o Coliseu de Lisboa espera que os Mão Morta subam ao palco para festejar vinte e cinco anos de vida e de morte. Há algo de enigmático neste colectivo bracarense, a postura de outsiders em relação a um sistema que privilegia quem segue os outros, mesmo que estes sigam para o vazio. E a lírica contestatária alicerçada em escritores obscuros que realçam o carácter decrépito do homem social, que ao criar a sua rede, é preso e morto pela mesma. São vinte e cinco anos de suor fétido a cadáver, a forma mais directa de anunciar a existência de vida alienada, corrompida pelo presente, a luz é predominantemente vermelha. “Qual é a tua identidade?”, é uma pergunta de um agente da autoridade, mas simultaneamente prende-se: ao quem sou eu? Quem és tu? O rock é alicerçado na distorção das guitarras, num baixo pulsante apalpado por uma mulher, “e se depois?”. Se o nosso, “corpo, sexo”, “agrarra”. A voz de Adolfo é uma faca com dois gumes cuspida por uma língua vertiginosamente sanguinária, “tu dissestes?”, “eu já tive muito medo!”, os acordes são sublinhados por um arranjo de citara a oferecer à canção uma tonalidade psicadélica. O pesadelo pode ser um caniche de peluche que uma criança desmembra com um prazer perverso, e o seu “cortex cerebral processa”, “e regista a reacção da medula espinal”, é um tema fúnebre, como qualquer pesadelo onde enterramos o inconsciente para ser possível viver em saudável relacionamento com o seu oposto. “Para fazer de morto”, basta ficar deitado no chão imóvel, para ludibriar a vida e ganhar invisibilidade, coro: “meu irmão”. “Budapeste” é um rendilhar de drogas e sexo, de bar em bar a aviar o putedo, ah putas, “sempre a ronckarollar”, “AAAAAAAA”. “É guerra sem quartel, de empresas rivais”, “em busca do control”, “encena-se o directo para televisão”, o hino anti-Face-Oculta/Telecom-compra-da-TVI-pelo-monco-Rui Pedro Soares, insurge-se contra a manipulação das televisões que enganam os ignorantes ligados a satélites, “por entre a multidão”. “Vão-se foder?”, “estes gajos são uns paneleiros”. As guitarras são o sangue dos Mão Morta, o baixo o coração e a bateria o martelo que aplica sobre as tábuas do nosso caixão os pregos necessários para encerrar o morto, a morta, a mão que escreve, e dedilha o piano: “Ó Capitão”, “dente por dente”, “olho por olho”, é uma lenga-lenga hipnótica, corrosiva, perversa, o público acompanha com palmas, e canta: “E o fim chegou”.
Pesadelo em Peluche, Mão Morta, Coliseu de Lisboa, 29 de Abril.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
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