Noite húmida cobre a Batalha de Aljuz Barrota, há muitas padeiras e imigrantes, jovens e velhos, postos de venda de cerveja. O palco está instalado junto ao Mosteiro da Batalha, os batalhenses ficam inertes ao apelo do ritmo prog-rock-electro que infecta o pop-fado de “Sete Naves”, surgem Rui Reininho, Tóli César Machado, Jorge Romão com mais três irmãos sanguinários. Rui Reininho (Rei): “Vejo destroços de metal a flutuar”, “provavelmente o Tejo”, “sinos, sinetas ao acordar”, o “ritmo” é mecânico e circular, “paro de martelar”, solo da guitarra, “vejo estas veias estalando”, “artéria por estalar”, levanta os braços, “diáfanos por envenenar”, “vejo isto”, “outro ritmo”, “pára de martelar”, a música continua a contrariar a narrativa do Rei, as luzes negras e brancas acompanham a sincope: “As naves que eu construo aguentam a violência de um beijo mas nunca a do mar”. “Fode”, o sangue começa a estalar, “elas vêm-se, volteiam-se devagar”, o Rei encarna Bruce Lee e dança, “OOOO”, “AGORA”, e pede ao povo que se venha, levanta o braço direito para os acordar: “AAAAA”, solo da guitarra a mimetizar os acordes do refrão, “as naves que eu construo não são feitas para navegar”, pausa, “nunca a do mar”, “ar”, “vêm-se”, “vêm-se”, “voltam-se devagar”, “beijoo”, solo-guitarra, “nem a do mar”, “AIAIA BOM”, “AIAIAI BOM”. O Rei dirige-se aos súbditos: “E a Batalha está ganha! Ainda agora começou!”, não é ironia, a declaração de guerra é sincera. Assim o demonstra, “Sexta-feira (um seu criado)”, a canção rock and roll, que se prostitui “em Albufeira”, “para acabar”, “era tal a bebedeira”, “ninguém sabia onde era o mar”, “beija-me”. “Já é Domingo na Suécia, Cascais, Funchal”, “a policia”, “bem contra o mal”, “falta a tua confissão”, com a canção muito próxima do original, “amei”, “já não dou com o Dj”, solo da guitarra substancialmente prolongado e distorcido, “falta a tua confissão”, “beija mão”, “de quem gostei”, “dó”, “já não há, já não dou”, “nem pró Dj”, com o Rei perdido na Batalha. “Obrigado meninos, meninas, senhoras. ´Efectivamente` foi estreada aqui no tempo do Mestre de Aviz”. A canção redefiniu a pop, o ritmo é por si só de uma circularidade lúdica, subtil, com paredes rupestres com “pássaros estúpidos a esvoaçar”, o tédio do “riso das crianças dos outros”, o refrão é assertivo: “Efectivamente”, coro: “Lalalalalala”, “sem moralizar”, dois por dois, “engatar”, a guitarra insurge-se para lhe dar progressão, “controlar”. “Efectivamente”, “sem sincronizar”, a guitarra emerge mas desta vez complica, o teclado não resolve a questão, “sem moralizar”, “m-o-r-a-l-i-z-a-r”, coro: “LAAALALALA”. “Pois é, esta época passada foi uma série de títulos que ganhamos. Primeiro lugar desde 96! Obrigado! A nossa reciprocidade”. A música é um tónico tropical, um fluído que suporta o Rei: “Qualquer escravo era feliz”, “vender macacos do nariz”. A perspectiva sobre a mudança de paternidade: “O papa agora faz de mama” e “a mama tem mais cabedal que o papa”, “o futuro nas televisões”. “AAHH os bebés vinham todos de Paris”. “AAAH os bebés eram todos para meter no nariz”, blues-pop, “a mama vive tão longe do papa e os bebés ganham mais que os papas”. “O papa tem mais paciência que o Papa”, eco: “OOOOO”: “Vai Batalha agora tu!”. “A próxima canção é fantástica, porque começa no princípio e acaba no fim”, é o slow noctívago-pop de “Morte ao Sol”, “felizmente a noite sai”, solo-guitarra, “este lugar”, solo-guitarra-fm. “Metamorfoses de horror”, quem o determina paradoxalmente é o Rei sol: “Vão demorar?”. “Estou contente se a luz se esvai”, “revela cierta”, “rouca voz”, o vento sopra bolhas de sabão, “meu amor”, “directa sim”, “declaro morte ao sol”. “Directa não”, “morte ao sol”, progressão, o solo da guitarra substitui na íntegra o da gaita-de-foles de Paulo Marinho no original. “´Bellevue`, vous parlez fancais? ´Une Valse a Mille Temps`”, a referência ao universo do belga Jacques Brel, ganha corpo na progressão dos acordes e no ritmo compassado, que é Porto travestido de Paris. A narrativa é de papel químico de um policial, imerso num sufoco, o telefonema: “Leve, levemente como quem chama por mim”, que lhe permite ter uma “ideia brilhante que cintila no escuro”, a acção: “E subo a mão”, a guitarra percorre o refrão, “diamantes”, “salto à janela”, “coração”. “Bellevue”, “rendez-vous”, o ritmo acelera, “último estertor”, “cruel”, o local do crime: “Cama de dossel”, o detective põe-na à prova, ”experimento o colchão”, “solidão”, o baixo encorpado de Jorge Romão. “Rendez-vous”, “lá no jardim”, “confia em mim”, pausa, os teclados aumentam a tensão, quando o Rei assobia no microfone, a guitarra de Tóli César Machado sobressai. “Stop”, a revelação do autor do crime: “Sabem que me escondo na Bellevue”, alegre ma non tropo, decadente, “os meus amigos no fundo do jardim”, “ninguém confia em mim”, o alçapão: “Era só para brincar ao cinema negro”, as provas: “Os corpos no lago de jovens no desemprego”. “Atrás de mim a História, à minha frente o futuro”, quando o Rei disse: “atrás”, colocou os braços em direcção ao Mosteiro, quando referiu: “futuro”, para à frente. “É pena a Assembleia [da República] não estar aberta. Tenho um jeito para estas coisas. Então e o meu chá?”. O funk-pop de “Rei do Roque”, a narrativa beat: “numa selva sem leões”, “Rei da Rádio dá-me a voz”, “Rei da pop compõe por nós”, “Rei do Rock morreu por nós”, a síncope instala-se, “evidentes orações”, electro-pop-rock. “Isto é Oeste? Vamos lá ver isto. A ver se não me engano nas vogais”. A música que se segue é um slow movido a gás, ecológico-pop, o naturalismo da “casca de carvalho”, “a agulha no cabelo”, o refrão desconcertante: “Unika a pagar o gás”, teclado de Tóli, “um crucifixo, as mãos, os dentes de desejo”, “si lui trouvez”. “Unika a dar gás”, “a rainha das marés”. O hino ao ópio, com uma introdução hindu, urdida enrolada e fumada pelos Beatles: “Ana Lee, meu lotus azul, ópio do povo”, “Ana Lee”, a melodia é Trópico de Capricórnio, “num Lotus azul, nada de novo?”, “Bragil”, “jasmim”, “e a ouvir-se”, “num país onde fumam as cigarras”, sobressai a bateria, “tigre de papel”. “Lotus azul”, “poente dourado”, solo-hard-rock da guitarra, aceleram o ritmo. “Ana Lee”, “jaguar perfumado”, “tigre de papel”. “Vamos fazer uma estreia mundial”, ri. “Esta é para os Bombeiros….”, levanta os braços , “Que são os Bombeiros!”, palmas do povo. “Voos Domésticos”, o original que dá nome ao um best of reescrito, produzido por Flack. Uma melodia slow-pop-kitsch, que poderia ter constado no “Retropolitana”, domínio dos teclados, “o que faço aqui?”, “e então se tropeça-se”, “em mim”, “olha a turbulência é da tua ausência”, “adivinha”, “algures na cozinha, soa a campainha”, é o Rei, “num gesto de avareza só pago a sobremesa”. Avisa: “Olha a turbulência é da tua ausência”, é “a torre de control”, “adivinha quem sou?”, a densidade psicotrópica é densa, com os teclados entre o universo pop-prog, a guitarra a assumir-se como o interlocutor do Rei. “Escuta a turbulência é da tua ausência”, “fantasia de lençol”, o psicodrama: ”adivinha quem sou?”. “´Voos Domésticos` à venda em todas as casas da especialidade, que são poucas, são mais os piratas”. Do ar? “Asas”, a pop-cinética de veludo, andamento de meio tempo, letra onírica: “Servem pra voar”, “pra sonhar”, “espreitar”, “não te esquecer”, o Rei voa, “por combater”, “tentar não te esquecer”, “no alto do ar”, “se quiseres pousar a paixão que te roer”, “é um amor que vês nascer”, o solo semi-distorcido circular resume a melodia. “Estão a ver isto”, o Rei aponta para um copo que contém: “Mesmo chá!!”, Tóli César Machado desloca-se da direita para o centro do palco, recorre do microfone do Rei: “Toma lá do meu!” e estende-lhe o seu copo. O Rei enólogo chega à conclusão: “Ah! Isto sim é chá da marca do Jorge Palma! Um grande herói!”, riso do povo. “A Pronúncia do Norte”. “Um dos melhores compositores vivos: Tóli Cesar Machado”. A ironia rock de “Cais”, não é totalmente aplicada, o ritmo é substancialmente mais lento comparativamente com o original, e nem se assemelha com a versão que roda na TV, internet e na rádio pirata. “Se ondas vêem chatear”, a lírica é premonitória: “E quando a maré negra chegar?”, “crude limpar”, “imenso sais”, “sereias sensuais”. O narrador volta à terra: “Se o pescado morre ao largo”, “vai ver se há ainda lodo no cais”. “Voltas ao cais”, a canção diminui o ritmo e instala-se um ritmo marcial, próximo do break beat, “sensuais”. “Imagino o Carlos do Carmo no Allgarve com as bifas em topless a cantar: ´I've Got You Under My Skin`”. “Espelho Meu”, “Porto 1980”, os acordes disparados pela guitarra em delay coloca-a no pedestal do psicadélico, as luzes brancas incendeiam o espaço como se fossem bolas de espelhos, a banda joga em bloco, vibrante pulsão agressiva, fantástica: “Perguntem ao meu espelho”, a banda faz uma pausa, e Tóli Cesar Machado encerra a canção com acordes rítmicos, genial. Qualquer imigrante emociona-se com “Dunas” poluídas. “Sem reflectir”, “velho habito”, “a lado”, “ficar quieto”, “senti-la a vibrar”: “Ah! Lá vem ela”, “a relva cresce”, “um peito assim, ai”, “sabendo que é boa”. A demência: “AIAIAIAIAIAIAIA”, denso fílmico, “acabar de jantar”, “não pedia para ficar”, fica “sabendo que é bela”, “interesse”, “talvez assim”, “linda”, o teclado liberta-a da tensão nada característica da bossa nova: “PoPoPopLess”, o solo da guitarra distorcido, funciona como se fosse o coro da Antiga Grécia. O rei encarna o Axel Rose, “lá vem ela”, “mexe”, “AIAIAIAIAI”: “PoppopLess”, eco, “PoppopLess”, eco “PopopLess”, eco. “A próxima musica é mesmo em espanhoel: ´Sangue Oculto`”, o solo da guitarra que inicia a canção é menos linear que o original, a banda é uma máquina de rock and roll, finalizada com um desafio anti-touradas: “Se puderem mostrem compaixão pelos animais, não se arrependem!”. Encore. “Nós vivemos disto e para isto!” Blues-pop de “Burro em Pé”: “Se foi só para nos ver”, “mais vale me calar”, “tira o cabelo da boca”, “esse piercing no umbigo fica-te mesmo a matar”, o fraseado de música clássica, retira-a da mediocridade, a guitarra solo mimetiza os acordes dos teclados, “IONHK”. O Rei explica: “O burro é um dos animais mais inteligentes que há!”. “Há um bicho novo para limpar”, popopop, com refrão: “Vaisouvirever”, “mais vale nunca mais crescer”, poprock, “cérebro em fuga”, coro: “Mais vale nada”, “crescer”, “mais vale nada”. Seguido de um tufão soul-pop-tropical que aquece o “Inferno”, com os devidos aditivos ao romantismo latino-americano. “GNR, trinta anos venham mais Trinta!”.
Voos Domésticos, GNR, 12 de Agosto, Festas da Batalha @ Batalha
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