A cenografia corresponde a braços de madeira que irrompem da terra e as mãos acenam às estrelas escondidas atrás de nuvens negras. Há postos de vigia onde se vendem cervejas em canecas de metal, as pessoas movimentam-se em direção ao palco, há quem tenha t-shirts com a inscrição, com o mesmo design das capas de discos dos Metallica, “Kamalhão”. The Walks estão a debitar no palco do Kamalhão o seu mood black, prejudicados por um som que não consegue revelar a consistência estilística do estágio de desenvolvimento em que se encontram. Não ignoram o escasso público que se encontra a observá-los, nem tal facto fá-los diminuir a concentração, ou, tão pouco a consistente entrega. Após se terem despedido, soa o reggae de um palco minúsculo onde atuam dois músicos: bateria + guitarra, que progressivamente alteram a sua palete para o blues com variações rock. No palco principal encontra-se um homem, sentado numa cadeira com uma guitarra ao colo e na perna esquerda uma pandeireta, a sua voz é rouca. As suas canções são um contínuo de distorção na vertente decadente do Rock and Roll, mas carecem de definição, e consequentemente demonstram que Bond tocou sempre a mesma canção, algo que instaura na consciência o tédio. Mesmo o conflito do músico com o microfone, e o seu convite indiscreto: “If you have cocaine or speeds…”, não são suficientes para retirar Bond de uma mediocridade com efeitos secundários mais graves do que a cocaína. Do palco minúsculo soa algo que me é imperceptível definir, eventualmente o canto de uma serpente a verter pelo ar o seu veneno, e do céu pinga uma morrinha tristonha como se fossem as lágrimas de um nado morto. Os ramos das árvores são consistentes cabelos de madeira folheados a cinzento pálido, há sombras à minha volta que correm indiscriminadamente mas nunca chocam, antes trespassam-se continuamente. A bateria e as guitarras elétricas sujas ecoam das colunas no palco do Kamalhão; é o chamamento dos The Dirty Coal Train que se apresentam através de um conjunto de canções alicerçadas no garage, algumas das quais são memoráveis, muito por culpa da lasciva relação entre as guitarras. Quando surge o convidado Pedro Calhau, no saxofone, a dinâmica da canção ganha um inesperado sentido de urgência, de tal forma é sublime. A contagem decrescente para a subida ao palco principal dos Parkinsons concentra toda a atenção dos presentes, mesmo que esteja a passar um jovem a tocar uma flauta mágica seguido por um regimento de anões carecas mas barbudos que hipnotizados cantam: “Kama Kama Kamalhão”. Os Parkinsons incendeiam as luzes do palco, através da similar detonação da saudosa bomba nuclear na ilha de Bikini. Algo que cega o olhar e liberta a audição, para que seja conduzida num mapa-mundo constituído por artérias em que o sangue escorre incapaz de coagular numa caverna de abrigo. Se por vezes os Parkinsons são primários é somente porque aplicam o traço do grotesco; e se são viscerais, isso é culpa de Victor Torpedo, que tem uma técnica de génio, que faz dos riffs solos, e dos solos riffs, e este remoinho injecta ao ouvinte um desejo supremo de saltar para a vertigem. A movimentação em palco de Afonso Pinto é a emulação de um homem que nunca encontrou na sociedade a fronteira onde se alojar e nesse reduto ser feliz. A sua raiva é contínua e perturbante, e se não desperta as consciências é porque a alienação esta contaminada por horas de exposição aos raios dos écrans televisivos. Sobem ao palco diversas pessoas, que dançam ao lado de Pedro Chau que se mantém inalterado, e dá continuidade à métrica rítmica precisa e destrutiva de tão demolidora de Kalo, ambos são o motor de uma locomotiva com destino ao fundo de um túnel infinito. A exploração final instaura na multidão a loucura, que se projectam numa besta com quatro cabeças, que é ávida por destruir o universo que os circunda, e têm a anarquia como única Constituição. Victor Torpedo despede-se poeticamente: “Kamalhão sempre”.
Kamalhão Rock Fest, 5 de Maio, Mata do Camalhão @ São Silvestre
segunda-feira, 7 de julho de 2014
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