segunda-feira, 30 de março de 2015
Caixa de Pandora
Na rua Cândido dos Reis na baixa portuense encontra-se um palco ladeado por quatro tapumes siameses nos quais se encontra graficamente retratada uma caixa colorida estacionada nos alpes franceses a preto e branco. Na sua fronte-- e em cada lado do palco-- dois plasmas fazem a contagem decrescente ao surgimento das três celebridades do Norte que colectivamente se baptizaram de Grupo Novo Rock (GNR): Rui Reininho, Tóli César Machado e Jorge Romão, que recebem calorosos aplausos; acompanhados por Andy Torrence, Paulo Borges e Samuel Palitos. A primeira canção “Triste Titan” tem um ritmo binário em que o teclado e as guitarras docemente corporizam uma melodia leve como o planar de uma ave de rapina. A voz de Rui Reininho é de um timbre que apela por uma compaixão desmedida “se a manhã te dá um beijo mergulhamos”; “e a sereia no topo do bolo lá caiu”, a relação onírica dos acordes adensam-se pontualmente mas sem obstruir a porta para o sonho, e “vais à Nazaré e vais a banhos”; “ou nós enjoamos”, a aparente circularidade ondulante da melodia revela um mar de ondas de pétalas vermelhas tingidas de salitre do oceano Atlântico, onde navegam os desejos expulsos em dias de breve melancolia. “Lá caiu”; “a vida dos ciganos” errantes e destemidos flutuam por entre uma leveza desarmante de tão bela; se “Triste Titan” fosse música clássica teria sido composta por Vivaldi à procura de uma estação do ano imaginária, mas sendo Pop é naturalmente da lavra de Tóli César Machado. O poder dos acordes do piano de Paulo Borges versus a intensidade delicada da guitarra eléctrica de Andy Torrence secundada pela de Tóli César Machado, a primeira divaga de nota em nota, a segunda preenche os espaços vazios, e a tensão do baixo eléctrico de Jorge Romão com a devida cumplicidade da bateria de Samuel Palitos, inscrevem um crescendo encantatório perceptível ao público que preenche totalmente a rua Cândido dos Reis. “Vais a Gibraltar e vais à praia e vais a banhos há milhares de anos”. Rui Reininho ignora a hora noctívaga e cordialmente cumprimenta os presentes: “Bom dia!”. A pecaminosa “Vídeo Maria” encontra-se alicerçada numa equação em que imperam os sintetizadores que circunscrevem a estrutura Pop e injectando-lhe uma dose considerável da Kitsch, e adicionado a isto a guitarra eléctrica (wha wha) de Tóli César Machado confere-lhe uma frequência minimal. A voz de Rui Reininho relata uma ficção: “Tarde de chuva a península inteira a chorar”, quando sobrevém o baixo eléctrico de Jorge Romão a Pop ganha um pendor de dança numa discoteca onde rodopia uma bola de espelhos desdentada. “O latim vai mudar”, “o que ela faz aqui fumando? Estará a meditar?”. A acentuação do binómio rítmico entre a bateria de Samuel Palitos e o baixo de Jorge Romão citam a funk, mas sem redundar numa aliteração, à qual se adiciona a soletração por parte do teclado de Paulo Borges dos acordes luminosos do refrão: “Ai, ui, atirem-me agua benta”, “atirem-me agua fria”, “o nome dela é Maria”. Andy Torrence insere um solo melodioso, a síntese dos acordes de “Video Maria”, seguido pela omnipresença (wha wha) de Tóli César Machado e por fim a solenidade dançante imposta por Jorge Romão, “ai, ui”, “Maria, sexy eu sei, virgem ou não depende da vossa fantasia”. Os GNR inscrevem um crescendo tenso como um punhal de fancaria na “sua mona”, “lalala”. A terceira canção “Caixa Negra” tem por base um princípio Pop que ganha uma adjectivação Kitsch com a introdução repetitiva dos acordes da guitarra eléctrica de Tóli César Machado, que instaura uma toada de dança de baloiço sustentado num arame farpado. A voz de Rui Reininho é de um timbre contidamente alegre, “caixa negra tem segredos que não revela a ninguém, nem lembra ao diabo também”. A vertente de Pop alegre é gradualmente acelerada; “há quem lhe chame preta”, a voz de Rui Reininho parece um chamamento de um faquir que se espreguiça na sua cama de colchão de pregos, “trompeta”, “há sempre uma bicicleta”, os GNR fazem uma pausa, “perfeita”, “caixa negra traz traz revelações do além”, a bateria de Samuel Palitos aumenta o ritmo e é devidamente acompanhado pela tensão do baixo de Jorge Romão; e Rui Reininho é sedutor: “vai e vem”, “perfeita”, “rarefeita”, “há sempre uma bicicleta”; “uma bala na corneta”. A progressão que os GNR estabelecem é desconstruída pelo teclado de Paulo Borges e Rui Reininho aumenta a altura da sua voz como se fosse um alarme para um Portugal adormecido por ser ocupado por sonâmbulos: “Há sempre uma bicicleta com motor é uma lambreta”, e para que os portugueses se despertem basta, “uma bala na cabeça”, a Pop ganha uma densidade angustiante e anula o seu caracter festivo, “tão perfeita”, e para quem eventualmente esteja distraído, Rui Reininho repete o seu julgamento: “Há mais uma bicicleta que com motor é uma lambreta”, “Caixa negra vem vem” e ilumina a consciência portuguesa. Rui Reininho apresenta os músicos que acompanham os GNR: “Samuel Palitos”, “Paulo Borges”, “Andy Torrence”, e uma figura inexistente: “Pipi Legal, ainda bem que apareceste”. O hino à loucura consta na quarta canção “Bellevue” com o teclado de Paulo Borges a inserir a melodia Pop de valsa negra ou enegrecida quando a bateria marca o compasso de um actor disposto a cometer um crime real, o baixo de Jorge Romão é quem oferece a base para a narrativa de Rui Reininho: “Leve levemente como quem chama por mim”, cai sobre a rua um negrume leve e viscoso de onda de mar mergulhada num crude criminoso, “o odor a tensão do medo puro”; os GNR progridem gradualmente como se fossem uma segunda entidade vincadamente voyeurista, “e subo a mão”, que está expectante quanto ao percurso do criminoso mas imperdoavelmente ignoram qual o objecto do seu desejo, que o fez calçar as luvas de cabedal pretas e empunhar um punhal, talvez “um anel de brilhantes” (?), “salto à janela com muita atenção”; e como é que os GNR “sabem que me escondo na Bellevue” (?), com a predominância dos teclados a conferir-lhe uma copiosa marca de salão de chá preto onde dançam casais rotinados nos domingos, “ninguém comparece ao meu rendez- vous”. “Um foco de luz no último estertor”; “salto para cima experimento o colchão”. Sobrepõe-se à negrito de “Bellevue” uns teclados fantasmagóricos, “sabem que me escondo na Bellevue”, “os meus amigos no fundo do jardim”, “moi”, pausa na valsa, os teclados reintroduzem o padrão de preto sobre preto num minimalismo absurdo, ouvem-se passarinhos a chilrear de um ninho de cucos, Rui Reininho bate palmas timidamente e a multidão acompanha-o na peregrinação ao cadafalso, uma outra pausa nega o fim à canção e consequentemente à vida da personagem que se afunda na sua mais profunda consciência, “e agora mais ninguém confia em mim”, e a tragédia é finalmente desvendada pelo tresloucado: “Era só para brincar ao cinema negro”, a valsa repercute-se através de uma visão de tragédia social que simbolicamente ocorre quando a alma não é pequena: “Os corpos no lago eram de jovens no desemprego”. Rui Reininho apresenta a quinta canção da noite ao ar livre: “A próxima chama-se ´Não há Guerra`”. Que é dotada de um dote proeminente rock disso é exemplo a dinâmica instituída pelos GNR, em que se destaca a batida possante de Samuel Palitos e a sobriedade de Jorge Romão assim como a guitarra eléctrica de Andy Torrence, “Tudo à espera”, “infeliz”; os GNR aceleram o ritmo enquanto Rui Reininho canta: “toda a gente diz não há guerra”. A progressão que encetam encontra-se sediada num reverb de Rock and Roll que o orgão Hammond sintetiza subliminarmente, “Inglaterra”, “não há guerra”. A sexta canção “Las Vagas” predomina uma esquizofrenia Pop, já que os GNR se expressam através de uma aparente alternância dos instrumentos eléctricos, destacam-se o teclado de Paulo Borges e a guitarra eléctrica de Andy Torrence, “é tão grande macro onda, vista ali da marina”, a canção é progressivamente acelerada e consequentemente assume-se travestida de rock, “a roleta russa aceita apostas”, “são mudanças”; Rui Reininho canta incontidamente: “de quem gostas”; “de quem gostas”. E o rock anula definitivamente a Pop, “eu serei a gorda? Serei a magra”, e como será possível que esta personagem de indeterminada figura foi “andar de voga, não havia vaga”? O rock ganha contornos épicos por dilacerantemente se solver como potássio na água gélida de um lago à beira mar plantado, com o devido e angustiante solo de Andy Torrence, “eu seria a gorda, tu serás a magra”. A potência rítmica perpetrada por Samuel Palitos e a cordialidade de Jorge Romão erigem um universo inconcebivelmente agressivo e tão belo quanto nefasto, “tanga”, e por fim o desvendar do rosto da personagem indeterminada: “Sou um peixe fora d` água”. A penúltima canção da noite denomina-se “MacAbro” e é segundo Rui Reininho “mais uma estreia mundial”. O teclado é dedilhado pelos dedos longos de Tóli César Machado, inscrevem uma melodia tétrica que poderia constar numa peça de teatro de Bertold Brecht, o fluxo é profundamente fúnebre mas o corpo da vitima está inconcebivelmente ausente, não há flores ou velas nem tão pouco Jesus Cristo sacrificado numa cruz a pingar sangue das suas santas chagas. “Sabes quem eu sou? Cá em casa é tudo feito à mão”, o acompanhamento negro de Tóli César Machado é constante e Rui Reininho responde-lhe através do seu canto de filho único, inesperadamente o narrador revela que “sou parecido com o meu irmão”, e quando se aproxima do seu reflexo: “Eu saco do facalhão e aproximo-me do meu irmão” e perde o ímpeto assassino e “esfrego um limão”. O break de Samuel Palitos traz consigo os GNR que eléctricamente são complacentes com a melodia Brechtiana dominada por Tóli César Machado. Rui Reininho canta como se fosse o timbre de um marinheiro apaixonado por uma sereia do proletariado, “lálálálá”, Jorge Romão responde-lhe calorosamente, “lálálálá”, a imposição rítmica acelera a valsa mas sem a cremar, antes, inscreve-a numa vida às mãos de cuidados paliativos, “tudo é feito à mão”, “irmão”. Antes da última canção “Cadeira Eléctrica” Rui Reininho é cordial para com o público --que se estima que sejam um total de quatro mil pessoas-- que acorreu ao chamamento surpresa da maior e mais genial banda da Poportuguesa: “E a vocês muito obrigado!”. A lógica que os GNR instituem é a de uma melodia Pop que inicialmente é dominada por um imediatismo improvável, “há no céu da boca um sabor a mel fel”, e o solo da guitarra de Andy Torrence transcreve-a para um mecanismo repetitivo rock, “suicida”, e nesta caixa de pandora “já é de manhã”, “finge um sentimento”, associada ao transtorno rock está também a guitarra eléctrica de Tóli César Machado. Hoje há mudança de equinócio algo que inesperadamente coincide com a poética de Rui Reininho: “quando muda a hora”, o sintetizador de Paulo Borges é um cunho estéctico num vislumbre kitsch, “passa tudo por magia”, quando surge o refrão: “Liga a cadeira eléctrica”, há uma emancipação promovida por Jorge Romão e Samuel Palitos, “sente a energia”, o aumento do ritmo e da altura ressoa gradualmente, “passa tudo por magia”, e reproduz uma sumula rasgada por um rock and pop, “apaga as luzes já é de manhã”, “liga a cadeira eléctrica”, “sente a energia” da vida, “liga a cadeira eléctrica corta a corrente”.
GNR, “Caixa Negra” (concerto surpresa de apresentação do 12º álbum de originais), 28 de Março, Rua Cândido dos Reis @ Porto
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