terça-feira, 9 de junho de 2015

Primavera Sound

Noite quente na baixa de Coimbra e a esta temperatura não é alheio o Salão Brazil onde decorre o Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo. No palco encontra-se o curador Carlos Dias ou Carlos Subway quando assume a sua persona de músico nos Subway Riders; promete: “que vão ser dois dias de loucura absoluta”, mas o acaso subtraiu potências festivaleiros, tudo por culpa “do Primavera [Sound]”, que se encontrava em simultâneo a decorrer no Porto e das “marchas”; mas para gáudio dos presentes Carlos Subway acrescenta que há uma estrela contratada “à última da hora”, essa é nada mais nada menos que “kazuza”. Alexandre Valinho Gigas é poeta e diseur e fá-lo concentradamente sobre o loop, o poema versa sobre alguém que se encontra numa situação desesperada, causada por um acidente e que tem como companhia uma “garrafa de gin”, vê o “limite” onde passa o tempo a “olhar para ela”, “onde repousa inquieta”; sobre o loop, “liberdade”; “garganta”; “as palavras isoladas: pois”; “translúcido”; “tão só”; “o odor a fresco”; a voz de Alexandre Valinho Gigas aumenta o seu dramatismo, “outro lado”, “outro lado”, “outro lado”; “outro lado”. O primeiro músico a subir ao palco do Salão Brazil é o Marquis de Cha Cha que apresenta um conjunto de canções ecléticas, em que o pormenor gradualmente ganha domínio e se estabelece como denominador comum; a música concreta marca lugar através do uso de um objecto que arrebenta e que espalha cofetis coloridos pelo chão; o uso do megafone como se fosse uma voz estranha. Os universos sonoros por onde nos faz viajar é a feira com cavalos de pau saltitantes, a austeridade kitsch da música clássica, a paródia ao rock e ao rocka billy e à infância através do xilofone, tudo delineado com uma elegância irrepreensível. Carlos Subway que é o mestre de cerimónias do Mono/Stereo assume que: “Já a seguir mais uma estrela de Portalegre o Johnny Luv & os Hate Killers, mas antes mais umas palavras do Gigas”; que coloca a voz sublinhando os graves: “essa força”; “há uma força em mim maior que as intempéries”; “toda a gente vê casas coloridas”, dominadas por uma “impaciência frágil”; “na cave sombria” o nosso corpo é um “bunker certo, a recogitar”; “poema”; “sou um obelisco”; “estéctica”; “liberdade”. Surgem os Johnny Luv & os Hate Killers, que na verdade é a banda de um jovem magro e branco que se senta na cadeira e ergue a guitarra eléctrica e dirige-se directamente para o escasso público: “Boa noite pessoal!”. A relação voz + guitarra eléctrica + caixa de ritmos é de facto ainda muito imberbe, mas há algo de especial nas suas canções que é o absurdo das letras, repetitivas e primárias e consequentemente destituídas de lógica: a primeira versa a sua aversão ao “Sushi”, a segunda “Chic Guitar` vamos ver se corre bem”, a terceira inscreve estilisticamente o rocka billy; antes da quarta há um percalço: “Esqueci-me da letra!”; o público identificou as potencialidades Pop de “Sushi” e clama pela canção; o músico: “Ok! Sushi!”, despe a t-shirt e no peito tem uma cruz tatuada a preto e no pescoço um fio grosso, canta/fala repetitivamente sobre a guitarra não sincronizada com a caixa de ritmos: “Sushi up your ass”. Palmas. Carlos Subway é perentório: “Estamos com mais público”; conclui: “Estamos a roubar público ao Primavera [Sound] e às marchas!”. Reapresenta o “Gigas” que se dispõe a narrar mais um poema sobre o som arábico: “as trevas e a luz” são as sombras que “seguem a minha amante” e no silêncio “sem música silenciosa” surge “o céu azul de nada”; “outra vez”; “céu azul” em derrocada. Alexandre Valinho Gigas muda de poeta “e agora Heiner Müller”, a sua voz é frugalmente agressiva pois tem a língua ferida, “mostra” (agudo), o canibal: “ouvi estalar então os seus dedos”, o teclado emite sons densos e dilacerantes de tão introvertidos, a morte “inolvidável”, eu de “sorriso inolvidável”, ele “não sabe nada”, ignora “o terror” que é “carne quotidiana”, um escravo “da espécie” faz parte de “o terror o seu terror, o nosso terror”, “carne”, merda, “gordura quotidiana, grito da criação”, reflexo, “a indecência da espécie”. O terceiro convidado do Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo é o Bode que corrresponde a um indivíduo denominado de Bode Rice. Este utiliza programações maioritariamente etéreas beliscadas pela guitarra eléctrica, através desta relação constrói canções numa cadência progressiva com inúmeras texturas, tudo tão bem executado que os fiordes que erige estão constantemente banhados com sangue de baleias e orcas que se recusaram morrer às mãos dos arpões japónicos. Palmas. Alexandre Valinho Gigas descreve que “ele nunca viveu” e consentaneamente “morreu à procura da causa”; “morreu à procura da causa”; “morreu à procura da causa”; “a causa estava a morrer à procura dele”; um homem seco de esperança pois “nunca deu o seu coração aos seus irmãos” e em vão divaga “por toda a cidade à procura da causa”, a esquizofrenia é alimentada pela “overdose”; “alicerces”; sobre o seu caixão “bandeira para sempre”; “ele morreu à procura da causa”; “morreu a manhã”; o Alexandre Valinho Gigas num falsete que encanta: “morreu cego, surdo e mudo”; impositivamente: “nós aqui somos a causa”. Os quintos convidados são os Subway Riders, a banda do ausente Augusto Subway, Victor Subway e de Calhau Subway liderados pelo mítico Carlos Subway, que tem o dom da palavra: porque “não nos convidam a nós para organizar um Primavera [Sound]?”; ainda por cima: “roubou-nos público!”. Depois do acidente de Johnny Luv & os Hate Killers, os Subway Riders confrontam-se com dois problemas: “não temos teclista” , e “nem baterista, mas temos a Paulinha [Nozzari]”, que enverga um vestido de princesa num conto de fada em que o palácio é um labirinto entre a fantasia e a realidade e assim surge Jackie la Feline pintada por Tim Burton. As canções que apresentam são de uma visceralidade sónica que versa por vezes a cacofonia, ao segundo tema surge Chau Subway que se coloca ao lado de Jackie la Feline a acompanhar o seu ritmo catártico, “AUAUUAUA”. Carlos Subway agradece à “grande Paulinha Nozzari” ou Jackie la Feline (que abandona o palco do Salão Brazil), anuncia que “é a primeira vez que o Chau [Subway] vai tocar sentado” na bateria “num concerto dos Subway Riders”. Antes da quinta canção chama ao palco “o grande Kazuza”; “vai buscar o teu micro”; e é ouvi-los a debitar uma canção rock and billy-- mas desconstruída-- com o Kazuza a vociferar indiscriminadamente a sua voz de vento de Inverno, enquanto investe sobre a multidão numa salutar demência. A sexta canção cita os acordes do clássico “Satisfaction” dos Rolling Stones, Kazuza entoa a letra numa perspectiva de uma criança fechada numa cave onde é violada pelo padre católico. Palmas. Carlos Subway discursa sobre as características únicas do Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo: “Trinta e cinco minutos para cada banda”, com “só um palco, não têm que se perder de palco em palco e não vêem as bandas” todas, algo que sucede no Primavera Sound. Os Subway Riders tocam a última canção que versa um rock psicadélico com direito a solo da bateria de Chau Subway. Por fim, uma dupla denominada de JAE Sessions, constituída por Paulo Travassos na bateria e por Zé Djalo na guitarra eléctrica, a relação que estabelecem tem duas vertentes centrais: a dinâmica e a melodia, neste composto percorrem diversos géneros musicais, mas uns resultam simples e consequentemente previsíveis, outros complexos e por vezes imprevisíveis, executado segundo critérios que deveriam estar diluídos nas suas composições e dessa forma encontrariam a emancipação.
A tarde está abrasiva na baixa de Coimbra, no palco do Salão Brazil encontra-se o infatigável Carlos Subway, que expressa o seu descontentamento para com o escasso público no Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo: “Ontem fomos roubados pelo pessoal do Primavera [Sound]”; mas uma estrela, que se estivesse no céu seria gigantesca, salvou a noite de ontem: “O Kazuza esteve em grande”. Anuncia o poeta/diseur: “Gigas e eu vou manipular o piano” de cauda, a toada que implementa é da música contemporânea, Alexandre Valinho Gigas toma a palavra, quem “inventou a civilização”? “Foste a resposta, o equilíbrio entre as duas”, o Ícaro pegou numa “pedra e matou-o”, assim “tinha inventado uma arma”. O primeiro convidado da tarde é o Drunk Dancer que tem uma t-shirt psicadélica, que apresenta um conjunto de canções que têm por base um groove dançante, as melodias que reproduz são cativantes mas têm três problemas: não têm uma estrutura definida algo que inscreve alguma monotonia, são melodicamente muito similares umas às outras e esta homogeneidade é de facto redundante; para além das vocalizações em inglês serem de tal forma desgarradas que não acrescentam qualidade Pop às canções. Segundo Carlos Subway: “foi o mítico Drunk Dancer” e “agora são “os Vaginas Convulsivas”; “antes de mais, anda para aí um boato que os Vaginas Convulsivas andam a roubar as músicas aos Subway Riders, é verdade”, faz eco da sua contínua ironia: “Os Subway Riders têm que roubar as músicas aos Vaginas Convulsivas”. Mas antes, é a vez de Alexandre Valinho Gigas: perturba-o “isto de facalhões e palavras”, assim como “o inominável”; e as “cores salientes”; “de todas as cores”; ah “isto da solidão acompanhada” é uma merda, “a ironia da história” advém da “impermeabilidade ao toque”. Icáro pretende alcançar “o sol dos dias da minha aventura”. Carlos Subway toma o seu lugar no centro do palco ao lado de Calhau Subway e Chau Subway, diz que a primeira música é um: “original que os Subway Riders nos roubaram”; é o espelho de todas as que irão tocar: uma excelente decomposição de géneros adjacentes ao rock e nessa medida fazem parte da new wave nova iorquina da década de setenta do século passado, devidamente representadas por letras absurdas. Entra em cena Alexandre Valinho Gigas: vamos “alucinar com o Rimbaud”: “a virgem doida”; “que vida”; “neste momento”; “delírios nem torturas”; “sofro grito” como um golfinho que vem à superfície respirar, “tudo é permitido”; e a frustração perante a chegada da velhice: “desperdicei corações”. A voz de Alexandre Valinho Gigas é a de um torturador a impedir a sua vítima de adormecer dia após dia, eu sou “aquele que perdeu as virgens doidas” numa madrugada de céu turbulento sobre um mar encapelado, fundem-se raios selvagens que acendem uma vela minúscula no horizonte encoberta pelas nuvens cinzentas. “Um pouco de ar” para que o corpo inconsciente se sinta vivo pela última vez, “misteriosas”, surge a voz de uma “querida” que é o representante do “demónio” que determina: “Anda cortar-me o pescoço”. Empunha a espada e reflecte sobre a mortalidade: “todas estas coisas por onde tens passado”; “olhos”; “anda para bem longe” onde “o mar está por inventar”; a declaração que ele é o Diabo em carne e osso: “sou de raça remota”, a voz ganha uma violência desmedida: “ferveram as costelas, bebi o próprio sangue”; “vereis que morri”? Carlos Subway constata: “Está calor!”; apresenta: “G.G Ramone do Porto”. O seu espectáculo tem por base canções pré-gravadas dos originais dos Ramones mas executadas por três dos seus membros, já que G.G Ramone mimetiza (ao vivo) na perfeição a guitarra eléctrica semi-distorcida de Johnny Ramone, numa análise racional parece uma proposta absurda, mas a sua postura séria e concentrada obriga a fixar o olhar sobre este homem com um boné azul com a inscrição N.Y a esconder a falta de cabelo, se não fosse a barba esbranquiçada julgaríamos que estaríamos perante um adolescente egocêntrico. Os três Ramones poderiam surgir consubstanciados em hologramas e estaríamos perante um espectáculo arrebatador. Se estivesse ao meu lado Andy Warhol diria que se poderia “equivaler a um ready made sonoro”, que estaria na disposição de filmar G.G Ramone na Factory e dessa forma “elevá-lo à obra de arte”. A poesia ouve-se da voz do incansável Alexandre Valinho Gigas: “vou ser apedrejado pelos mares”; “vou ser um asteróide”; “ó noite”; há vazio no “espaço”; “ligeiro e impalpável”; “majestática dignidade do silêncio”; “dos seres que se devoram”; inevitavelmente ocupado por “criaturas que rastejam” na noite, “ó noite”, “tudo constróis”; naturalmente: “em seu abandono”, com ondas de “sangue derramado sobre o mundo”; “ó noite”; “via láctea” que nos ensombra, “sombra”; “grande noite” denso arvoredo de almas a flutuar “outra vez”; “nunca houve noite”; “definitivamente aliás”. Carlos Subway sublinha que foi: “mais uma fantástica apresentação do Gigas!”, anuncia que os “Subway Riders decidiram ligar a um promotora e criar um festival”, que se supõe que será a segunda edição do Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo: “Para o ano há quatro dias de festival” com “bandas mais fora”; “pessoas amigas” e por fim remata: “Divirtam-se com os Mokes”; um quarteto composto por uma guitarra eléctrica, uma segunda guitarra e voz, baixo eléctrico e bateria. As canções que apresentam têm uma base predominante Pop, algumas das quais pecam por apresentarem soluções que redundam em clichés, mas o interessante é a distorção que contra balança positivamente e lhes oferece uma textura rock que controlam profissionalmente. Carlos Subway assume pela última vez o papel de representante do festival: “A última banda são os Carne Pa Canhão” para “o ano cá vos espero se não forem ao Primavera [Sound]!”. Os Carne Pa Canhão são um quarteto: guitarra e baixo, voz e bateria e as suas canções versam o punk, com uma dose de distorção elevada e as dinâmicas que implementam são vibrantes e deveras agressivas sem que resvalem na redundância. Os quatro músicos estão pintados e vestidos de guerreiros Apocalipse, usam um adereço que é uma caixa/TV atrás da qual canta o Comando, a sua voz deflagra em ordens diversas, a principal é que os alienados e os funcionais são todos: “Carne para canhão”.

Mono/Stereo—O Maior Pequeno Festival do Mundo, 6 e 7 de Junho, Salão Brazil @ Coimbra