A noite há muito que apagou as cores dolorosas do Verão e inevitavelmente a humidade impõe-se como denominador comum. A escuridão é parcialmente iluminada pela lua cheia que se ensimesma na freguesia de S. Silvestre e particularmente na mata do Camalhão, onde se realiza o Kamalhão Rock Fest. No palco principal encontra-se o power trio Cavemen, que apresentam um conjunto de canções em que vogam pelo funk, blues, rocka billy, reggae; e pelo rock, mas quando este é salpicado por variações rítmicas e consequentemente ganha a vertente trip, conseguem enfeitiçar o punhado de pessoas que os estão a observar. Persigo um perfume incaracterístico que flutua no ar e me orienta em direcção ao palco 2 onde se encontra o duo JAE Sessions a executar uma partitura free-pop de forma magistral. Se eventualmente me desloco na direcção do bar de madeira para encher de cerveja uma taça de metal, é porque a sede somente se mata momentaneamente; cruzo-me com figuras que envergam t-shirts com a inscrição do “Kamalhão” que se destina a uma imensa minoria habituada à urbe. Alguém observa que um satélite é iluminado por segundos pelo Sol, nesse instante somos testemunhas de um milagre com origem na tecnologia nipónica e na natureza divina. No palco principal estão os The Casket Kings, têm roupa aprumada e os penteados ostentam poupas com gel, estes são os elementos decorativos da estéctica rocka billy; musicalmente há uma guitarra eléctrica, um contra baixo sustentado pelo corpulento cantor e ainda uma bateria que se exibe arritmicamente, algo que o exaspera: “Dá licença?”; se não houvesse um conflito em palco não estaríamos perante uma banda rocka billy? Há espaços este vai-se diluindo no tempo e os The Casket Kings ganham uma fluidez compacta, manchada pela tarola a sobressair negativamente por questões técnicas. Há a realçar dois pontos: a guitarra eléctrica a inscrever-se continuamente entre o rock e Southern rock, e o canto do homem do contra baixo com forte pronuncia sulista que não destoaria numa igreja católica erguida pelo Ku Klux Klan. Oiço distantemente o palco 2 onde os JAE Sessions reverberam num reggae que é violentado ludicamente pelo funk. Algo se esfuma para o interior de um corpo, que atravessa o recinto em direcção ao palco principal para observar os impetuosos King Salami and The Curbaland 3. Liderados por um mulato que veste calças castanhas da década de 70 do século passado e uma boina digna de um boémio do Soho londrino, ele é quem domina as canções com um timbre tão lascivo quanto o do James Brown. O quarteto tem uma sintonia sónica irrepreensível, adicionada a coreografias absurdas que realçam uma ironia parodiada constantemente. As canções têm uma base predominantemente Rhythm & Blues ao qual injectam diversas estécticas, umas vezes o resultado é excelente, outras-- por óbvia oposição-- é redundante (o responsável é a secção rítmica). No balcão do bar de madeira surge um homem com vestes negras coberto por um casaco branco, e um outro com a mesma indumentária; ouve-se uma voz a dizer: “velha”; “sulfatar”; “HAHHA”; “milhafres”; “milhafres do Kamalhão”; “Lucifer”; “escritor”; “demónio”; e a ordem inesperada: “pega num gato e leva-o para o Kamalhão”. E “o espírito da velha tem que ser convocado”; “para quê fazer hierarquias?”; de forma infantil o narrador pronuncia-se: “Lálálálálá”; ameaçadoramente: “milhafres”; “merda”. Um dos actores atira-se para a terra batida e corre em direcção ao centro do recinto e leva nas mãos o sulfato do diabo que compartilha com um espelho multifacetado. “Kamalhão! Kamalhão! Kamalhão!”. O foco incide sobre o palco principal mas não surgem os músicos, o silêncio domina por longos instantes a natureza dormente; por fim surgem os quatro músicos: guitarra, guitarra e voz, bateria e contra baixo; este puxa as cordas mas não consegue ouvi-las do respectivo monitor e consequentemente recusa dar início à primeira canção. O cantor está desanimado e nervoso, veste fato escuro e camisa vermelha que sobressai na gola; pede desculpa pelo sucedido, não era assim que se encontrava no “teste de som”, abandona o palco. Chamam-se The Dixie Boys e vieram do Porto provar que o seu rocka billy é mais puro do que uma garrafa de Jack Daniels, e com mais personalidade do que um imitador de Elvis Presley em Las Vegas.
A lua encontra-se com um véu de sujidade ao seu redor e a luz que emana é tão pulverizada quanto uma obra de Noronha da Costa. No palco principal encontram-se dois performers; um discursa para o microfone de forma lasciva enquanto empunha as mãos com garras horrificas: “corrupção”; “descodificação dos mecanismos democráticos”; a guitarra versa o hard rock primata, hair metal piolhento, estes clichés detonam o texto do orador. “GAL- Para um País sem Lobbies” é um discurso crítico sobre Portugal, o Político usa o mecanismo da quebra da quarta parede-- pois discursa directamente para o público-- a sua contra cena é a guitarra eléctrica do adjunto. O Político lidera um partido utópico pois parte do princípio que da anulação do mal obteremos o bem e consequentemente seremos finalmente civilizados? Há uma arrogância neste político, que não está em campanha eleitoral para umas eleições imaginárias, mas que tem a pretensão de questionar os respectivos responsáveis pela prostituição de Portugal. Por ventura, creio que estou algures iluminado por uma luz intermitente que se acende no palco 2 onde os JAE Sessions apresentam uma latitude prog com laivos de flamenco, sintetizados numa vertente jazz que se prolonga temporalmente numa visceral jam. As árvores dançam os seus ramos em direcção às estrelas enevoadas, que fantasmagoricamente abrem os braços e com as mãos empurram os Destroyers of All para o palco principal. Correspondem a um quinteto de metaleiros que abanam violentamente a cabeça com largas cabeleiras enquanto tocam nos seus instrumentos distorcidos, revela que estamos perante uma trupe de viciados no speed metal, heavy metal; a voz gutural, do único membro que tem o cabelo à tropa, é de uma violência diabólica. Duvido que a paisagem naturalista esteja em consonância com as canções dos Destroyers Off All, habituada que está a metamorfosear-se poeticamente de estação em estação do ano, segundo o calendário ditado pelos romanos. As figuras que se entrecruzam comigo estão a acelerar o passo para ver no palco principal do Kamalhão Rock Fest, Tracy Vandal que veste mini-saia metalizada e t-shirt preta; acompanhada por dois músicos nos teclados/guitarra. As canções que apresenta são de uma visceralidade synth pop, que a levam a saltitar ou deitar-se no palco ou a sentar-se na sua borda; a performance de Tracy Vandal é tão intensa quanto uma criança a brincar às escondidas com o Bela Lugosi, seria pernicioso reduzir o seu concerto a uma figura de estilo que não seja uma hipérbole. É nula a distância que me separa do palco 2, os acordes dos JAE Sessions acendem uma fogueira onde emolam o jazz e o reggae, enquanto jovens se atiram de pranchas de surf sobre uma pista em declive com uma superfície de esferovite. Quando Jibóia introduz os primeiros beats da sua mesa analógica-- atrai para o palco principal os festivaleiros-- adiciona-lhe a guitarra eléctrica da qual executa solos agudos que introduz na mesa, mistura-os com o beat e rejeita um composto tão venenoso quanto tóxico. O músico é um rapaz magro e tímido que ostenta um bigode indie, que está tão comprometido com a sua actuação quanto uma Jibóia a deglutir uma vaca em formol do Damien Hirst. A Jibóia tem a particularidade de ser bicéfala, quando surge Sequin, uma jovem de jeans e blusa clara, que introduz através do seu canto de virgem indiana um exotismo inexcedível às canções; quando desaparece e aparece de mini-saia a temperatura ambiente é acicatada, pena que a sua expressão corporal fique contraída com alguma timidez, caso contrário o concerto teria sido tão-somente sublime. E agora? A encerrar o palco principal do Kamalhão Rock Fest encontra-se Victor Torpedo de fato escuro, que apresenta o one man show “Karaoke”. As canções que são debitadas por um computador versam a Pop lo-fi, às quais se acrescenta a sua voz ao vivo e as letras retratam um crooner looser dandy. A sua performance é alicerçada nestes três pontos aos quais devemos adicionar a auto-punição-- com o microfone a estoirar na testa como se daí eludisse o principio do absurdo. Victor Torpedo é provocador ao despir o fato e a vestir um fato de astronauta, pede ajuda a um membro do público para lhe fechar o fecho das costas, segura no que parece ser um guarda-chuva e nasce um heterónimo com origem em Fred Astaire e Charles Chaplin. Um punhado de jovens sobe ao palco e dançam constantemente, um destes ostenta uma bandeira com um pau desmedido, que é roubada por Victor Torpedo que a atira sobre a borda do palco e estoira como um Big Bang Pop, que coroa a sua performance com rasgos de inevitável genialidade.
Kamalhão Rock Fest, 3 e 4 de Julho, S. Silvestre--Camalhão @ Coimbra
segunda-feira, 6 de julho de 2015
O Meu País Inventado
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