quinta-feira, 10 de março de 2016

Psicopátria

Os GNR convocaram os seus conterrâneos para celebrarem o trigésimo aniversário do álbum “Psicopátria” que teve um assinalável sucesso comercial em 1986 (até aqui a banda era reconhecida pelo “Dunas” que ainda hoje faz parte das playlists das rádios nacionais), e os principais responsáveis foram o “Efectivamente” e o “Bellevue” indiscutíveis clássicos da Pop. Para além destes pontos o “Psicopátria” é uma obra nuclear no corpo de trabalho dos GNR por diversas razões: marcou a saída irrevogável de Alexandre Soares; contemplou uma reflexão da condição da portugalidade, nessa medida ganhou uma dimensão universalista veiculada através da suprema ironia; a sua vertente arty que exaltou uma experimentação nas quais alicerçavam muitas das canções; a aparente premonição sobre o futuro da sociedade portuguesa, não é que Rui Reininho tenha o dom de um oráculo, antes através da crítica identificou os pontos podres assim iluminou o percurso que se deveria ter trilhado e que ainda hoje está por cumprir: um país civilizado em que imperasse uma elite que enaltecesse a alta cultura e que fosse propensa a denunciar a censura e a corrupção, que estipulasse como denominador comum o mérito profissional impondo a igualdade social, consequentemente é o álbum mais político dos GNR com a agravante de ter sido editado apenas dez anos após a guerra do Ultramar ter cessado. A sua contemporaneidade é o traço fundamental para não ter sofrido a erosão do tempo Pop, que por norma é apenas a espuma dos dias, institucionalizada segundo ditames comerciais. Por todas estas razões estou sentado no elegantíssimo teatro Rivoli, rodeado por senhoras e senhores que arriscaram a noite fria de quarta-feira para descodificar o “Psicopátria” tocado ao vivo na íntegra pela primeira vez. As luzes acesas prenunciam que a banda irá surgir, mas é falso alarme, a aparelhagem emite “To Miss” (que é a última canção do álbum) que é um loop repetitivo com a voz de Rui Reininho a cantar: “To Miss/ Missing Miss/ Miss Margarida/ Miss Banlieu/ Miss Coitus Interrupto/ Shine, shine, shine, shine” a inserir-se num groove circular que é profundamente kitsch. Por fim, surgem Rui Reininho (voz), Tóli César Machado (teclado, guitarra eléctrica, bateria) e Jorge Romão (baixo eléctrico), que este ano completam trinta e cinco anos sob a designação GNR; e Samuel Palitos (bateria), Paulo Borges (teclados) e Tiago Maia (guitarra eléctrica; harmónica). A canção que abre o lado A de “Psicopátria” é “Pós-Modernos” um hino Pop contra o consumo e em termos estruturais é tão Pop quanto a “Brillo” do Andy Warhol, os sintetizadores remetem para trompetes sopradas por guardiões de um castelo de fadas intoxicadas, a harmónica é como se fosse uma voz de um campo com espantalhos de olhos tapados por panos com botões a substituírem os olhos. “Pós-Modernos” remete para a felicidade que provoca o consumismo mas não provoca alienação, apenas uma instantânea e visceral felicidade, (“compre aqui”). As palmas ecoam e recebem a concordância de Rui Reininho: “Obrigado meninos e meninas”. A valsa “Bellevue” é tão trágica quanto bela, delicada e a espaços frágil e negra algo que a emoldura progressivamente, que acompanha a cadência dos versos que versam “leve levemente como quem chama por mim”, a narrativa tem um poder tal que o ouvinte deixa-se seduzir mesmo que lhe pareça estranhamente absurda, durante a pausa o suspense é percepcionado, quando retomam a melodia negra a um ritmo mais acelerado a viagem não tem retorno mesmo que seja decomposta por Rui Reininho: “Era só para brincar ao cinema negro”. “O Paciente” é um caso em que predomina um ritmo rural providenciado por um anónimo grupo de baile, Rui Reininho dança e o Jorge Romão saltita, o poema tem como personagem um psiquiatra que faz auto-análise ao espelho que “receita o meio campo”; “enfim que pare de beber”, para não se transformar em “outros insectos a mexer”; o baile Pop é definitivamente instituído como se fosse um derrame cerebral provocado por um ácido institucionalizado. As cores são continuamente garridas cor de rosas ou azuis floridos, que quase reverberam como pinceladas de um artista plástico tão vanguardista quando Amadeo de Souza-Cardoso, “que os extraterrestres existem e que os fantasmas voltam sintetizados”, Jorge Romão na boca de cena demanda palmas do público e é retribuído, o tempo acelera no sentido de uma “síncope mental colapso cardíaco”. Antes da quarta canção “Dá Fundo”, Rui Reininho confidencia ironicamente que, “eu e o Jorge Romão vamos começar a fazer topless”, há gargalhadas dos fãs dos GNR; a melodia é substancialmente pop-alegre tal como o ritmo que é destinado a festas kitschs dos anos oitenta. Rui Reininho conversa com um ente distante, “sim minha senhora” de Fátima, “pápápá”, a teoria pop-twist é determinista e ganha uma urgência que consequentemente sobrevém em “Dá Fundo” com uma malha providencialmente experimentalista, “e vamos para a piscina”; “todos para a piscina”. Apresenta: “Tóli César Machado” que é aplaudido calorosamente. “Cerimónias” que originalmente tem uma estrutura pop circular é apresentada continuamente sem que se vislumbrem traços familiares, os GNR percorrem uma linha próxima do precipício; a lírica é um diário de um recluso de uma mulher, as clivagens são evidenciadas até que remetem para um absurdo em que está consignada a condição humana… “Coimbra B” é uma pérola injustamente esquecida pelos GNR, complementam-se intercaladamente as teclas densas de Tóli César Machado com a guitarra eléctrica de Tiago Maia, elevando o fado à condição Pop e transcrevendo sinteticamente a alma de um povo e por essa via é potencialmente emotiva, épica.
O lado B do “Psicopátria” começa pelo hino ao direito à diferença “Efectivamente”, a melodia é poeticamente festiva e os versos ludicamente invertem a natureza lógica das coisas, “pássaros estúpidos a esvoaçar”; “adoro as pulgas dos cães/ Todos os bichos do mato”; “cágados de pernas para o ar”; “AAAAAA”; “efectivamente sem moralizar”, “adoro os ratos do esgoto”, uma paisagem Pop que enuncia a chegada de uma Primavera sem a intromissão de uma entidade moralmente ortodoxa, as palmas irrompem acompanhando o crescendo com direito a solo da guitarra eléctrica. “Ao Soldado Desconfiado” com a bateria de Samuel Palitos numa cadencia fúnebre a partir da qual o piano de Tóli César Machado introduz a alma a um cadáver, “diz-me se és o meu espelho ou fonte vulgar?/ Diz-me onde esconder a arma que eu soube enferrujar”; a estátua de António Oliveira Salazar: “de orgulho gelado sobre esta água parada”, um pântano à beira mar plantado, a densidade proposta com a intromissão de um baixo eléctrico omnipresente de Jorge Romão enuncia que vivemos na era nuclear: “A memória da batalha clássica foi-se e a bandeira ser-me-á indiferente: Vim para devolver as cidades aos intoxicados da terra”, em Angola, “sempre que fui combater rastejei pelo chão/ Onde nem a beladona cresce tocando musgo com a mão”, o ritmo da melodia negra cresce dramaticamente, “o vento de amanhã esfuma os viciados do controle”, o refrão contra a guerra: “Nem mais um soldado anónimo dormirá neste caixão”, o crescendo é visceralmente curto, “sonhando arrogante com o nome da sua batalha banal”, com o intercalamento do solo da guitarra e o negrume do piano de Tóli César Machado. “Nova Gente” é “sobre as ilhas”; “Canelas e etc.”, o concerto estava a ser transmitido em directo pela “Antena 3, obrigado” e a locução de Rui Reininho, “prova que não há playback no baixo do Jorge Romão”. A canção tem uma melodia e um pendor predominantemente popular, mas na perspectiva de um compositor que detesta a baixa cultura, e descobre que a única forma de a combater é enaltecer o seu espírito naive radicado na tradição dos grupos de baile. Conjugado com versos que focalizam uma realidade aparentemente distante: “Vivo numa ilha sem sabor tropical”; “não é de origem elevada difícil de recensear/ Quem a rodeia por vezes é a força policial”--os sintetizadores de Paulo Borges carregam o seu efeito kitsch-- “Baby Dock Papa Dock nunca vi/ Nem qualquer ditador da América central”; “é tudo a mesma fruta a mesma caldeirada”; os GNR transformam o popular em pop num jogo de espelhos que subvertem a realidade e Rui Reininho dança sobre a campa de Portugal. Para “Choque Frontal” Tóli César Machado toma conta da bateria e a canção tem um pendor quase marcial, a melodia deriva da manipulação dos teclados agregando-lhe um negrume kitsch, com a introdução da guitarra eléctrica raios Pop psicadélicos, que é devidamente representada com uma urgência a subscrever um futuro que nunca caducou: “60-70-80-90- A hora/ 90 a década vamos embora vamos embora!”; a viagem é um fluxo dilacerantemente apelativo, “e as frustrações levam ao choque frontal” e o “tráfico nas cidades leva ao choque frontal”, a guitarra em combustão reproduz um lupanar iconoclasta que introduz uma ansiedade desmedida, “os sulcos do viaduto nessas unhas de verniz negro/ Brilhando nos lábios cereja cristalizada”, vorazmente críptica e essencialmente épica, “choque frontal”. Rui Reininho despede-se em nome dos GNR: “É um projecto do Grupo Novo Rock e não temos mais canções”, e as palmas ecoaram e mostram-se entusiásticas quando os músicos regressam para tocar “Cadeira Eléctrica” de “Caixa Negra (2015) que é delineada com traços grossos e que encerra a noite histórica no Rivoli que aplaude de pé o “Psicopátria”.

GNR, “Psicopátria”, Teatro Rivoli, 9 de Março @ Porto



domingo, 6 de março de 2016

1984

Surge um homem de cabelo branco é magro e tímido veste casual, chama-se Manuel Göttsching e segura um microfone timidamente como se o uso da palavra em público fosse algo tão intimidante quanto desnecessária, havia sido recebido com palmas no Teatro Académico Gil Vicente, “good evening”, “it`s a great pleasure” estar em Coimbra a convite da “RUC”, “I never performed in Portugal before”, julga que apenas tocou “eleven times ´e2-e4`” mas teve o cuidado de preparar uma “original version” (uma actualização da obra editada em 1984); “I hope you enjoy it”; “and thank you”; senta-se numa secretária com um Mac iluminado por foco austero, e os sons que as colunas projectam têm uma batida dançante com profundidade provinda do baixo, no ecrã os quadrados vermelhos movimentam-se constantemente da esquerda para a direita, algo que se torna hipnótico e consequentemente obriga a consciência produzir um sonho acordado-- o minimalismo é um ponto transversal às canções apresentadas em regime de non stop providenciando inúmeras texturas dinamicamente sobrepostas-- mas não pretende evocar a alienação de uma felicidade artificial, introduz pequenos apontamentos da flauta, ou o som concreto de um pássaro a chilrear para criar disruptivas narrativas que nos permitem viajar num habitat natural como as instalações da Yayoi Kusama. Gradualmente a música perde o seu pendor dançante e ganha uma amplitude pesada, como se fosse a origem do tecno, no ecrã os quadrados formam um muro que poderia ser o de Berlim em 1984, grafitado com versos do “Heros” de David Bowie, que é destruído por notas paradoxais de loops do baixo e do bombo; o teclado é manipulado ao vivo por Manuel Göttsching que o introduz paradoxalmente no fluxo minimal; durante o qual insere uma guitarra eléctrica, que sola diversas vezes mas como se fossem apontamentos blues (instaurados a partir de um único centro melódico) que enaltecem o kitsch, que colonizam o minimalismo pesado resultando no vanguardista krautrock, são posteriormente substituídos por um quarteto de cordas como o grasnar de pássaros cegos, que alternam com a guitarra prog-rock-- paralelos à batida poético minimal-- os violinos ondulam e reintroduz a guitarra eléctrica que é na essência punk, a máquina reprodutiva de sonhos psicadélicos anuncia gradualmente aos passageiros que o desaparecimento do padrão vermelho do ecrã aponta para o esvaziar de um corpo camaleónico alimentado pela mais puras das energias eléctricas: “e2-e4”.

Manuel Göttsching, “e2-e4”, 30 anos de RUC, Teatro Académico Gil Vicente, 4 de Março @ Coimbra